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A Esquerda morreu

Há um buraco no qual a Esquerda ocidental desapareceu.

E isso nem seria mal. O problema é ter desaparecido só a Esquerda: o resto ainda aqui está.

Na Europa, os partidos de Esquerda evaporaram. Vamos esquecer os movimentos comunistas, sendo estes geneticamente incompatíveis com a Democracia e por isso condenados a presenças residuais. Falamos daquela ampla gama de grupos políticos que podemos identificar com a social-democracia, a ideologia segundo a qual numa Nação, em grande parte através
do Estado, um partido é capaz de criar uma solução que favoreça os interesses do
trabalho e não do capital. Partidos sociais-democratas, portanto, mas também socialistas e, mais no geral, da Esquerda moderada, aquela que sempre recolheu a maior parte dos votos.

Numa altura em que a crise (económica, social) já não é cíclica mas existencial, a social-democracia deveria ser capaz de reunir amplos apoios; com pessoas cada vez mais à procura de novas respostas, de soluções alternativas: mas não é isso que acontece. As profundas mudanças culturais e tecnológicas parecem ter-lhe retirado a terra debaixo dos pés, deixando-lhe só a possibilidade de seguir o chamariz do Capitalismo. Porque de facto há uma clara corresponsabilidade da social-democracia na criação e na manutenção da actual situação: é lógico que os partidos de Direita não lutem contra o Capitalismo, menos lógico é que sejam os sociais-democratas a favorece-lo.

Aliás, vista nesta óptica, a responsabilidade da social-democracia é até superior: nesta altura é ela a melhor garantia do neoliberalismo, e pior será no futuro, quando for preciso mais autoritarismo. As considerações, os ideais e as conquistas sociais adquiridas no século passado, quando ainda algo importava, foram desperdiçadas: hoje é especialmente a social-democracia que desmonta os resultados conseguidos, não é o neoliberalismo. É ela que faz o trabalho “sujo” que nunca os capitalistas poderiam fazer tão facilmente.

Os neoliberais, também incompatíveis com a democracia, têm sistematicamente tentado erradicar todas as alternativas ao livre mercado. Corroeram e desmontaram todos os espaços onde o bem comum poderia enraizar-se. A privatização não é apenas um programa para as empresas, mas é também para as nossas mentes, porque é a nossa identidade como consumidores que deve mudar no sentido mais individualista. Conseguiram fazer-nos comprar coisas que sabiam serem inúteis, com dinheiro que não temos, numa extenuante corrida até os últimos recursos, inclusive os naturais porque este turbo-consumismo tem um enorme impacto sobre o meio ambiente. Uma sociedade baseada no turbo-consumo parte todos os laços de solidariedade social e de empatia, porque por definição é egoísta e competitiva. O turbo-consumismo mata o bem comum e com ele os antigos ideais para uma sociedade melhor e mais justa; ideais que deveriam pertencer também aos sociais-democratas hoje no poder.

O mundo tornou-se plural, mais complexo, disperso e diversificado, com mais oportunidades, provavelmente mais cheio de contactos, com mais informações: mas não por isso deve tornar-se exploração e massacre de vidas, menos humanos e só mercado.

Perante a natureza dramática das questões, seria necessária uma forte inovação sobre temas quais a vida, a igualdade e o bem-estar, velhos cavalos de batalha socialistas, libertários e populares. Mas a social-democracia de hoje já não tem nem a força nem a capacidade e talvez nem o desejo. Escolheu colar-se ao Capitalismo, às vezes de forma clara, outras vezes mais disfarçada. Tanto faz, o resultado não muda.

Outra dificuldade da social-democracia de hoje reside na democracia. A crise da democracia que enfrentamos é a crise da democracia representativa: cada vez mais pessoas não precisam ou não querem que sejam outros a representá-las, as consultações eleitorais conseguem reunir cada vez menos cidadãos. A falsa bipolaridade política atrai menos, o cidadão não entende e desconfia.

Haveria espaço para um movimento social-democrata? Sim, haveria, para equilibrar o sistema, hoje monopólio da Direita: mas não é isso que se passa.

Na Grécia há molotov contra Syriza, em Espanha há a ascensão do Podemos e a relativa queda do PSOE, na Alemanha o SPD segue um low profile, na França há o governo da fraqueza dos socialistas. No Reino Unido, a crise manifesta-se em primeiro lugar no domínio do SNP, na Escócia, que substituiu o Partido Trabalhista à esquerda, e no aumento extraordinário do Corbynismo que, juntamente com Bernie Sanders nos Estados Unidos, fala do fracasso da social-democracia, dos democrata belicistas.

Mas nenhum desses movimentos ainda conseguiu “quebrar” significativamente a cena com um processo democrático forte e partilhado: e a razão é que a social-democracia está fatalmente comprometida com o poder. Em Portugal, o Bloco de Esquerda passa o tempo a contar os país de Jesus ou em batalhas vazias para estabelecer o género do bilhete de identidade. O governo socialista envia tímidos sinais, mas corre para Bruxelas a cada suspiro. Em Italia o Partido Comunista substituiu a antiga Democracia Cristiana e com o novo nome de Partito Democratico abraça os mandamentos europeus.

O mundo do trabalho, antiga oficina de propostas e resistências, já mudou e falar hoje de “classe trabalhadora” é patético: trabalha-se quando houver trabalho, se não sobrevive-se. Os sindicatos olham com horror para os robôs que (dizem) ameaçam atirar para o desemprego milhões de pessoas: na prática voltamos ao Ludismo do final do XVIII século, sem entender o que entretanto se está a passar.

A social-democracia deveria preocupar-se com algoritmos avançados, big data, impressão em 3D e o resto todo porque o mundo do trabalho evoluiu mas os cérebros da Esquerda nem por isso: deveriam falar de ideias políticas de transformação, como a semana curta de trabalho, um rendimento social garantido, as emissões de poluentes. Tudo isso e ainda muito mais poderia representar uma nova perspectiva social para tentar funcionar como contraparte, aos menos, do neoliberalismo mais selvagem.

Outro desafio deveria implicar uma mudança radical em termos de internacionalidade. Se o Capitalismo foi além da Nação, a social-democracia não tem outra escolha a não ser seguir o mesmo percurso. Há uma necessidade de regular e controlar os mercados, há uma União Europeia que tem de ser completamente refundada, há o poder das lobbies nos EUA que tem de ser fortemente limitado, há uma escravidão na ocupação chinesa que tem de evoluir para condições de trabalho mais humanas. Todos estes são assuntos que deveriam ser típicos da social-democracia, mas que só poderiam ser enfrentados com sucesso numa perspectiva supranacional.

Mas a social-democracia, com a Esquerda toda, morreu. Como afirmado no começo do artigo: isso nem seria mal, pois não é possível melhorar a sociedade sem abandonar os velhos e podres “-ismos”. O problema é que sobrou a contraparte, aquele neoliberalismo que hoje corrompe e compra as últimas faíscas sociais-democratas. Na dialectica de Gramsci estamos num interregno, definido pelo facto do “velho ainda não estar morto e o novo ainda não ter nascido”. Ficamos aqui, a observar o cadáver da Esquerda enquanto a Direita avança sem obstáculos.

Não é um grande espectáculo mas é o que temos.

Ipse dixit.