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A religião mata?

Vou “chamar-me” fora dos massacres de Paris.

Tudo o que tinha ser dito foi dito e não haverá novidades ao longo das próximas semanas ou talvez
meses. Teremos a guerra na Síria, sem dúvida, e no Iraque: mas acerca dos massacres de Paris nada mais. Só confirmações: para quem acredita ter sido um ataque “apenas” islâmico (a teoria dos media) e para quem procura mais além do óbvio.

Sem dúvida: serão identificados todos os terroristas (radicais islâmicos), provavelmente será reconstruida a rota seguida pelas armas, serão descobertas bases na França, na Bélgica, na Alemanha, até serão indicados as possíveis mentes atrás do crime (sempre do Isis); e, enquanto isso, o Estado Islâmicos sofrerá recuos no terreno, talvez algo mais do que isso. Mas nada capaz de mudar duma vírgula a teoria até aqui aceite, aquela pela qual tudo não passa duma acção dos “loucos” do Estado Islâmicos.

Pelo que, vamos em frente. Aliás: atrás.
Pergunta: a religião é a raiz de todos os males? Não se fala aqui da religião islâmica, mas da religião no geral, da Fé.

Religião contra ateísmo 

Encontrei uma análise no site italiano Anticorpi. Uma análise interessante, suportada por dados, que observa o contraste entre religião e ateísmo. Uma análise errada do meu ponto de vista. Mas vamos ver qual a tese.

O ponto de partida é um ensaio (The Negative Association between Religiousness and Children’s Altruism across the World) publicado no passado mês de Maio na revista Current Biology, segundo o qual a religião tem efeitos negativos no altruísmo das crianças. Conforme determinado por um grupo de pesquisadores liderados pelo Dr. Jean Decety, um neurocientista da Universidade de Chicago, a religião pode incentivar as pessoas a fazer mal, porque estas ficariam convencidas de que já fizeram algo “bom” (como orar) numa outra altura. Em contraste, o ateísmo parece produzir maior tolerância e generosidade nas pessoas.

Desculpem, eu religioso não sou (aliás, tenho uma religião toda minha), mas parece-me uma emérita idiotice. Verdade, eu nem sou neurocientista: mas parece-me uma emérita idiotice na mesma. Continuemos: ao que parece, para desmistificar esta teoria dados não faltam.

O estudioso Gregory Koukl escreveu recentemente que “a alegação de que a religião teria causado a maior parte da violência e assassinatos na História, é empiricamente falso”. No seu estudo, Koukl calcula o número de pessoas mortas nos acontecimentos mundiais que envolveram a religião e compara o resultado com o número de pessoas mortas por regimes caracterizados por serem “Estado militante” ou ateus.

O Comunismo

Segundo o diário francês Le Monde, apenas nos regimes comunistas do século XX, o ateísmo matou 60 milhões de pessoas por meio de genocídios. De acordo com O Livro Negro do Comunismo e o bestseller do ex-agente do FBI e cientista político Cleon Skousen, The Naked Communist, as vítimas dos regimes ateus do século XX seria mais de 100 milhões.

Outras fontes estimam que, ao longo dos últimos 100 anos, os governos sob a bandeira do Comunismo ateu podem ter causado um número de mortos que varia entre 40.472.000 e 259.432.000 (algumas destas fontes: How Many Did Communist Regimes Murder? de R.J. Rummel; The Human cost of Communism – 100 Million, Indymedia; Source List and Detailed Death Tolls for the Primary Megadeaths of the Twentieth Century, Necrometrics; The Black Book of Communism: Crimes, Terror, Repressionby de Ronald Radosh).

Doutro lado, o mesmo Marx deixou clara as intenção do Comunismo: não apenas definiu a religião como “o ópio do povo”, como também (nos Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844) acrescentou que: “O Comunismo começa desde logo com o ateísmo”.

Os massacres cometidos na época da Revolução Francesa inspiraram Karl Marx na redação do Manifesto Comunista. Durante uma correspondência com Frederick Engels escreveu:

Há apenas uma maneira de encurtar, simplificar e concentrar a agonia da velha sociedade e as dores sangrentas do parto do novo revolucionário reinado do terror […] Uma vez no comando, seremos forçados a reencenar o  ano de 1793. […] Nós somos implacáveis ​​e não pedimos misericórdia. Quando o nosso tempo chegar, não vamos esconder o terrorismo com frases hipócritas. A vingança do povo irá sair com tal ferocidade que nem o conhecimento histórico do ano 1793 permite prever o impacto.

Paradoxalmente, a vingança do povo teve como vítima principal o mesmo povo. Mas Marx cita a Revolução Francesa: então vamos vê-la um pouco melhor nesta conta dos mortos.

A Revolução Francesa

A Revolução Francesa instituiu um reinado de terror, anti-católico e anti-cristão. Como sabemos, o ateísmo desempenhou um papel muito importante na filosofia que inspirou a Revolução, baseado principalmente numa ideologia que foi chamado de “culto da razão”; durante o reinado do terror muitos religiosos foram perseguidos e condenados à guilhotina.

Embora o caso mais conhecido de ligação entre ateísmo e extermínios em massa seja representado pelos regimes comunistas, a Revolução Francesa, e o subsequente reinado do terror inspirado pelos trabalhos de Diderot, Voltaire, Rousseau e Sade em nome do secularismo e do ateísmo militante, foi o arquiteto da perseguição e do extermínio de grandes grupos de pessoas. Os números oficiais indicam que 300 mil franceses foram mortos apenas durante o reinado de terror de Robespierre (no total da Revolução foram 600 mil). A guilhotina não se limitou a atacar a aristocracia, culpada de “querer dar os croissants às pessoas com fome”. Os números oficiais afirmam que 297.000 pessoas mortas durante esse período pertenciam à classe médio-baixa. No total dos executados, apenas 8% pertenciam à aristocracia: mais de 30% eram camponeses.

A China

Um grande salto para chegar até o outro lado do Globo.
Apenas dois anos após a proclamação da República da China (01 de Outubro de 1949), após a invasão do território tibetano pelas tropas de Mao, os delegados chineses e tibetanos assinaram em Pequim um acordo de 17 pontos, conhecido na China como o Tratado de Libertação Pacífica do Tibete, com o qual o governo de Lhasa reconhecia a soberania chinesa no seu território desde que o Tibete pudesse manter a autonomia política interna.

O acordo foi, no entanto, repudiado logo por ambas as partes e a presença chinesa começou a ser cada vez mais intolerante, especialmente contra as práticas budistas. O de 1959 foi um ano dramático para o Tibete: no dia 10 de Março, a população de Lhasa (a capital tibetana) rebelou-se perante um novo abuso do governo de Pequim e o resultado foi arrepiante, com um milhão e duzentas mil pessoas que conheceram a morte e o Dalai Lama, a mais alta autoridade teocrática tibetana, que foi forçado a fugir para a Índia.

Em conclusão, afirma a análise, se a raiz da brutalidade humana estiver na religião, os assassinatos em massa cometidos durante os regimes inspirados pelo ateísmo racionalista não deveriam existir. Fanatismo e religião, de facto, também causaram um número assustador de vítimas no curso da história humana, mas os regimes ateus não ficaram atrás.

As ideias não matam

Até aqui a análise. Que, repito, está errada porque extremamente superficial.

A primeira falha é comparar um sistema baseado na fé e um baseado num credo político. São coisas diferentes: um ateu não tem que ser obrigatoriamente Comunista.

A segunda falha é escolher apenas duas faces da religião e do ateismo: a religião Cristã e o Comunismo. Tal como uma pessoa atea não deve ser obrigatoriamente comunista, um religioso pode não ser cristão (o Iluminismo já fez o seu tempo). O âmbito da reflexão, portanto, é extremamente limitado e não significativo.

Depois, pensar numa religião ou no ateísmo como algo que provoca o “Mal” é muito ingénuo: significa excluir, por exemplo, a tendência a utilizar tanto um quanto o outro como meios para obter outros fins. Nomeadamente, a História ensina que são os fins políticos e económicos que determinam o surgimento do “Mal” no seio das religiões ou do ateísmo.

Se observarmos a intrusão do Catolicismo na América Latina desde os primórdios, é possível ver como este sempre tenha actuado ao lado do poder temporal, isso é, ao lado do poder da realeza antes e do sistema capitalista depois. Não é possível considerar a religião como algo isolado, porque assim nunca foi. A religião em si não é negativa; torna-se negativa na altura em que é utilizada como instrumento de controle e de condicionamento das massas.

Mas a análise, mesmo sendo já por si muito limitada, falha num ponto crucial: não reconhece que também o Comunismo é uma fé, com os seus santos e os seus mártires. Uma ocasião perdida, pois a citada Revolução Francesa demonstra como o excesso de “racionalismo” possa também constituir a base de fanatismos e de dogmas que em nada ficam atrás da religião. Apesar do seus militantes recusarem esta ideia e ficarem histéricos perante tal afirmação, o Comunismo sofre do mesmo problema da religião: quando utilizado apenas como um instrumento de mero poder e repressão interna (o que aconteceu na antiga URSS), mostra o seu lado mais negro. E é possível estender o conceito até incluir a maioria dos “-ismos; qualquer um deles pode tranquilamente substituir a fé num Deus com a fé no raciocínio ou num ideal político, com as mesmas consequências.

O Comunismo, o Iluminismo, Fascismo, o Nazismo e todos os “-ismos” no geral têm dogmas, revestidos com uma camada de racionalismo e por isso ainda mais insidiosos e difíceis de individuar. Mas isso é perfeitamente normal: está na natureza do Homem procurar certezas e aceita-las sem demasiadas perguntas. Porque não ter certezas, ser absolutamente ateu tanto no lado religioso quanto no político, é tarefa que requer esforço.

Aqui encontra-se o perigo: tanto o religioso quanto o ateu politizado têm a propensão para ser manipulados. E aqui começam os problemas. Os problemas não estão na religião ou no ateísmo: estas são “ideias”. Não são as ideias que matam, são os indivíduos que casam sem reservas determinados dogmas, em nome dos quais são condicionados até o extremo. Uma pessoa nestas condições pode ser utilizada como perfeito instrumento de propaganda e de controle, estando disposta a enfrentar qualquer obstáculo e a perpetrar qualquer tipo de violência em nome da sua fé.

Pode haver determinadas religiões ou políticas que assumem a violência como elemento estrutural: mas são poucas, de certeza a minoria, e geralmente destinadas ao insucesso no médio ou longo prazo. Todavia, todas podem ser objecto de instrumentalização: nestes dias temos debaixo dos olhos o caso emblemático do Islamismo.

Mas não adianta procurar álibis: em última análise, a violência é filha do homem, sendo este e não as ideias a fonte primária dela. Em particular, o homem mata por fazer um errado uso das suas ideias.

Ipse dixit.