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Notas soltas para uma sociedade melhor – Parte I

Raio de mulher, escrevesse uma coisa estúpida de vez em quando…
Eis Maria:

Lamento, gostaria de ter grandes esperanças…não as tenho. Sei que a
coisa deveria começar pela finança […]

Não tem esperança, diz ela. Depois começa com uma excelente descrição de como deveria ser uma sociedade melhor: 

Posso não concordar com tudo, mas ao 90% está aqui a esperança toda! Achas pouco? Uma sociedade assim seria bem melhor daquela que temos hoje. Aliás: seria totalmente diferente, mais justas. É para coisas destas que temos de trabalhar, que temos de ultrapassar os vários e actuais “-ismos” para procurar novos (dado que o ser humano adora rotular tudo).

Estou convencido de que a maior parte dos Leitores concordaria com estas medidas. Talvez não com todas, mas com boa parte delas sim. Mais: estou convencido também que fora do blog muitas destas propostas seriam aceites sem problemas. Ou até com entusiasmo. De novo: talvez não todas, mas boa parte sim. Não achas isso importante? Eu acho.

O que falta é algo (um “-ismo”, uma teoria, um movimento) capaz de reunir todos os pontos (mais alguns) num único corpo. Mas é assim que nascem as mudanças: Marx nunca pensou “ok, hoje vou inventar o Comunismo”. Apresentou algumas ideias, que foram trabalhadas, até que foi possível criar o rótulo (o “-ismo”). Mas na base do seu sucesso encontrou as condições que determinaram a aceitação das ideias dele e as experiências dos outros. É normal que assim seja: se Marx tivesse nascido 100 anos antes, teria sido tratado como um idiota (“Fabrica? O que é uma fábrica?”).

Agora, tu, Maria do Brasil, propões estes pontos. Eu, Max, da Europa, concordo com eles. E somos dois. É pouco para revolucionar a sociedade? Provavelmente sim, dois parece-me pouco.
Mas repara: até poucos anos atrás, tu provavelmente nem pensavas tão seriamente na questão dos juros. Depois houve a crise financeira de 2007, começaste a interessar-te ao assunto e hoje tens uma ideia formada. A sociedade criou as condições para que tu conseguisses hoje imaginar uma sociedade melhor neste aspecto. O mesmo aconteceu comigo e, de certeza, com outros Leitores do blog.
Já não somos dois e a estrada é esta: nem curta e nem rápida, mas esta.

Não há outras maneiras? Não, não há. Que dizer: haveria as revoluções armadas. Que, todavia, são facilmente controláveis por parte de forças ocultas e raramente acabam bem (olha a Revolução Francesa: começaram contra um Rei e acabaram com um Imperador).

As ideias nascem e espalham-se e, sobretudo, interiorizam-se de forma lenta.
Outro exemplo?

O exemplo da Revolução Industrial

A Revolução Industrial começou oficialmente na Inglaterra em 1760: e foi uma verdadeira revolução, no sentido que alterou de forma dramática o modo de vida de milhões de pessoas.

Todavia, para ter as primeiras reivindicações por parte dos trabalhadores (que operavam em condições alucinadas) foi preciso esperar até o ano de 1824, sempre no Reino Unido, com o nascimento das trades unions (os avós dos modernos sindicatos).

Feitas as contas. foram mais de 60 anos, durante os quais com certeza terá havido alguém a queixar-se da “nova ordem”, mas sem que isso produzisse algo de concreto.

Paradoxalmente, os primeiros a tratar das condições dos trabalhadores para melhora-las tinham sido os donos das empresas, preocupados com a queda da produtividade provocada pelos infortúnios: em 1802 tinha havido um dos primeiros encontros entre os empresários e o consequente nascimento do Factory Acts.

Mas até aqui estamos a falar de reivindicações pontuais, nada de “teórico” que encarasse as novas condições de vida para altera-las de maneira radical. Evidentemente, era preciso o aparecimento das condições para que isso acontecesse: os primeiros sindicatos nem conseguiam formar uma frente unida (resultado alcançado apenas em 1871, sempre na Inglaterra).

As condições para o nascimento dum novo “-ismo”começaram a surgir só com a “Primavera dos povos” e a Revolução Francesa de 1848: mas é apenas após a Segunda Revolução Industrial (1856) que nasce uma teoria suficientemente abrangente, completa e dotada de todas aquelas características que permitem encara-la como a chave dum possível futuro: falamos do Marxismo, cujo ponto alto foi a publicação daquele tijolo que é O Capital em 1867.

Já antes tinha havido algumas “faiscas” teóricas neste sentido: o proto-socialismo de Robert Owen no Reino Unido (perto de 1820), o proto-socialismo do francês Henri de Saint-Simon (mesma época), experiências importantes das quais Marx atingirá, mas nada com a mesma espessura do movimento comunista posterior, pois eram tentativas teóricas e práticas até mas amplamente incompletas.

Fazemos outra vez as contas.

Não menos de 100 anos foram necessários para que aquela massa de desgraçados explorados como animais conseguisse ter um “-ismo” portador de novos valores e instrumentos (não apenas teóricos) para melhorar a situação deles.

Naquela altura, a Revolução Industrial já atravessava a sua segunda fase e estava prestes a conhecer as primeiras crises (final de 1800). E enquanto estas últimas apareciam, apesar de já existir uma doutrina completa (o Comunismo), os sindicatos da Inglaterra ainda batalhavam entre eles, pelo menos até 1871.

É verdade: hoje as coisas poderiam processar-se de forma mais rápida, pois vivemos na época da internet, com as notícias e as ideias que circulam com a velocidade da luz. O problema é que o Homem é sempre o mesmo, com todas as suas limitações: precisa de tempo para entender o que se passa, precisa de tempo para organizar o que lhe passa pela cabeça e para preparar uma adequada resposta.

Por isso é aqui que surge a minha objecção:

Portanto…lamento, mas a máxima
continuará sendo: unidos uns contra os outros venceremos.

Eis o problema: unidos quem? Pode parecer o contrário daquilo que defendi antes, mas não é.

Unidos?

Unidos em nome de algo com mais de 150 anos de existência (o “-ismo” do Comunismo, por exemplo)? Mas o Poder já aprendeu há muito a lidar contra este perigo, tem todos os antídotos necessários.

Aliás, estou convencido de que a existência de experiências no sentido comunista ou socialista (de qualquer forma: ligadas aos “-ismos” existentes) seja algo desejado pela classe no poder, por várias razões: afinal está tudo controlado, tudo continua nos carris do conhecido e perfeitamente controlado. Mudar para quê?

Pega no movimento dos BRICS: onde está a novidade nisso? A “multipolaridade”? A multipolaridade é antiga como o mundo e quando baseada nos mecanismos capitalistas do livre mercado (como no caso dos BRICS) sempre conduziu a injustiças, corrupção e sobretudo guerras. Os BRICS são “diferentes” neste aspecto? Sim, sim, com certeza: espreitem o que acontece às famílias de agricultores na África quando chega uma companhia chinesa que compra a terra deles com a cumplicidade do corrupto governo local.

A simples verdade, apoiada pelas abundantes provas históricas, é que as leis do mercado não
perdoam. Nunca e em lugar nenhum: os pobres continuarão a ser pobres. E quem imagina o contrário está só iludido.

(nota: não estou “contra” os BRICS, não é isso que está em causa. Digo só que quem espera no aparecimento duma sociedade radicalmente diferente através disso ficará desiludido, lamento)

Pega na sociedade brasileira: a nova classe média até pouco tempo atrás de média não tinha nada, mas parece que já gosta do novo estilo e tenta tu propor-lhes uma luta “unidos”.

Pega o caso de Portugal: todos unidos contra os “patrões”, vamos para a rua, sim senhor. Depois começam os “mas”: “mas aquele é funcionário público, é um privilegiado”; “mas aquele se queixa e tem um Audi, afinal tão mal não está”, etc. etc.. Aqui o povo, que fartou-se de levar nos dentes, como bem realça Gito no comentário dele, vai votar nos mesmos. Evidentemente ainda sobraram alguns dentes. É isso? Não, não é: é que em vista das eleições o governo prometeu mais e tanto basta para que o povo-boi sonhe com um bem-estar mísero mas do qual não quer abdicar.

O mesmo poderia dizer-te de quem na Italia continua a votar nos dois partidos tradicionais: há muitas, mas mesmo muitas pessoas dispostas a vender-se em troca dum prato de lentilhas.

Por isso pergunto, sem ironia nenhuma: unidos quem? Mas tu achas que os pobres que agora a Dilma ajuda, amanhã continuarão a lutar ao lado dos mais desfavorecidos quando serão classe média, quando poderá ser preciso abdicar de algumas prerrogativas que dão jeito em favor dos outros? Conheço não um mas muitos “comunistas” com vivendas, um bom carro na garagem (mais aquele da mulher), férias com destinos exóticos: e ainda lembro de quando há anos frequentavam os círculos do partido discutindo de Marx e Lenine.

Não estou a dizer que o Homem seja geneticamente mau ou egoísta, não acho isso. Simplesmente, acho que a nossa sociedade criou uma série de níveis intermédios entre as típicas classes, por cada um dos quais existem determinados benefícios: uma vez alcançados estes, ninguém está disposto a larga-los.

Quando Marx escreveu o Capital, a diferença entre as classes era bem mais nítida, sem zonas “intermédias”, e as possibilidades de avançar eram quase nulas. Trotsky falava duma revolução permanente da classe trabalhadora, mas pergunto: qual é a classe trabalhadora hoje? Aquela que afinal pode permitir-se um mês de férias, a televisão com um metro de diagonal, a casa, o carro e o filho na universidade (tudo pago em prestações, claro)?

Estas são as lentilhas astutamente espalhadas para desmantelar o conceito de “classe trabalhadora” ou de “proletariado”, criar a ilusão pequeno-burguesa e fazer que a vontade duma revolução possa existir apenas entre os mais desgraçados, aqueles que não têm meio nenhum para “revolucionar” algo. Assim são mantidos em vidas os actuais “-ismos”, esvaziados de conteúdos mas carregados de bandeiras e boas intenções: uma rotulagem útil para que o povo-boi fique bem enquadrado e pacífico.

Por qual razão nenhum partido fala dum futuro sem livre mercado, sem Finança, sem classes? Porque isso acontece apenas com partidos obsoletos que propõem, mais uma vez, uma teoria com mais de 150 anos e que, como Trotski bem demonstrou há muitas décadas, se aplicada segundo as lógicas actuais leva inevitavelmente a uma ditadura (e não do proletariado…), culto da personalidade e outras aberrações?

Estas são as perguntas que temos de nós fazer. Ou fazer-nos. Nós fazer a nos. Fazer nos-nos.
Mas quem inventou este idioma? 

Solução?

Então, qual a solução?

Na minha óptica, e como ponto de partida, é importante assumir um conceito de base: a classe no poder conhece todos os instrumentos até agora desenvolvidos pelas massas, todas as contra-medidas (todas, sem excepção nenhuma), pelo que é preciso ir além. Um novo “-ismo”, dado que o Homem sempre gosta de rotular.

É claro que um novo “-ismo” não nasce dum dia para outro, como vimos. E, provavelmente, nem tu, Maria, nem qualquer outro Leitor terá a possibilidade de viver numa nova sociedade. Quanto a mim não sei, porque se for verdade que todos morrem, eu bem posso ser a excepção que confirma a regra. Modestamente falando, claro.

O facto de (provavelmente) não ver uma nova sociedade não significa nada de mau, pelo contrário: muitas vezes não é o destino a parte melhor, mas a viagem em si. E Maria já começou a viagem, listando alguns pontos que deveriam estar presentes nesta nova sociedade do futuro.

Continuemos? Sim, continuemos.
Amanhã vou tentar acrescentar alguns pontos, os meus. Se alguém entre os Leitores quisesse colaborar, isso seria uma prenda do Céu: ficaria agradecido e seria lembrado nas minhas orações da noite.

Uma ideia hoje, uma ideia amanhã… mais outras ideias que sem dúvida circulam pela internet…e pronto, teremos o nosso novo O Capital. Quando? Provavelmente nos próximos 100 anos. Não faz mal: tal como o original, será um tijolo que ninguém vai ler.
Estas são as satisfações da vida!

Ipse dixit.