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Os falsos mitos da Jihad

Da Jihad islâmica já falámos no passado, mas o termo continua a ser utilizado por todos os media de
forma errada: parece que uma parte do mundo islâmico se encontra numa Jihad (entendida como “guerra santa”) contra o Ocidente. Mas assim não é e nem poderia ser.

Claro, os media têm a função de espalhar o medo e criar um inimigo: por isso pegam num termo árabe, descontextualizam-o e apresentam o nosso pesadelo diário.

Todavia, a nossa função é aquela de não cair no medo e tentar entender quem são os nossos verdadeiros inimigos (não é preciso ir muito longe, muitas vezes é suficiente pegar num espelho). Portanto, vamos acrescentar mais alguns pormenores acerca desta “terrível” Jihad.

A Jihad

Como relatado no citado artigo anterior, o termo Jihad não significa “guerra santa” mas sim “esforço”. E há duas Jihad: a Grande (ou Maior) Jihad e a Pequena (Menor) Jihad.

A Grande Jihad, que é de longe a mais importante, é o percurso que interessa exclusivamente o fiel muçulmano, pois trata-se dum esforço espiritual interior para contrariar os impulsos do ego. Simplificando, a Grande Jihad significa seguir os cinco pilares do Islão:

  1. Namaz (recitar as orações)
  2. Sawm (executar o jejum durante o Ramadão)
  3. Shahada (dar testemunho de fé)
  4. Zakat (dar esmola)
  5. Hajj (realizar a peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida).

A Pequena Jihad, vice-versa, é um esforço militar de auto-defesa (no Corão nunca é prevista a difusão do Islão com a guerra).

Existem depois outras interpretações da Jihad, dadas pela teologia muçulmana:
  • pronunciar-se contra um governante opressivo (Sunan de Abu Dawud, Livro 37, Número 4330);
  • ir para o Hajj, a peregrinação a Meca: para as mulheres, esta é a melhor forma de Jihad (Sahih de Bukhari, Volume 2, Livro 26, Número 595);
  • cuidar dos pais idosos. 
  • estudar os textos sagrados
  • perdoar uma pessoa que agiu mal
  • participar activamente na comunidade
  • parar de fumar.

Tudo isso é Jihad. E, como é possível constatar, em nenhuma dessas definições aparece o conceito de “guerra santa” tal como tem sido descrito no Ocidente ao longo de anos, como se a Jihad fosse uma espécie de Cruzada ao contrário, um conflito com o objectivo de converter o mundo inteiro ao Islão através da espada.

Pelo contrário, o Corão coloca a defesa das pessoas, da comunidade e de todos os Muçulmanos como base fundamental de qualquer ação militar. Neste sentido, é permitido o uso da força exclusivamente como legítima defesa, para proteger a liberdade dos Muçulmanos de poder praticar a fé deles e contra a opressão de qualquer tirano ou para punir um inimigo que quebrou um juramento (traição).

Em contrapartida, uma acção militar que tenha como objectivo obrigar os infiéis à conversão, conquista de outras Nações ou territórios para ter um ganho económico, não pode ser considerado como Jihad (Corão, Sura II, versículo 256).

A Jihad como acção defensiva é certamente a vertente mais violenta mas existem regras muito rígidas que não podem ser evitadas:

Considerando esses pontos, ficam claras as diferenças entre a verdadeira Pequena Jihad e as acções militares ofensiva que vários grupos extremistas como os terroristas radicais do Isis ou de Boko Haram. Simplesmente, estes não são jihadistas e nem respeitam os preceitos do Corão.

As 72 virgens

Praticamente todos os Muçulmanos acreditam que a legítima defesa do Islão envolve recompensas no Além. A base desta crença foram as palavras de Maomé antes da batalha de Badr:

Eu juro por Aquele que detém nas mãos a alma de Maomé que Deus fará entrar no Paraíso todos os que hoje combatem e serão mortos com sofrimento na dura prova matam os inimigos vai lutar e morrer no sofrimento procurando o consentimento de Deus, avançando e não recuando.

A recompensa seria constituída, na óptica ocidental (e, verdade seja dita, também entre os Muçulmanos menos cultos), por 72 virgens, rios de leite e mel, abundância de fruta fresca e outras amenidades.

Na verdade, o Corão nunca fala de 72 virgens mas de Huri (e nem cita o número): espíritos parecidos com mulheres jovens (cuja natureza seriam o açafrão, o âmbar, a cânfora, etc.), manifestações físicas de ideais, que não envelhecem, que servem como companheiras fiéis, transparentes até a medula dos seus ossos.

Portanto, algo diverso das 72 prostitutas da imaginação popular.
E no Paraíso há também espíritos masculinos, os ghilmān (Corão, Sura LII, v. 24). Pelo que, um mártir arrisca…

O martírio

E a propósito de mártires.

A maioria dos estudiosos islâmicos rejeita o martírio pela simples razão que o suicídio é pecado no Islão, tal como no Cristianismo. E os estudiosos concordam acerca do facto que as operações de martírio (como fazer-se explodir) são equivalentes ao pecado de suicídio. Além disso, a morte de civis é um pecado e a Sunna (o “caminho recto”) não permite nem uma coisa nem outra.

A ilegalidade das operações dos homes-bomba é clara:

Qualquer pessoa que deliberadamente se atire dum monte para se matar, vai ficar no Fogo [no Inferno islâmico, ndt], caindo nele eternamente e aí permanecendo para sempre; e qualquer um que beba veneno para matar-se vai traze-lo com ele para bebe-lo no Fogo, onde permanecerá para sempre; e qualquer um que se mate com armas de ferro trará consigo facadas no abdómen para o Fogo, onde permanecerá para sempre. (Bukhari 7: 670)

É claro que as nossas ideias acerca de Jihad, virgens e martírio pouco ou nada têm a ver com os preceitos originais do Corão ou das interpretações dos mais distintos teólogos muçulmanos. Como consolação, há diversidade nos pontos de vista interiores ao mesmo Islão.

‘Abd Allāh Yūsuf al-‘Azzām, por exemplo, é um fundamentalista palestiniano, inspirador das teses de Osama Bin Laden e de Ayman al-Zawahiri (o sucessor de Bin Laden). Yūsuf al-‘Azzām é uma figura importante porque, contrariando os preceitos originais, tem radicalizado algumas vertentes islâmicas. Por exemplo, admitindo a Jihad ofensiva:

A jihad contra os infiéis é de dois tipos: a Jihad ofensivo (onde o inimigo é atacado no seu território) […] e a jihad defensiva. (Abdullah Yusuf al-‘Azzām, Defesa das terras islâmicas: a primeira obrigação de acordo com a )

Como vimos, algo contrário aos ensinamentos do Corão e não só.
Afirmar que a Jihad ofensiva, a “guerra santa”, é um dos pilares do Islão é como dizer que na base do Cristianismo está a Inquisição.

Os mártires do Islão são indivíduos manipulados, que ficam longe dos ensinos originais do Islão, os mesmos que regulam a vida da esmagadora maioria dos Muçulmanos. Um “kamikaze jihadista” é muito simplesmente uma pessoa que não conhece o Islão.   

Mas acerca disso há algo importante que tem que ser realçado.

Os Wahabistas

‘Abd Allāh Yūsuf al-‘Azzām, após o doutoramento no Egipto, foi para a Jordânia, donde foi expulso por causa da sua visão radical. Mudou-se então para a Arábia Saudita onde foi bem acolhido pelo Rei Faisal. Não é um acaso: a casa real saudita, tal como todas as monarquias do Golfo, é wahabista (e Bin Laden, membro da casa real saudita, era Wahabista, tal como os Talibãns do Afeganistão).

O Wahabismo é o ramo mais atrasado do Islão, há muito indicado como fonte do terrorismo internacional (European Parliament identifies Wahabi and Salafi roots of global terrorism; Terrorism: Growing Wahhabi Influence in the Unites States); é acusado de ter provocado divisões no seio do Islamismo (considera os não-wahabistas como apóstatas: na prática são apóstastas a enorme maioria dos Sunitas e todos os Xiitas, quase todos os Muçulmanos); é acusado da destruição de monumentos históricos (exactamente o que faz o Isis), construções islâmicas não wahabistas e não islâmicas.

Obviamente, os wahabistas (Arábia Saudita, Oman, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Qatar, Barhein) são os melhores aliados ocidentais no Oriente Médio. São eles os Árabes que investem as maiores quantias de dinheiro nas Bolsas do planeta. Não admira que as nossas ideias acerca do Islão sejam um pouco “confusas”.
E o Isis também é wahabista.

 O Achtiname de Muhammad

Para completar o discurso acerca da Jihad e o Islão, eis um documento muito antigo, o Achtiname de Muhammad, também conhecido como o Pacto ou Testamento do profeta Maomé: trata-se dum documento escrito pelo profeta islâmico Maomé.

Achtiname é uma palavra persa que consiste em duas partes: آشتی (Ashti) que significa paz e نامه (Nameh), que significa Livro ou Carta; portanto, Ashti + Nameh آشتینامه tem o sentido de “Livro ou Carta da Paz”.

Segundo a tradição dos monges de S.ta Catarina do Sinai, Muhammad frequentava o mosteiro deles e tinha excelentes relações e discussões com os padres. Com o Achtiname, o Profeta concedia pessoalmente no ano 626 d.C. direitos e privilégios  todos os Cristãos,  “distantes ou próximos”.

De facto, o documento consiste de várias cláusulas sobre temas como a protecção dos Cristãos que vivem sob o domínio islâmico, bem como dos peregrinos a caminho de mosteiros, a liberdade de culto e de movimento, a liberdade de nomear os seus próprios juízes e de possuir e manter as suas propriedades, a isenção de taxas e do serviço militar e o direito à protecção em caso de guerra. O documento é assinado com a palma da mão do profeta.

Conhecido no Ocidente desde 1557, com os relatos do monge francês Greffin Affagart, foi mais tarde publicado em Latim por Gabriele Sionista em 1630 com o nome de Testamentum et pactiones inter Mohammedem et Christianae fidei cultores. E o Achtiname não é o único documento no seu género: como exemplo, pode ser citada a Carta de Maomé aos Cristãos de Najrān (Arábia Saudita). 

O seguinte texto é baseado na tradução de Anton F. Haddad, de 1902, considerada a melhor.

Esta é uma carta que foi escrita por Muhammad Ibn Abdullah, o Mensageiro, o Profeta, o Fiel, e que é enviada a todas as pessoas como palavra de Deus [Allah, ndt] para as Suas criaturas.

Pois Deus é o Poderoso, o Sábio.

Esta carta é dirigida aos embaixadores do Islão, como uma aliança dada aos seguidores do Nazareno [Jesus era reconhecido pelo profeta Muhammad como seu igual e os Muçulmanos costumam indica-Lo como Nazareno, ntd], no Oriente e no Ocidente, para aqueles próximos e longínquos, árabes e estrangeiros, conhecido e desconhecidos.

Esta carta contém o juramento dado a eles [os seguidores do Nazareno, ndt] e aquele que desobedece ao que está escrito será considerado um rebelde e um transgressor da fé. Será considerado como aquele que corrompeu o juramento de Deus, ou a Sua vontade, que rejeitou a Sua autoridade, desprezado a Sua religião, e tornou-se digno da Sua maldição, seja ele um sultão ou qualquer outro crente do Islão.

Sempre monges, fieis e peregrinos se reúnam, seja numa montanha ou num vale, toca ou lugar frequentado, ou simples, ou igreja, ou em locais de culto, na verdade Deus está sobre eles e os protege, e Ele protege a propriedade e a moral deles, até de mim mesmo, dos meus amigos e dos meus assistentes, porque estão sujeitos à minha proteção. Eu isento-os de actos que os possam perturbar; encargos que são pagos por outros como juramento de fidelidade. Eles não devem entregar nada dos seus rendimentos, mas o que lhes agrada, não devem ser ofendidos ou perturbados, ou forçados ou obrigados. Os seus juízes não devem ser modificados ou impediu de realizar os seus ofícios, nem os monges perturbados no exercício da sua ordem religiosa, ou pessoas de clausura serem presos na casa das suas celas. Ninguém está autorizado a pilhar os peregrinos, ou destruir ou arruinar uma das suas igrejas ou casas de culto, ou tomar qualquer das coisas que são estas no interior destas casas e levá-lo para a casa do Islão. Quem tirar delas, vai ser aquele que corrompeu o juramento de Deus, e, na verdade, desobedece ao Seu Mensageiro.

As taxas não devem ser colocados sobre os seus juízes, monges, e sobre aqueles cuja ocupação é a adoração de Deus; nem qualquer outra coisa pode ser tomada deles, quer seja dum bem, um imposto ou uma lei injusta. Em verdade, eu vou manter a unidade deles, onde quer que estejam, no mar ou em terra, no Oriente ou no Ocidente, no Norte ou no Sul, porque eles estão sob a minha proteção e o meu testamento dá-lhes a minha segurança contra todas as coisas que são abominadas. Nenhum imposto ou dízimo devem ser recebidos por aqueles que são dedicados à adoração de Deus nas montanhas, ou daqueles que cultivam a Terra Santa. Ninguém tem o direito de interferir com o negócio deles, ou tomar qualquer acção contra eles. Na verdade, isso é para qualquer outra coisa e não para eles; em vez disso, nas estações do cultivo, deve ser dado um Kadah por cada Ardab [cerca de cinco toneladas e meio, ndt] de trigo como um fundo para eles, e ninguém tem o direito de dizer que isso é demais, ou pedir-lhes para pagar impostos. Para aqueles que possuem propriedades, os ricos e os comerciantes, as taxas que podem ser aplicadas não deve exceder doze Dirham [moeda da época, ndt] por pessoa por ano.

Não pode ser obrigado ninguém a iniciar uma viagem, ou ser forçado a ir para a guerra  ou ao uso das armas por conta dos Muçulmanos, qualquer um tem que lutar pelas suas razões, não as dos outros. Os seguidores do Islão não devem fazer disputa ou discutir com eles, mas regular-se segundo os versos gravados no Corão. Eles não devem ser forçados a transportar armas ou pedras; mas os Muçulmanos devem proteger-los e defendê-los contra os outros. Se uma mulher cristã for casada com um Muçulmano, o casamento não deve ter lugar a não ser após o consentimento dela, e ela não deve ser impedida de ir à sua igreja para a oração. As suas igrejas devem ser honradas e não deve haver nenhum obstáculo na construção de locais de culto ou reparação do seus conventos.

Cabe a cada um da nação do Islão não contradizer e respeitar o juramento até o Dia do Juízo e do Fim do Mundo. 

Sem dúvida é algo muito distante dos fanáticos utilizados nos combates ou nas acções terroristas: o Islamismo é uma religião tolerante, mais do que o Cristianismo do Novo Testamento (para não falar do Hebraísmo).

Do Corão:

Sura II, 62 Os fiéis, os judeus, os cristãos, e os sabeus, enfim todos os que creem em Deus, no Dia do Juízo Final, e praticam o bem, receberão a sua recompensa do seu Senhor e não serão presas do temor, nem se atribuirão. 

Sura III, 199 Entre os adeptos do Livro [Cristão, Hebraicos e Muçulmanos, ndt] há aqueles que crêem em Deus, no que vos foi revelado, assim como no que lhes foi revelado, humilhando-se perante Deus; não negociam os versículos de Deus a vil preço. Terão sua recompensa ante o seu Senhor, porque Deus é Destro em ajustar contas.

Sura V, 47 Que os adeptos do Evangelho julguem segundo o que Deus nele revelou, porque aqueles que não julgarem conforme o que Deus revelou serão depravados.

Esta último é particularmente interessante porque nela Maomé admite que os Cristãos possam continuar a seguir os preceitos do Evangelhos: podem encontrar algo semelhante no Cristianismo?

Sura XXIX, 46 E não disputeis com os adeptos do Livro, senão da melhor forma, exceto com os iníquos, dentre eles. Dizei-lhes: Cremos no que nos foi revelado, assim como no que vos foi revelado antes; nosso Deus e o vosso são Um e a Ele nos submetemos. 

Portanto, o Corão encara Cristãos e Hebraicos como fiéis que erram, pois não seguiram o caminho ditado pelo Livro (a Torah e os Evangelhos, mais no geral: a Bíblia). Isso ajuda a entender o Achtiname e todos os documentos similares de Maomé: mesmo errando, Cristãos e Hebraicos são pessoas que receberam a palavra de Deus e, portanto, não podem ser perseguidos. O único que pode julgar e, eventualmente, intervir é Deus, não o homem.

Isso não deve surpreender pois, como já afirmado, existem outros documentos parecidos: a citada Carta aos Cristãos de Najrān (contida nas Crônica de Seert) e a Constituição de Medina são outros exemplos de como a tolerância religiosa esteja na base do Islão (desde que este não seja a versão wahabita…).

Infelizmente, como demasiadas vezes aconteceu na História, os princípios religiosos foram e ainda são interpretados de forma instrumental, com as consequências que podemos observar. Pouco ou nada sobra dos ideais evangélicos na nossa sociedade e também no caso do Islão a situação é muito complicada. Juntamos a isso a ignorância ou a preguiça da maioria das pessoas que acreditam só naquilo que relatam os media e eis que o inimigo está encontrado.

Hoje, um jornalista pode escrever num diário dos Estados Unidos que “a Jihad no sentido de expansão territorial sempre foi um aspecto central na vida muçulmana” e ninguém encontra nada a dizer: apesar desta ser uma idiotice de todo o tamanho, é tranquilamente aceite como sendo “verdade histórica”.

Ipse dixit.

Fontes: no texto.