A Moeda Inteira

Na Suíça surgiu uma grupo de cidadãos apresentou um projecto de reforma monetária baptizado “Moeda Inteira”. O elenco do conselho científico da organização, tal como os apoiantes oriundos dos sectores bancário, político, académico ou dos negócios, é assinalável.
Mas afinal falamos de quê?

Está bem explicado na primeira pagina online do movimento, A Iniciativa Moeda Inteira em 10 Segundos”:

Mais de cem anos atrás, foi proibido aos bancos imprimir papel-moeda. A iniciativa visa uma proibição semelhante para a moeda electrónica. Só o Banco Nacional cria no futuro dinheiro e torna-o disponível, através de entregas livres de dívida, ao governo federal, aos cantões e aos cidadãos. Isto tem grandes vantagens: toda a moeda é protegida da falências dos bancos, evita bolhas financeiras e inflação, e é rentável […]

Tanto para entender, o termo “moeda electrónica” indica a moeda hoje criada do nada pelos bancos com os sistemas informáticos, algo que acontece diariamente: com a iniciativa Moeda Inteira todo o dinheiro, também aquele criado hoje pelos bancos, seria emitido unicamente pelo Estado. Vantagens? Muitos e com um alcance impressionante.

Apenas uma nota: com a expressão Banco Central entende-se aqui o Banco Central Nacional de qualquer País. Todavia, as mesmas considerações feitas acerca da Moeda Inteira criada pelos vários Bancos Centrais podem ser feitas para o Banco Central Europeu.

1. Os bancos criam dinheiro por conta própria

Sabemos que os bancos criam dinheiro, literalmente a partir do nada. Hoje em dia, os bancos criam acerca de 90% do nosso dinheiro, que é coberto só em parte (mínima) pelas reservas bancárias. A maioria das pessoas erroneamente acredita que todo este dinheiro é criado pelo Estado ou pelo Banco Central nacional, ou até (na Europa) pelo Banco Central Europeu.

Solução: apenas o Banco Central Nacional cria dinheiro 

O fim da iniciativa é restaurar o dinheiro como algo que não pode ser criado por um grupo específico de empresas privadas (tais são os bancos comerciais). Facto que é estabelecido pelas Constituições de vários Países.

Constituição da Confederação Helvética, Art. 99.1:

O sector monetário é um assunto da Federação; que só ela tem o direito de cunhar moeda e emitir notas.

Constituição do Brasil, Capítulo II, Secção I, Art. 164:

A competência da União para emitir moeda será exercida exclusivamente pelo banco central.

Constituição dos Estados Unidos, Art. 1:

Sec. 8. O Congresso terá poder: de fixar e cobrar impostos, direitos aduaneiros, impostos e taxas […], de cunhar moeda, regular o valor desta como o das moedas estrangeiras, e estabelecer o padrão de pesos e medidas; de providenciar a punição dos falsificadores dos Títulos e da moeda corrente dos Estados Unidos;
Sec. 10: Nenhum Estado [da União, ndt] poderá participar em tratados, alianças ou confederações; […] emitir moeda; emitir títulos de crédito; configurar como um meio de pagamento de dívidas coisas diferentes de moedas de ouro e prata;

Obviamente, as Constituições dos Países da Zona Euro foram modificadas neste aspecto

Com esta iniciativa são criados um sistema bancário e um monetário tais como são actualmente imaginado pelos cidadãos e como foram imaginados nas alturas em que foram criadas as respectivas Constituições: o dinheiro
electrónico não seria mais criado por empresas privadas com fins lucrativos, mas
pelo Banco Nacional, teoricamente controlado do ponto de vista democrático e obrigado a agir
no interesses do País. O Banco Nacional criaria dinheiro e os
bancos privados actuariam como intermediários.

Os bancos ficariam a ser bancos: continuariam a cuidar das operações de
pagamento, da concessão de crédito, da gestão dos activos e de outros serviços
financeiros. Se necessário, poderiam continuar a receber crédito do Banco Central para
evitar uma crise de crédito ou um crédito mais caro. Aos bancos só ficaria impedido criar dinheiro por conta própria.

2. O dinheiro dos bancos é inseguro

Como vimos, nem todo o dinheiro é real. O dinheiro electrónico não é criado pelo Banco Central mas pelos bancos privados. É importante realçar como, nesta altura, o dinheiro nas nossas contas bancárias não é dinheiro real mas só electrónico: se todos os clientes do mesmo bancos decidissem retirar o dinheiro das contas deles, o banco poderia pagar só uma mínima parte daquele dinheiro porque não teria fundos suficientes. De facto, o dinheiro electrónico que aparece nas nossas contas é apenas uma promessa de pagamento, nada mais.

Solução: dinheiro real nas contas 

O objetivo da iniciativa é que de todo o dinheiro, também o electrónico, seja criado só pelo Banco Central. Os bancos privados, então, poderiam fornecer empréstimos somente com o dinheiro que receberam dos clientes, dos outros bancos ou do Banco Central.

Desta forma, até o dinheiro em formato electrónico será Moeda Inteira, pertencerá ao dono da conta e não será apenas uma promessa de pagamento: será igual ao dinheiro presente nas carteiras e estaria disponível mesmo que um banco entrasse em crise ou mesmo que falisse.

O uso do dinheiro físico encontra-se constantemente em diminuição. Sem a Moeda Inteiras, os cidadãos terão cada vez menos dinheiro verdadeiro disponível e cada vez mais promessas de pagamento: o que não irá constituir um meio legal plenamente válido de pagamento. Com a Moeda Inteira, os cidadãos ficam completamente dependente das inseguras promessas de pagamento dos bancos privados.

3. Cofres públicos vazios e fontes de receita não utilizadas

Hoje perdemos milhões disponíveis a partir da criação de dinheiro: o lucro obtido com a criação da
moeda electrónica não é utilizado, enquanto aumentos nos impostos, programas de austeridade e reduções de obras públicas são necessários.

O dinheiro criado a partir do zero acaba principalmente nos mercados financeiros: mais precisamente, cerca de quatro quintos do dinheiro criado pelos bancos acabam nos mercados financeiros; apenas um quinto chega até a economia real, onde são criados empregos, produtos e serviços.

A criação de dinheiro por empréstimo, tal como acontece hoje, obriga ao endividamento: sem nova dívida não é criado novo dinheiro. A sociedade, altamente endividada, está exposta a crises financeiras e corre o risco de perda de autonomia.

Solução: usar o lucro obtido com a criação de dinheiro 

O custo de produção duma nota de 10 Euros é trinta cêntimos, mas a nota tem um valor de 10 Euros. Isto significa que são possíveis lucros de 9.70 Euros por cada nota (este é o “senhoriagem”). A criação de moeda electrónica é também livre de custos em boa medida: este lucro fica inutilizado ou enche os cofres dos bancos privados.

Com estes lucros poderiam ser reduzidos impostos, a dívida nacional, ou poderiam ser destinados montantes maiores para o financiamento de infraestruturas públicas e instituições sociais. Do lucro extra derivado da criação de dinheiro, portanto, beneficiam concretamente a sociedade e a economia real.
4. Os mercados financeiros criam bolhas especulativas

Os bancos de investimento jogam com instrumentos financeiros cada vez mais arriscados, e para esta finalidade criam excesso de dinheiro: as consequências são bolhas de activos, por exemplo nos mercados imobiliários (crise dos subprimes de 2007-2008).

Combater os sintomas não resolve problemas. Hoje, tenta-se controlar burocraticamente tais experimentos nos mercados financeiros: no entanto, a regulamentação é geralmente tardia, portanto só aborda os sintomas e os danos já provocados. Os aumentos de capital pedido aos bancos fazem sentido mas estão longe de ser uma solução adequada.

Solução: o Banco Central controla a oferta de moeda 

Uma oferta de moeda adaptada ao crescimento económico garante a estabilidade dos mercados financeiros e da economia real. Isso funciona somente se o Banco Central pode realmente determinar a oferta da moeda em circulação, criando todo o dinheiro electrónico também. Ao contrário dos bancos comerciais, o Banco Central tem a obrigação (teórica) de agir no interesses do País, garantindo também a estabilidade dos preços.

A transição para a Moeda Inteira pode ser implementado sem dificuldade. É uma mudança contabilística que numa determinada data entra em vigor. Nada muda nos pagamentos domésticos e internacionais. O Banco Central tem também os mecanismos de controle que lhe permite reagir eficazmente de acordo com a situação.

Desta forma, a iniciativa Moeda Inteira corrige as distorções provocada pela actual insegurança do sistema monetário: oferece uma solução precisa e equilibrada. Trata-se da única forma na qual seja possível encarar o dinheiro electrónico como “dinheiro de verdade” e não apenas “dinheiro dos bancos”.

5. Os grandes bancos devem ser salvos (too big to fail)

Os
grandes bancos assumem mais riscos daqueles que conseguem suportar e em caso de
problemas devem ser salvos pelo Estado com o dinheiro dos contribuintes.

Nenhum Estado pode permitir o colapso das suas operações de pagamento, pois
isso criaria o caos económico. Se as contas dum grande banco ficarem bloqueadas devido à insolvência, milhões de clientes privados e
empresariais ficam ser poder dispor do seu dinheiro e não podem pagar as suas
contas. As consequências seriam longas filas de pessoas desesperadas em
frente das agências bancárias, uma reação em cadeia
incontrolável de falências e estagnação económica. É por isso que os Estados são obrigados a socorrer os grandes bancos.

O
sistema bancário actual é muito complicado. Mesmo para o legislados e
para os próprios bancos, o sistema é difícil de entender e parcialmente
incontrolável: os efeitos da hiper-regulamentação (mas sempre tardia e inadequada) dificilmente
podem ser avaliados corretamente. E a sua complexidade aumenta progressivamente, levando a custos
adicionais significativos para os bancos e, de reflexo, para os clientes.

Doutro lado, as novas regras são sempre contornadas com novos produtos financeiros.

Solução: garantir o dinheiro dos clientes em vez de salvar os bancos

Com a Moeda Inteira, todos os activos presentes nas contas bancárias se tornam meios de pagamentos legais, por assim dizer: dinheiro de caixa eletrônico. Quando um banco falhar, o dinheiro depositado nas contas privadas não está perdido: pertencem ao proprietário da conta, deixa de ser apenas “virtual” tal como o dinheiro na carteira. Esse dinheiro é, portanto, absolutamente seguro. Os
bancos já não precisam de ser salvos pelo Estado. Este é um enorme ganho
em segurança para toda a economia.

A Moeda Inteira
promove o actividade bancária tradicional: mesmo com a Moeda Inteira os bancos podem trabalhar de forma rentável e estável no longo
prazo. Os postos de trabalho no sector bancário continuam a ser seguros.
A prova é dada pela Post Finance, o serviço financeiro das Postas Helvéticas. Criada em 1906, não possui a licença bancária
completa e não pode criar dinheiro através da concessão de
empréstimos, só pode trabalhar com o dinheiro dos investidores ou
com aquele que é disponibilizado pelos bancos. Apesar disso, é o quinto maior banco no seu sector na Suíça e nos últimos anos
tem conseguido um lucro médio de cerca de 600 milhões de Francos.

A regulamentação bancária pode ser substancialmente simplificada: em vez
de combater os sintomas com mais leis e regulamentos, finalmente o
problema seria abordado na raiz. As operações de alto risco não poderiam ser
mais financiadas com dinheiro criado por conta própria. portanto a Moeda Inteira também permitiria reduzir a burocracia no sistema bancário.

6. Condições desiguais

O facto dos bancos privados criarem dinheiro é um enorme privilegio, é equivalente a um contínuo subsídio do governo.
Hoje, os bancos desfrutam duma vantagem competitiva injusta sobre
todas as outras empresas e cidadãos também, que devem primeiro obter os
meios necessários para os investimentos ou têm que recorrer aos empréstimos.

Um qualquer cidadão privado só pode gastar o dinheiro que tem ou que consegue emprestado (pelos bancos, óbvio, o que significa reembolsos e juros que têm de ser pagos). Pelo contrário, os bancos operam com o dinheiro que eles próprios criam: uma distorção no âmbito da concorrência não compatível com uma livre economia de
mercado.

Os bancos podem emprestar dinheiro que nem
mesmo possuem e com o dinheiro auto-produzido podem comprar acções e
imóveis. Portanto, conseguem financiar os seus próprios investimentos duma
forma mais simples, mais rápida e mais lucrativa.

Há uma evidente falta de
transparência e de informação: enquanto os subsídios públicos são
discutidos em detalhe, os bancos têm tacitamente este privilégio quase
desconhecido. Isto é injusto e antidemocrático.

Solução: a Moeda Inteira cria uma concorrência real 

Sem o privilegio de poder criar dinheiro, os bancos se tornam oficialmente como uma outra empresa qualquer, com as mesmas condições: funcionará com o
dinheiro disponibilizado pelos investidores, aquele de outros
bancos ou, se necessário, aquele fornecido (com óbvia regulamentação) pelo Banco Central.

Ipse dixit.

Fontes: no texto, Iniziativa Moneta Intera

6 Replies to “A Moeda Inteira”

  1. Estive no site http://www.iniziativa-moneta-intera.ch/ a dar uma vista de olhos.

    O projecto é muito interessante, e representa a total moralização do sistema monetário. Todas as propostas vão no sentido de devolver aos estados/cidadãos, o poder de criar e beneficiar com a criação de dinheiro.
    Precisa de eco para que toda a gente tenha conhecimento dele.

    A pesquisa em português por ' Iniciativa moeda inteira' ou somente 'moeda inteira' não me devolveu qualquer resultado. Curioso!

    Abraço
    Krowler

  2. Muito interessante. Falta acrescentar como se encararia a questão das enormes dívidas públicas. Penso que numa aplicação da Moeda Inteira, o sistema financeiro teria de ser redimensionado, pois grande parte dele (ou todo)está sentado em dívida, em cascatas de dívidas, derivados, verdadeiras cadeias de Ponzi. O atual sistema financeiro seria liquidado em contrapartida com as dívidas públicas e muitas das privadas, absolutamente impagáveis. Um jubileu, como se fazia em tempos recuados. Comparo esta clareza com a tíbia e colaboracionista (com o sistema financeiro) posição dos partidos ditos de esquerda que apontam para uma reestruturação da dívida portuguesa que nada resolve e vai empobrecendo as pessoas com uma carga fiscal pesadíssima. Vê este texto http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/porque-nao-e-pagavel-divida-publica.html , este http://grazia-tanta.blogspot.pt/2016/05/divida-publica-divida-publica-cancro.html e há lá mais sobre a dívida. Tudo de bom para ti Vítor

  3. Grande Max! Demorou mas voltou…Bom retorno!
    Olha…a questão envolve uma lógica de dominação secular,muito anterior a Liga Helvética. Endividamento e controle de moeda são essências de dominação e poder. Os Estados Nacionais se desenvolveram sob uma inversão de poder. Servem como um "manto" para que a verdadeira engrenagem não apareça. Mexer com isso implicará numa força hercúlea.
    Massificar o entendimento dessa realidade seria a 1ª missão, pois sabemos, que outras fontes essenciais de dominação é a propaganda conspiratória. Confesso que sou cético, pois não vejo muitas luzes até formarmos indivíduos melhores e mais críticos em relação a assuntos de tamanha envergadura. Mas o projeto é, sem dúvida, de enorme relevância. Abraço.

  4. A ideia é boa, muito boa mas pelo que vejo só se dirige à Suíça. Isto precisa de mais divulgação além das 4 línguas oficias da Suíça.

    Nuno

Obrigado por participar na discussão!

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