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Da autoridade do governo

A autoridade do governo. Pensamos nisso: a nossa vida enquanto cidadãos é regulada pela forma de
governo presente no nosso País. Mais no geral, podemos falar de Estado, seja ele qual for.

É provável que a grande maioria dos Leitores viva num Estado democrático, onde o governo é eleito pelos cidadãos: dia de eleições, são votados e escolhidos uns indivíduos que têm o dever de criar leis, fazer respeitar as que já existem, etc.; nós voltamos para o nosso trabalho e a vidinha continua alegremente.
Parece simples e sobretudo parece óbvio.

“Óbvio”? Parem: donde provém a autoridade do governo? Quem estabeleceu que um governo, um qualquer, tem o direito de governar? E a autoridade do Estado? Uma tal autoridade é dada por nós, na altura do voto? Certeza? Mas o Leitor tem mesmo certeza disso? E se o governo, um qualquer governo num qualquer País, não detivesse autoridade nenhuma? Se afinal a autoridade que reconhecemos ao Estado não passasse duma ilusão?

A autoridade política, a autoridade do Estado ou do Governo, é algo que a pessoa média quase nunca questiona. Todos passamos a vida a pensar que o Governo (embora muitas vezes composto por elementos criminosos, fraudulentos e mentirosos) tem uma sólida base que justifica a sua autoridade política. Muitas pessoas, independentemente das ideias políticas, pensam que o governo tem o implícito direito de governar, usando a coerção se for necessário.

Donde surgiu esta ideia? Porque continua a existir? Porque reconhecemos uma tal autoridade? 

Curta introdução histórico-filosófica tanto para dar a ideia de que o blogueiro é gente fina que lê livros complicados dos quais até consegue extrair profundos ensinamentos

O filósofo britânico do século XVIII, David Hume, escreveu:

Nada é mais surpreendente do que a facilidade com a qual muitos são governados pelos poucos.

Hume foi um dos poucos que dedicou tempo para examinar de perto as origens da autoridade política do Governo. E as suas conclusões são surpreendentes. Hume percebeu que a maioria dos governos é formada e conseguida pela força. A História ensina isso vezes sem conta, inclusive mostra também como um Estado possa recorrer à criação de inimigos fictícios para justificar a existência dele.

A maioria dos governos não são formados por contracto, mas sim através da conquista e da guerra.

“Contracto” diz Hume. Alguma vez alguém entre os Leitores assinou um “contracto”? Um pedaço de papel com o qual reconhecia e aceitava o poder do governo ou até do Estado? Não.

Podemos pensar que o facto de votar é já por si uma aceitação implícita, uma espécie de assinatura do contracto. Calma pessoal, calma: voltaremos acerca deste ponto porque a coisa não é tão simples assim. Por enquanto continuemos a ler o bom Hume, porque no ponto de vista dele a autoridade concedida ao governo (ou Estado) não poderia passar nem sequer um exame superficial.

Nada é mais confortável do que submeter-se silenciosamente ao governo que encontramos estabelecido no país onde vivemos, sem indagar muito curiosamente acerca da sua origem […]. Poucos governos serão examinados de forma tão rigorosa.

Então é o hábito a base da autoridade sobre a qual são fundados os governos? É daí que deriva a autoridade que detêm? Não, o hábito é apenas uma consequência. Segundo Hume, há apenas uma causa:

É somente sobre a opinião que o governo é fundado; e esta máxima estende-se aos governos mais despóticos e militares, bem como aos mais livres e mais populares.

Como veremos, esta última citação soa verdadeira e é especialmente interessante dado que contradiz frontalmente a noção amplamente aceite apresentada pelo colega filósofo John Locke: a ideia segundo a qual existe uma espécie de “contracto social” no qual o Estado encontra a justificação para o seu poder.

A ideia de Hume aponta para opinião como primeira causa, hábito como preguiçosa consequência, nada mais. O Leitor pode aprofundar as teorias de Hume num dos muitos livros que o filósofo escreveu, leitura que todavia desaconselho a não ser que o Leitor esteja numa condição de excessiva felicidade e deseje recuperar um pouco de equilíbrio com uma boa dose de tédio e frustração (porque Hume apoiava a força coercitiva dos Estados e a guerra como forma de implementa-los!).

Mas agora deixamos para trás a História e passamos para algo mais próximo de nós.

O monopólio da força

O Professor Michael Huemer, que ensina na Universidade do Colorado, fez alguns óptimos trabalhos sobre o tema da autoridade política. Ele é autor de livros como The Problem with Political Authority: An Examination of the Right to Coerce and the Duty to Obey, título demasiado comprido que nem tenho a vontade de traduzir, tanto nem existe o livro na versão portuguesa (mas já foi traduzido “Creed: O Legado de Rocky” para que nada nos falte).

Bom, o que interessa é que Huemer mostra que é muito difícil justificar a autoridade política, especialmente na forma presente agora na maioria dos Países ocidentais: um governo “democrático” que reclama o monopólio do uso da força ou da violência.

Monopólio? Isso mesmo: monopólio. Só o Estado pode utilizar a força, o Leitor não. O Estado pode armazenar tanques, aviões e navios de combate: o Leitor não pode, por lei. Que dizer, o Leitor pode até juntar na varanda alguns misseis, isso sim, só que depois será preso e julgado com a acusação de terrorismo. Isso porque o Estado faz “defesa” (mesmo que há séculos ninguém o ataque), o cidadão não pode: tem obrigatoriamente que delegar a defesa dele ao Estado. Não há escolha.

Huemer realça que a maioria das pessoas defende o direito do Estado existir alegando a presença dum qualquer tipo de contracto social, a mesma teoria de Locke como vimos. No entanto, a teoria de Locke já foi demonstrada falsa: não existe nenhum contracto, não há um pedaço de papel que o consagre, nem há nenhuma folha que o Leitor assina uma vez alcançada a maior idade. E mesmo que existisse um contracto escrito, seria necessário o constante consentimento, a contínua revalidação por parte de cada nova geração para que fosse considerado válido.

Consentimento?

Dúvida: mas não haverá uma forma de consentimento implícito que justifica o governo?
Porque quando o argumento do “contracto social” cai, as pessoas tendem a argumentar que, ao invés de consentimento explícito, há alguns tipos de consentimento implícito que damos ao Estado.
Huemer identifica 4 tipos de possíveis consentimentos implícitos:

  1. o consentimento passivo;
  2. a aceitação de benefícios;
  3. o consentimento através da presença;
  4. o consentimento através da participação.

1. O consentimento passivo é aquele que é aplicado quando nada fazemos para não aceitar a situação. Por exemplo: o Leitor não gosta do governo mas nada faz para substituí-lo: na prática acaba por aceita-lo.

2. A aceitação dos benefícios é outra forma de consentimento: o Leitor diz não gostar do Estado mas quando vai para um hospital público aceita pagar a factura com a comparticipação do Estado. E até fica contente.

3. O consentimento através da presença é o mais simples: o Leitor está em Portugal e, só pelo facto de aí estar, aceita fazer parte do Estado português.

4. O consentimento através da participação é aquele muitas vezes apresentado como “prova definitiva”: o Leitor vota, isso significa que o Leitor aceita o Estado.

No entanto, para realmente dar o nosso consentimento, deveríamos estar num ambiente não-coercitivo: o
consentimento só pode ser realmente dado quando estamos também livres de não dar o consentimento, se este for o nosso desejo. É este o caso dos nossos Estados, dos nosso governos? A resposta é clara: não. Não temos escolhas.

O que os nossos Países “democráticos” fazem é apresentar uma escolha deste tipo: o Leitor pode votar mas apenas segundo as regras que eu (Estado) estabeleci. Eventuais alterações ao sistema podem ser introduzidas só com os meios que eu (Estado) prevejo e com os limites que eu (Estado) estabeleço.

É esta uma escolha? Não, esta é uma imposição. 

Se o consentimento fosse verdadeiro, ambas as partes deveriam ter a possibilidade de “sair” do sistema e ambas também deveriam ter obrigações que, se não cumpridas, seriam motivo suficiente para a rescisão do acordo. Mas alguém entre os Leitores conhece uma forma de “sair” do sistema? Ou uma forma de rescindir este hipotético “contracto social”? Não, porque não existem.

O Leitor não pode simplesmente optar por não obedecer: o Estado apresentaria acusações e, finalmente, ia prende-lo por não obedecer aos seus decretos. O Leitor poderia sair, mudando de País: mas isso significaria enfrentar um outro Estado que actua da mesma forma.

Na verdade, como afirmado, não há maneira de rescindir este alegado “contracto social” ou de sair deste sistema, a não ser transferindo-se para uma remota zona desértica, na esperança que ninguém repare na coisa (porque todas as terras do Globo fazem parte dum qualquer País). Não há nenhuma maneira eficaz com a qual simplesmente dar como acabado o tal “contracto” sem sofrer a consequência negativa de ser acusado e preso.

É este um consentimento? Não: é uma relação de força, uma coerção. Sem alternativas possíveis não há consenso, nem explícito nem implícito. É esta a nossa condição.

A maioria

Outro argumento apresentado para justificar a autoridade do Estado na nossa sociedade é o apoio dado por uma maioria de pessoas. Afinal não estamos em democracia?

Sim, estamos, e isso apresenta outro problema: é justo que as opiniões e os desejos dum grupo de pessoas (a maioria) possam sobrepor-se aos dum outro grupo de pessoas (a minoria)? Sim? E por qual razão?

E não responda o Leitor “porque é justo”: esta é a resposta que fomos habituados a considerar como correcta, mas justa não é. Quero lá saber se a maioria das pessoas considera horrível os carros amarelos: eu gosto e quero um carro amarelo (por acaso o meu é branco). E se, utilizando um paradoxo, a maioria das pessoas decidisse publicar um novo decreto que põe fora de lei os carros amarelos, eu já não poderia ter um carro com a minha cor favorita? Acham isso “justo”?

Na verdade, o argumento da maioria é o mais fraco de todos: o poder da maioria é uma tirania das massas que esmaga as minorias, como sabe qualquer estudante de Ciência Política. Algo muito bem conhecido pela História e que hoje aceitamos naquele que é o seu aspecto politicamente correto, a Democracia.

Já Aristóteles afirmava que “uma Democracia sem limites é, tal como a oligarquia, uma tirania exercida por um grande número de pessoas”. Aristóteles tinha percebido isso há mais de dois mil anos. Um Estado que reclame a sua autoridade a partir da maioria é um Estado injusto, que utiliza uma forma de tirania, mesmo que goste de definir-se como “democrático”.

Os benefícios

O argumento final de quem tenta procurar uma sólida justificação para a autoridade do governo é geralmente a “consequencialista”, isso é: apela-se aos benefícios, invoca-se a utilidade do Estado. Olhamos em nossa volta e podemos observar todas as coisas boas que o Estado fez e faz: afinal podemos pensar que a autoridade do Estado é válida porque proporciona muito benefícios.

A esta observação responde-se com duas perguntas:

  1. tais benefícios valem o preço que pagamos em termos de perda de liberdade e de deveres?
  2. o que este Estado fez que não teria sido possível com outra forma de sociedade?

A História mostra claramente que a maior parte das injustiças e da destruição foram cometidas por pessoas que obedeciam a uma autoridade: foi esta a defesa dos nazistas no processo de Nuremberga também. Pelo que: a autoridade dum Estado pode sim proporcionar alguns benefícios (e proporciona, de facto), mas também implica perda da liberdade e alguns riscos terríveis. E são isso mesmo: terríveis.

Se o governo recebe a sua autoridade política dos benefícios que proporciona, isso significa que um qualquer sistema que consiga os tais benefícios será tão bom quanto o nosso Estado. Dito de outra forma: todos os sistemas que podem proporcionar benefícios têm a mesma autoridade. Mas reparem: o Leitor não pode saber quais são estes outros sistemas porque o seu Estado não lhe permite experimenta-los.

Pegamos num exemplo absurdo: Hitler fez maravilhas para o povo alemão (antes da guerra, claro), proporcionou-lhe imensos benefícios. Temos de pensar que o Nazismo é bom? Isso não faz sentido, então temos que admitir que os benefícios (como um hospital gratuito, uma boa reforma, etc.) não podem servir para determinar se um Estado tiver uma legítima autoridade ou não.

Porque um Estado merece uma consideração especial, uma autoridade especial (que lhe permite usar a força, cobrar impostos, julgar, prender e até matar) quando a nenhum outro indivíduo ou organização é permitido fazer o mesmo? Não pode ser por causa dos tais “benefícios”, como vimos, porque neste caso seria também preciso admitir que no passado houve situações em que Estados brutais ou até a falta dum Estado conseguiu fazer o mesmo ou até melhor (sim, pessoal, leram bem: “até melhor”).

Da mesma forma, já houve situações em que a presença do Estado anula os tais benefícios: os governos que mataram os seus próprios cidadãos foram a principal causa de morte não natural no século XX. Não foi a Primeira Guerra Mundial, não foi a Segunda, nem as duas juntas: foram os Estados.

Fora da caixa

O Estado não é a raiz de todos os males, ora essa. Seria bom se assim fosse, seria um Mundo bem mais
simples.

Mas se o desejo for procurar algo mais, para nós todos, em primeiro lugar temos que começar a raciocinar out of the box, como dizem os anglo-saxónicos, “fora da caixa”, tentando afastar o condicionamento e a programação que qualquer regime (democrático, totalitário, religioso, etc.) inevitavelmente utiliza.

Seria óptimo se pudéssemos usar uma varinha mágica para poder pensar out of the box, mas não funciona assim, não há varinha nenhuma. Devemos pôr a funcionar o cérebro, fazer um esforço para acordar os neurónios preguiçosos: tentar afastar das nossas mentes as ideias limitativas e pôr em discussão tudo.

No caso da autoridade, é preciso reconsiderar as nossas posições: não há nada que justifique a existência dum Estado. Não há um “contracto social”; não há um consentimento, nem explícito nem implícito; não há uma autoridade “justa” por parte da maioria; não há benefícios que justifiquem a existência dum Estado que afinal é só imposto; não é apresentada nenhuma alternativa, pelo que não há uma verdadeira possibilidade de escolha; e mesmo que existam alternativas (e existem), estas são logo travadas pelo nosso sistema.

Resumindo: não há liberdade, somos governados por um Estado que é o único que pode utilizar a força (da lei ou da violência) para manter a actual condição; e não há maneira para justificar tudo isso.

Ipse dixit.