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Marx não era de Esquerda

Em 1905, a Secção Francesa da Internacional Operaria (SFIO, o partido socialista da altura), indicava quais os seus objectivos: 

Socializar os meios de produção e troca, transformar a sociedade capitalista numa colectivista ou comunista, através da organização económica e política do proletariado.

Nenhum partido socialista hoje ousaria afirmar o mesmo, e até muitos movimentos comunistas teriam dificuldades: os socialistas hoje são social-democratas ou social-liberais, enquanto os comunistas baixam o tom e vestem a roupa democrática para poder sentar-se num parlamento. Ou desaparecem.

Assim, a quase totalidade da Esquerda tornou-se “reformista”, abraçou a economia de mercado, abandonando nos factos os trabalhadores. Não há Esquerda, não há Direita: há um conjunto de partidos nenhum dos quais tenciona adoptar aquelas medidas que permitiriam tornar a sociedade algo diferente. Não digo “melhor”, porque este é um juízo que só a História pode dar, simplesmente “diferente”.

Marcello Foa, jornalista e  escritor, sobre os resultados das eleições espanholas:

Agora podemos chama-la crise da democracia, ou melhor: crise da partitocracía que tem apoiado o actual sistema.

Mas onde? Mas quando? Como pode ser definida “em crise” esta democracia se os partidos que ganham votos fazem parte do mesmo sistema democrático? O que pode haver, no máximo, é a mudança de parte dos eleitores para partidos até então secundários: mas a democracia (ou aquela coisa que continuemos a definir como tal) continua a funcionar e muito bem (segundo os pontos de vista, claro).

O problema é este: a maioria dos eleitores continua a acreditar no actual sistema “democrático”. E até a situação manter-se, não haverá nenhuma crise “democrática”. Haverá votos que viajam dum lado para o outro, mas sempre no interior do mesmo sistema.

Quem escreve (eu!) não é de Esquerda, de Direita ou de Centro: mas sei que muitos, provavelmente a maioria dos Leitores, considera-se “de Esquerda”. Possivelmente apoiam e votam partidos de Esquerda. Acham ter uma ideologia “de Esquerda”. Então eis uma pergunta para Vocês todos: acham que Marx ou Lenin eram “de Esquerda”?

A resposta imediata e mais óbvia é: “Sim, claro: eles foram os fundadores de todos os movimentos de Esquerda!”. Os Leitores mais maliciosos já estarão a pensar “Vais ver que agora este pretende demonstrar que eram de Direita…”.

Ambas as respostas estão erradas, como é óbvio.

Tentamos reflectir.
As ideias dos dois citados senhores tinham um objectivo: substituir a sociedade baseada no Capitalismo e, hoje, na “Democracia” (com muitas aspas). Substituir, não melhorar ou modificar. Substituir este sistema com outro, totalmente novo. Nesta nova sociedade (tanto na Socialista da primeira fase quanto na Comunista da segunda) o colectivismo deveria ter sido o ponto central. Colectivismo dos meios de produção, dos recursos, da economia, de tudo. Isso, a valorização do potencial presente em cada indivíduo e mais um par de coisas, tanto para simplificar o discurso.

Trata-se duma teoria fascinante, que atraiu e continua a atrair milhões de pessoas. Isso apesar de já ter mostrado fortes limites no âmbito da implementação: todas as sociedades “comunistas” até hoje descarrilaram para oligarquias, cultos da pessoalidade, sistemas fortemente policiais, sempre a pactuar com os restantes Países capitalistas. Nos casos mais graves (Camboja) foram criadas autênticas aberrações desumanas.

Na verdade, todos os Países que foram ou são definidos como “comunistas” quase nem alcançaram o Socialismo. E de certeza não conseguiram o verdadeiro Socialismo, mas sempre um Socialismo de Estado (que podemos traduzir com “Capitalismo de Estado”).

Mas voltemos atrás: então, este Marx era de Esquerda? Não, Marx não era de Esquerda. Nem de Direita. Nem de Centro. Marx desejava a criação duma nova sociedade, onde as diferenças entre Direita e Esquerda deixassem de existir porque falsas, artificiais (e nisso estava certo). Uma sociedade totalmente nova, construída a partir das forças proletárias (os trabalhadores) para alcançar algo inédito.

É aqui que encontramos o ponto central: pode uma sociedade totalmente nova ser definida “de Esquerda”? Não, porque já não está baseada nos nossos princípios, nas nossas rotulagens.

Em boa verdade, como muitos sabem, Marx nem inventou a utopia comunista. Querem encontrar as origens do Comunismo? Estudem o reinado de Ur III na Mesopotâmia do 2100 a.C.; procurem os Essénios, o grupo hebraico do II século a.C; vejam os Evangelhos; leiam Utopia de Thomas More (1516), A Cidade do Sol de Tommaso Campanella (1602), o diário Avanti! de Benito Mussolini.

Os Essénios, Jesus, Thomas More, Mussolini eram “de Esquerda”? Mas nem pensar. Simplesmente viviam ou pensavam segundo novos termos. E aqui chegamos ao ponto fundamental da questão: as nossas rotulagens que, apesar de parecerem inocentes, são as nossas correntes.

Para imaginar uma nova sociedade, algo melhor do que a nossa (o que não é difícil) ou simplesmente “diferente”, temos em primeiro lugar de nos livrar das correntes que tanto apreciamos e que continuamos a manter bem fechadas em volta dos nossos pulsos. Estas correntes são as rotulagens: cómodas, porque permitem “identificar” e “catalogar” de imediato algo que não conhecemos ou que pensamos conhecer. Mas têm um problema: são estáticas, não evoluem e favorecem a preguiça do nosso cérebro.

A nenhum trabalhador do 1800 teria passado pela cabeça a ideia de ser “homem de Esquerda”. O
Socialismo, o Comunismo, em origem não eram nem de Esquerda nem de Direita: Sorel, Proudhon, Marx ou Bakunin nunca se consideraram de Esquerda.

Isso porque o movimento socialista/comunista surgiu como uma força independente, contra a burguesia conservadora e reaccionária, contra republicanos e contra qualquer outra força “de Esquerda”.

“Marx? Ah, sim, o comunista…”.
“Anarquia? Ah, sim, as bombas, o caos…”.
Eis o trabalho negativo da rotulagem. Trabalho que é magnificamente explorado pelos partidos políticos.

Quantos hoje votam num Partido Comunista pensando que “Lenine teria feito o mesmo”? Lenine hoje teria mandado fuzilar todos os actuais “comunistas” porque cambada de incapazes cúmplices da burguesia e até da vertente mais radical neoconservadora. O Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels (1848) não era o estatuto dum novo partido político para participar na próximas eleições, mas um manual de revolução. Marx nunca pensou num partido perfeitamente homologado no meio dos outros partidos, todos sentadinhos num Parlamento para chumbar o orçamento do Estado. Imaginou um movimento que pudesse abater o sistema da altura (que ainda é o nosso).

A mesma génesis do Manifesto indica bem quais as intenções: o Manifesto foi encomendado pela Liga dos Comunistas, um grupo radical extra-parlamentar nascido em Paris, cujo fim era a cooperação com homólogos movimentos europeus para provocar a “explosão” da revolução.

Infelizmente, nós ainda estamos ligados ao binómio Direita-Esquerda que tem como pano de fundo a figura dum Estado “neutro”, uma imagem (falsa) que é filha directa da Revolução Francesa. Não conseguimos ultrapassar este obstáculo e isso cria confusão, alimenta os nossos limites: o Estado não é neutro, Direita e Esquerda são as nossas correntes mentais que não conseguimos abandonar.

O Socialismo do qual partiu Marx era aquele que contrastava as ideias da Esquerda “progressista”, um Socialismo que entendia que os valores de “progresso” apoiados pela Esquerda da altura (e de hoje também!) são os mesmos da burguesia liberal. Era uma luta contra três oponentes: contra o grupo monárquico e clerical da Direita, contra o Capitalismo burguês do Centro, contra o grupo da “Esquerda” progressista. Algo muito distante do psicodrama de hoje, no qual os partidos de Esquerda são parte integrante do sistema narcótico que impossibilita qualquer mudança.

Não pensem de ser imunes a este discurso por viver fora de Portugal, fora da Europa, fora do Ocidente. O actual sistema “democrático” funciona em todos os lugares com as mesmas leis e consegue sempre o mesmo resultado: dividir os cidadãos em Direita e Esquerda e favorecer o livre mercado. Sempre.

Como comentou um Leitor Anónimo recentemente (citando Maomé):

Porém, se estás em dúvida sobre o que te temos revelado, consulta aqueles que leram o Livro antes de ti.

O que a maioria de nós faz hoje é não pensar porque houve já quem pensou antes de nós.
Façam um favor a vocês mesmos: comecem a ignorar o que já foi pensado e pensem de novo, partindo do zero.

Ipse dixit.