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Europa: porque fora da NATO

Faz sentido a Nato?
Deixamos de lado considerações morais e políticas. Falamos em termo apenas pragmáticos.

Pouca horas depois do começo do novo ano, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que “a Nato é o inimigo”.

Poucos dias antes, o Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, numa entrevista ao Bild am Sontag disse que “o nosso objectivo final deve ser um exército da União Europeia”, porque “os recursos que gastamos nos nossos vinte e oito exércitos nacionais poderiam ser usado muito melhor se juntos.

Putin não é um poço de simpatia e as ideias de Schäuble são, no mínimo, discutíveis (esta União Europeia tem que ser refundada antes de começar a falar dum exército em comum). Mas o ponto central fica: a Nato faz ainda sentido?

Além da União Soviética

A Nato nasceu como aliança militar ocidental anti-soviética em 1949. Pré-história, sem dúvida, mas na altura tinha um significado: dum lado a Aliança Atlântica, do outro o pacto de Varsóvia. Um equilíbrio que foi quebrado com a queda do Muro de Berlim: o Pacto dissolveu-se, a Nato não.
Aí surgiram novos problemas.

Após o desaparecimento da União Soviética, os norte-americanos não sabiam o que fazer com a Aliança. Durante alguns anos, de facto, a organização ficou totalmente parada e nas mesas acumularam-se os estudos. Até que alguns conselheiros do então Presidente Clinton propuseram uma solução: manter e ampliar a Nato com os Países do ex-Pacto de Varsóvia. E estes Países puseram-se em fila para entrar na organização atlântica.

Por qual razão? Porque, de repente, tinham ficado “sozinhos”, sem o chapéu de protecção antes fornecido por Moscovo. A situação no Leste era politicamente confusa e instável, havia o medo de que alguém pudesse reconstruir o dinossauro “comunista” ou envergasse por caminhos ultra-nacionalistas e, ao mesmo tempo, a intenção era abandonar-se ao livre mercado que tantas delícias prometia.

Pacto de Varsóvia

Foi uma escolha que a Rússia considerou com grande desconfiança. E a razão é simples: a Nato tinha
nascido em função dum inimigo; agora que o inimigo tinha ido embora, qual era o sentido em mantê-la viva e até amplia-la? Em Moscovo fizeram 2+2 e o resultado foi 4: era óbvio que esta escolha deixava transparecer uma certa desconfiança em relação à Rússia.

Num primeiro momento, os EUA pareceram ter em conta as preocupações da Rússia.

Houve uma reunião muito cordial entre George W. Bush e Putin, no Texas, seguida por um novo encontro em Maio de 2002, em Italia, onde foi criado uma espécie de comité de ligação entre a Nato e a Rússia. Sem funções específicas, verdade: no entanto era um sinal importante. Poderia ter sido o embrião duma organização para a segurança global, uma espécie de ONU, mas armada, mais séria (não teria sido preciso muito) e baseada num acordo de amplo alcance entre as duas potências.

No entanto algo falhou. E falhou do lado americano. A Nato é uma aliança projectada para combater, está preparada para uma guerra contra quem estiver “de fora”: como afirmado, nasceu em função dum inimigo. E o esquema de funcionamento não mudou: um comandante supremo americano, bases norte-americanas, planos estratégicos norte-americanos. Os Russos não poderiam simplesmente pôr-se na fila como os outros Países do ex-bloco soviético.

A escolha de Bush

As fricções começaram quando Bush denunciou o Tratado ABM, aquele dos mísseis anti-míssil, que Estados Unidos e União Soviética tinham concordado na década de Setenta: na prática, ambos os Países empenhavam-se a não construir mais do que uma base anti-míssil no território deles. Um tratado inteligente: concordando em ter apenas uma base de mísseis, ambos deixavam o resto dos seus territórios indefesos, expostos às represálias do inimigo se um dos dois tivesse iniciado as hostilidade. Era esta mútua vulnerabilidade que também garantia a paz.

Bush, denunciou este tratado para criar uma grande rede de defesas anti-mísseis, composta de submarinos nucleares no Norte, um grande radar na República Checa e uma base na Polónia. Claro que os Russos começaram a perguntar-se: “Mas quem será o inimigo contra o qual é organizada esta defesa toda?”. Os Americanos responderam que tinham de proteger-se contra os Estados-sacanas, como o Irão. Mas dado que nem todos os Moscovo são idiotas, a desculpa não convenceu.

Era precisa a escolha de Bush? Depende do ponto de vista. Se seguirmos as ideias de Brzezinski acerca do controle da Eurásia, é óbvio que as bases nos Países do ex-bloco soviético fazem todo o sentido, sendo um avanço na direcção dum cada vez maior controle sobre o continente. Mas isso não foi suficiente: não podemos esquecer o peso da lobby das armas. E o papel desta lobby pode ter sido não tão pequeno assim.

O facto é que se um País entrar na Nato, deve respeitar as normas da Aliança, entre as quais aquelas acerca dos armamentos: e quem fornece armas e infra-estruturas? Obviamente a indústria da “defesa” dos Estados Unidos que é, além dum grande complexo empresarial privado, um forte poder político. O primeiro que percebeu isso tinha sido Eisenhower, que no seu discurso de despedida (16 de Janeiro de 1961), no final do segundo mandato presidencial, denunciou a existência do tal complexo militar-industrial que estava a tentar orientar as políticas norte-americanas.

E em tempos mais recentes? É só espreitar a lista dos exponentes políticos que são verdadeiros pendulares entre a indústria militar e a Administração em Washington (um nome pode bastar: que tal Dick Cheney?). Mas há também muitos militares que terminam a carreira ao serviço do Estado para entrar a trabalhar na indústria das armas.

Seja como for, o projecto duma organização global naufragou, a Rússia percebeu qual o verdadeiro sentido da Nato.
E a Europa?

A Europa neutral 

Nessa nossa péssima sociedade, quem não tiver um exército, não tem uma política externa. Esta é a triste verdade. E a União Europeia não tem uma política externa, limita-se a seguir aquela dos EUA. Isso cria uma situação anti-natural: seguimos uma política que não é europeia ou europeísta, é americana. Mas a Rússia, o “inimigo”, faz parte da Europa: geograficamente e historicamente. Portanto, é um dever europeu tentar estabelecer laços diplomáticos autónomos e independentes com Moscovo.

Problema: isso significaria vozes contrária no seio da Nato. Todavia, e apesar de hoje estar formada por 28 Países, o funcionamento da Aliança é muito particular: todas os grandes decisões são tomadas por unanimidade, pelo que é suficiente que um só Países aderente esteja contrário para bloquear qualquer resolução. Parece simples, mas não é porque na realidade as votações na Nato são raras: trabalha-se mais com o consentimento. O Secretário-Geral abre um debate até verificar a existência dum consenso geral. Nesta altura o debate é fechado.

Azul escuro: Países Nato; Azul claro: plano de ampliação;
Amarelo: em conversações; Laranja: outros

Claro, alguém poderia levantar-se e discordar, mas ninguém faz isso porque ninguém quer assumir uma atitude abertamente hostil aos Estados Unidos. Foi o que aconteceu quando o Ministro das Relações Exteriores francês, Villepin, disse que a França não teria aprovado a guerra contra o Iraque (e nem disse isso numa reunião da Nato, falou assim na ONU…) A raiva americana foi enorme. Desde então, porém, o problema foi prontamente resolvido: os EUA inventaram a “coligação dos voluntários” que pode ser formada mesmo sem o consentimento geral.

Voltemos à hipótese dum exército europeu: é uma possibilidade concreta? Em tempos rápidos não, de todo. E esta é ao mesmo tempo uma previsão e uma esperança também.

A única opção séria do ponto de vista europeu seria a neutralidade.
A Europa não pode ser uma potência militar e intervencionista agressiva. Foi isso (não de forma homogénea), ao longo de séculos. Mas aquele tempo já passou, entretanto foi encontrado um assinalável equilíbrio interno (os Países já não precisam defender-se dos vizinhos) e nada justifica uma corrida aos armamentos.

Não há um inimigo “clássico” (o terrorismo tal não é) contra o qual defender-se. As únicas guerras no Velho Continente após a Segunda Guerra Mundial foram aquelas onde entrou a Nato (oficialmente ou não): ex-Jugoslávia e Ucrânia. As únicas intervenções militares europeias fora do Velho Continente nas últimas décadas foram ou sob mandado das Nações Unidas ou às ordens da Nato (Afeganistão, Iraque, Líbia…).

A neutralidade da Europa seria hoje um facto absolutamente óbvio. Mas uma Europa neutral seria um golpe mortal do ponto de vista da Nato: os únicos Países não europeus da organização são os EUA, o Canadá e a Turquia. Portanto, trata-se dum projecto não viável no curto prazo, pois se entrar na Nato é fácil, sair é coisa bem mais complicada: as retaliações americanas seriam devastadoras.

Quanto devastadoras? É só ler os diários dos últimos meses. Charlie Hebdo na França em Janeiro de 2015, massacre de Paris em Novembro de 2015, massacre de turistas alemães na (Turquia) em 12 de Janeiro de 2016. É clara a existência duma estratégia para atingir França e Alemanha, os dois pilares duma Europa que não segue a cruzada americana anti-Rússia de forma tão fiel como Washington desejaria.

Ou engolirmos a história do Isis mau que quer destruir o Ocidente (mas nada de ataques contra israel, o principal aliado dos EUA no Oriente Médio, ora essa…) ou é óbvio que algo não bate certo. Em particular, a Europa, que constitui o bloco mais numeroso da Nato, ainda não escolheu qual dos dois lados apoiar e isso põe em risco o papel da Nato.

Apesar das declarações oficiais, é sabido que a frente dos que querem o fim das sanções ocidentais
contra a Rússia cresce. E não falamos aqui duma frente política (os partidos contam o que contam…) mas económica: Angela Merkel, por exemplo, não tem vida fácil em controlar as empresas alemãs que desejam restabelecer os normais contactos com as homólogas russas. E o que se passa em Berlim repete-se em outras capitais europeias.

É uma situação inaceitável do ponto de vista americano: Washington quer uma frente sólida contra o “inimigo”. Sem esta frente monolítica, a utilidade da Nato qual braço armado ocidental deixa de fazer sentido.

Mas é exactamente este o caminho que deve ser percorrido: hoje a Nato, do ponto de vista europeu, já não faz algum sentido. Não será a Aliança Atlântica a impedir que radicais islâmicos se façam explodir nas ruas de Paris, bem pelo contrário. Pior ainda: é a Nato que dificulta o relacionamento com o nosso “volumoso” mas natural vizinho russo. Que, repetimos, geograficamente e historicamente faz parte do Velho Continente.

Os tempos da Guerra Fria acabaram, mas a Nato continua a dividir a Europa (o bem conhecido divide et impera) em nome dum inimigo que, mesmo que ausente, deve ser criado. Sair da Nato é hoje a única solução que tenha como objectivo o bem da Europa.

Ipse dixit.

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