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A fosfoetanolamina sintética

Diz o Leitor Ferreira:

Gostaria de ver um post seu sobre a fosfoetanolamina sintética

E eu também! Só que nada sei do assunto, o que é triste. Não é por nada, mas aqui está um dos meus pontos fracos: Química. Não é tão ruim como a Matemática, mas anda lá muito perto, sem dúvida…

Mas o assunto é interessante, pelo que tentamos entender alguma coisa.

A fotosfoetanolamina, esta desconhecida.
Começamos com encurtar o nome: FS, a versão sintética, ok? A questão FS é quase totalmente desconhecida fora do Brasil. Pelo que: vamos ver o que dizem no Brasil acerca disso. E vamos ver alguém que apresenta boas ideias.
Vamos ver e ouvir.



Excelente vídeo, não pelos tons mas pela clareza.
Primeira questão: a FS não é um medicamento e nem pode sê-lo até passar pelo processo de reconhecimento que, como vimos, é bem preciso.

O que é a fosfoetanolamina?

E já que falamos do assunto: mas afinal o que raio é esta fosfoetanolamina?
Diz a sábia Wikipedia:

A fosfoetanolamina é um composto
químico orgânico presente no organismo de diversos mamíferos, convertido
usualmente em outras substâncias que formam as membranas das células.
Do ponto de vista bioquímico, trata-se de uma amina primária envolvida
na biossíntese de lipídeos. Além dessa função estrutural de formar a
membrana celular, ela possui ainda uma função sinalizadora, ou seja, a
fosfoetanolamina informa o organismo de algumas situações que as células
estão passando.

É mesmo esta função sinalizadora que interessa na eventual cura contra o câncer. Mais logo veremos a razão. Mas continuemos.

A
fosfoetanolamina foi sintetizada pela primeira vez por Cherbuliez (não
perguntem que é) e colaboradores em 1970 e
actualmente é produzida em escala industrial pelo laboratório Santa Cruz
Biotechnology dos EUA em Dallas, Texas. Depois Wikipedia acrescenta:

No
Brasil, a fosfoetanolamina não possui registro na Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) e, por esse motivo, não possui bula e nem
pode ser comercializada.

deixando quase entender que
nos EUA navegam num mar de FS vendida nas farmácias. O que não está
correcto, pois no site da Santa Cruz Biotechonology está escrito de forma clara:

Não destinada a diagnósticos ou usos terapêuticos. 

A Santa Cruz Technology vende a FS como produto químico útil nas pesquisas, não como medicamento. E pode ser adquirida a partir de qualquer ponto do globo: não há nenhuma conspiração que torne esta substância indisponível.
Ainda Wikipedia:

Pode ter função antitumoral, ou seja, ação antiproliferativa, e estimular a apoptose [é um tipo de “auto-destruição celular”, ndt].

E aqui, como muitas vezes acontece, Wikipedia põe a pata na poça. A expressão “pode ter função antitumoral” é demasiado genérica e pode criar falsas expectativas. Além da FS ter apresentado resultados satisfatórios na leucemia dos ratos (não nos humanos, onde nunca foi testada para este fim), foi experimentada apenas in vitro ou nos ratos; isso é, em laboratório e em condições muito particulares (na prática: com um microscópio).

A única experiência conduzida fora dos tubos de ensaios que encontrei é aquela de 2011, realizada na USP pela equipa do Dr. Gilberto Orivaldo Chierice. A experiência, relatada no Brazilian Archives of Biology and Technology, foi conduzida utilizando ratos, como afirmado, com carcinoma de Ehrlich (que é um câncer típico dos ratos, não dos humanos); no final da pesquisa, a equipa escreveu o seguinte:

Considerando-se que o tumor de Ehrlich é um tumor […] dos ratos, os presentes dados indicam o papel também promissor da PETN [a FS, ndt] no controlo da neoplasia humana.

Portanto, estamos perante um resultado promissor, não dum tratamento.

Promissora, mas…

Existem muitas substâncias promissoras neste sentido:

E a lista poderia continuar.

Todas estas substâncias oferecem óptimos resultados em laboratório, em alguns casos espectaculares também: mas entre um resultado promissor e um medicamento eficaz há muitos anos de pesquisa.
Todas estas substâncias promissoras não são boicotadas pelas multinacionais do fármaco: mais simplesmente, estão a seguir o mesmo percurso já indicado antes. Estudos, experimentação, testes em laboratório, com animais, depois com seres humanos, etc.
  
Agora: muitas vezes criticamos a indústria farmacêutica pela atitude irresponsável com a qual comercializa produtos que depois têm efeitos colaterais perigosos, mortais até. Isso acontece porque demasiadas vezes a lobby das farmacêuticas consegue exercer uma pressão tal que o lucro das empresas fala mais forte do que a Ciência. De repente, na internet encontramos blogues e sites que pedem que a FS, um composto químico nunca testado nos homens, seja vendido regularmente nas farmácias. É uma atitude bastante estranha: é a mesma estrada batida pelas farmacêuticas para fazer aprovar medicamentos duvidosos para encher os seus cofres.

Por qual razão é uma atitude estranha? Por esta razão:

elaborado pelo Dr. Felipe Ades

Este é o percurso que uma substância tem que percorrer antes de poder ser considerada “medicamento”. Faz sentido? Sim, faz todo o sentido, pela simples razão que não desejamos ser intoxicados ou mortos por substâncias que não foram devidamente experimentadas e nem desejamos tomar medicamentos inúteis sem efeito algum. É para isso que existe este percurso.

E acreditem: as casas farmacêuticas estariam bem felizes de vender toneladas de FS, como cura ou ainda melhor como eventual profilaxia, para realizar lucros fantásticos. Mas não podem, simplesmente porque ninguém sabe, entre outras coisas, se a FS:

E isso nem é tudo, são apenas alguns exemplos.
Tanto para ter uma ideia, a FS em condições normais deve ser acompanhada por um rótulo com indicações do tipo:

e outras coisas simpáticas: não estamos a falar dum rebuçado, esta é uma substância que deve ser utilizada com precaução.

Uma situação bem esclarecida pela mais importante instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina, a Fio Cruz:

Em função de informações equivocadas que estão circulando na
imprensa, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) esclarecem
que o medicamento feito a partir da substância química fosfoetanolamina,
apresentado como uma alternativa terapêutica para diversos tipos de
neoplasias (câncer) por cientistas do Instituto de Química da
Universidade de São Carlos (USP), ainda necessita de uma série de
estudos para ser considerado eficaz ou seguro para o uso clínico. Em
novembro de 2013, a Vice-presidência de Produção e Inovação em Saúde da
Fundação realizou uma reunião com a equipe da USP para conhecer o
projeto de desenvolvimento do medicamento. Na ocasião, o grupo
manifestou a intenção de identificar um laboratório para a produção, em
escala industrial, de cápsulas contendo o sal de etanolamina, que já
teriam sido utilizadas em pacientes com diversos tipos de neoplasias e
teriam apresentado bons resultados.

A Fiocruz ressalta que, para determinar se a substância é ou não uma
alternativa terapêutica para o combate a neoplasias ou qualquer doença,
são necessários, primeiramente, estudos precedidos de aprovação do
Comitê de Ética (Conep), com protocolo de pesquisa clínica aprovado pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Portanto, ainda não é
possível levantar considerações ou garantias, sem uma série de estudos
pré-clínicos e clínicos, sobre a eficácia e a segurança terapêutica do
uso clínico de cápsulas com sal de etanolamina no combate ao câncer.
E se…?

Mas consideremos um absurdo: o que aconteceria se o FS estivesse disponível nas farmácias desde já?

Partimos do básico: qual a dose necessária para “tratar” o câncer? Alguém sabe isso? Não, ninguém, nem Orivaldo Chierice. Na internet circula também um vídeo onde fala o produtor (ilegal) das pílulas de FS distribuídas gratuitamente; no vídeo é entrevistado também um agente imobiliário que afirma ter sido tratado com tais comprimidos. É esta uma prova? Não, de todo. E entender a razão é simples.

Há muitos anos conheci um homem que tinha sido atacado pelo câncer em fase terminal. Após ter recebido a notícia, o homem entrou em desespero e começou a beber aguardente (grappa, pois ainda me encontrava em Italia) ao ponto de ficar bêbedo dia e noite. Após uns meses, novas análises e surpresa: o câncer tinha desaparecido! O homem pensou logo que o mérito fosse da aguardente.

Agora, sendo esta histórica verídica, estou eu autorizado a preparar um vídeo no qual afirmo além de qualquer dúvida que a aguardente cura o câncer? A preparar pílulas de aguardente sintética, convidando também a viúva do homem (que depois morreu com cirrose, como é óbvio) em qualidade de testemunha? Posso gritar que há uma conspiração das multinacionais do fármaco que não podem patentear a grappa e deixam as pessoas morrer de câncer? A resposta é óbvia. Mas é exactamente isso que se passa no vídeo, o qual nem fala das pessoas que tomaram os comprimidos e se calhar morreram na mesma; ou dos efeitos secundários que estas sofreram.

Esquema de funcionamento da fosfoetanolamina sintética

Continuemos.
Imaginem que as pílulas de FS tenham efeitos secundários devastadores. De quem a responsabilidade? Porque alguém tem que ser culpado, justo? A responsabilidade seria de quem aprovou a comercialização do medicamento, claro. Assim, os “conspiracionistas” pretendem que alguém ponha a assinatura num documento que permita a venda dum “medicamento” que nunca foi submetido a testes nos homens. Há entre os Leitores alguém disposto a assumir a eventual responsabilidade pela morte de pacientes? Mas quem é o louco (e criminoso) que arriscaria isso?

É óbvio que uma pessoa com câncer em fase terminal esteja disposta a tudo, tal como os parentes deles: o que há para perder? Perante a morte a racionalidade desaparece e uma pessoa encara o desconhecido e os riscos implícitos se isso pode significar uma possibilidade de sobrevivência, por remota que seja. Pessoalmente, se estivesse nestas condições, faria exactamente o mesmo.

Mas tentamos ver os dois lados da moeda: o que pensaria o Leitor dum Estado, o seu Estado, que permite a livre venda dum medicamento com eficácia e efeitos secundários (sobretudo estes: a morte é um efeito secundário bastante pesado…) totalmente desconhecidos? Do qual nem se conhecem as doses terapêuticas? Quantos que hoje acusam o Governo de recusar a “cura” atirar-se-iam contra o mesmo Governo no caso dum medicamento que ou mata ou não tem os efeitos esperados? Quantos começariam com teorias conspiracionistas, do tipo “afinal o medicamento vendido não é idêntico ao original porque as multinacionais bla bla bla…”?

Dum Governo, qualquer Governo, é esperada máxima responsabilidade, sobretudo quando o assunto for a saúde dos cidadãos. Responsabilidade significa também vender um medicamento após ter tido determinadas certezas.

A má vontade

Dr. Gilberto Orivaldo Chierice

Ao lado destas considerações há outras, derivantes dos acontecimentos que veem envolvida a Universidade de S. Paulo (USP), o grupo de pesquisadores, a ANVISA (a agência reguladora do Ministério da Saúde do Brasil que viabiliza a comercialização dos medicamentos).

A ANVISA afirma que nunca foi formalmente contactada, enquanto o Dr. Chierice (líder da equipa de pesquisa) diz o contrário. É a palavra dum contra aquela do outro, difícil estabelecer onde fica a verdade.

De acordo com Chierice, a substância não chegou ao mercado por “má vontade” das autoridades. Ele disse que procurou a Anvisa quatro vezes e foi informado que faltavam dados clínicos:

Essa é a alegação de todo mundo. Mas está cheio de remédios neste país que não têm dados clínicos. 

É uma resposta bastante estranha. O Dr. Chierice, que pode apresentar ampla experiência na área, bem sabe como devem funcionar as coisas. O facto de existir exemplos infelizes não significa que seja preciso continuar na mesma senda, sobretudo se o assunto for algo particularmente delicado como uma doença que mata.

O Dr. Chierice fala de má vontade das autoridades, mas não apresenta dados:

Nos últimos tempos nós fazíamos cerca de 50 mil cápsulas por mês. Isso
equivale, a 60 cada pessoa, a 800 pessoas ou próximo de mil pessoas por
mês. Agora quantas pessoas foram beneficiadas eu não sou capaz de dizer
porque muitas delas, que eram pacientes terminais, estão aí, vivas.
Então não sei dizer quantas pessoas foram curadas.

“800 pessoas ou próximo de mil”, “não sei dizer quantas pessoas foram curadas” são repostas esquisitas tendo em conta que são dadas pelo principal investigador da substância com décadas de experiência. Dum profissional espera-se mais do que isso, sobretudo numa área delicada como esta (e considerando também o facto do mesmo Dr. Chierice ter demonstrado que, quando quer, sabe fazer os testes e analisar os resultados. Perguntem aos ratos).

Assim como esquisito é o facto da equipa ter distribuído o “medicamento” sem colectar dados que pudessem apoiar a sua bondade perante os media e as autoridades. Porque depois o mesmo Dr. Chierice afirma em resposta à pergunta “Essa substância é a cura do câncer?”:

Eu acredito que sim, eu acredito que sim.

Mas acredita com quais dados? Quais testes? Aqueles sobre os ratos? Experimentar um fármaco nos ratos é a mesma coisa de que prova-lo nos humanos? Duvido, com todo o respeito para os ratos que são animais simpáticos.

Como afirma o Doutor: “50 mil cápsulas por mês. Isso
equivale, a 60 cada pessoa, a 800 pessoas ou próximo de mil pessoas por
mês”. Oitocentas pessoas por mês é uma amostra mais do que significativa: por qual razão a equipa do Dr. Chierice não analisou os resultados? Já que as pílulas foram distribuídas de forma gratuita, custava tanto pedir um mínimo de colaboração por parte dos pacientes? Algo simples, como tomar nota dos sobreviventes ou da dose subministrada. Isso não poderia substituir os ensaios clínicos, mas teria posto o Dr. Chierice na condição de fazer hoje afirmações baseadas em alguns factos. Pelo contrário, temos de ficar satisfeitos com algo como “não sei quantas pessoas foram curadas”.

Repito: parece-me bastante estranho. Até porque se a substância for efectiva contra o câncer, seria muito simples para a equipa do Dr. Chierice contactar uma outra autoridade, desta vez não brasileira (dadas as acusações de “má vontade”) e começar os testes já. O câncer não é uma exclusiva brasileira, mas abrange todo o mundo e há milhares de pesquisadores envolvidos, públicos e privados (também em Cuba, como vimos).

Se a FS for efectivamente uma cura, então estamos perante a maior descoberta do século, que sem dúvida dá direito ao Nobel: todas as instituições mundiais estão corrompidas pelas multinacionais do fármaco ao ponto de recusar o tratamento? Também aquela de Havana? Da China? Da Rússia? Uma conspiração global para deixar morrer as pessoas de câncer e impedir que as farmacêuticas realizem lucros fabulosos? Ainda com esta história alucinada da mega-conspiração mundial que quer controlar a população com o câncer? Mas por favor…

O outro pesquisador

Última nota acerca  da patente da substância que é de propriedade do grupo de pesquisa do Dr. Chierice: Salvador Claro Neto (BR/SP) , Gilberto Orivaldo Chierice
(BR/SP) , Antônio José Reimer (BR/SP) , Sandra Vasconcellos Al-Asfour
(BR/SP) , Renato Meneguelo (BR/BA) , Marcos Vinicius de Almeida (BR/SP).

E mesmo este último afirma:

A única coisa que eu quero é deixar claro que se for verdadeiro, falso,
se funciona ou não, que seja concluída a pesquisa até a fase final, de
forma auditada e imparcial. Se não for, tudo bem, a gente vende esse
produto como reagente de laboratório. Se for, a gente dá uma opção para
as pessoas. […] Nunca forneci o composto para parente meu e eu tenho alguns que estão em
quimioterapia. Eu sou cético probabilístico, para mim o que vale é a
palavra final da Ciência. Não estou dizendo que não funciona, estou
vendo as evidências. Porém, não imponho nada que pudesse colocar alguém
em uma situação de risco. Se eu dou para um parente, não estou fazendo o
correto.

Reparem: este é um dos pesquisadores e donos da substância. Facto curioso: ninguém entre os apoiantes da FS se lembra de relatar o parecer do Professor Marco Vinicius de Almeida. Porque será?

Então, ainda convencidos de que seja normal fornecer aos cidadãos uma substância nunca antes testada? Que alguém faça uns testes, no Brasil ou em qualquer outra parte do planeta, para pôr um ponto final (num sentido ou no outro) nesta que não deixa de ser uma questão muito importante (ao que parece, o Governo do Brasil deu o OK em Outubro para começar os tais testes: uma boa notícia, sem dúvida. Agora temos que aguardar).

Ipse dixit.

Fontes: no texto.