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À procura dum novo “-ismo”

Num artigo anterior:

Que fique claro: as ideologias existem e são praticadas, mas não são
aquelas que a maior parte dos Leitores conhecem, tal como Direita,
Esquerda, etc.. Estas já não existem e não desde hoje. 

Quem disse isso? Eu (oh meus Deus, agora até as auto-citações…).
Permitam-me (ou “me permitam”, para mim tanto faz): gostaria de salientar umas coisas muito simples mas bastante importantes.

Antes da transicção

A ordem do velho mundo, aquela que existiu entre os anos 1990 e 2000, acabou. Não está doente ou
de férias: morreu mesmo.

E tinha que ser: era uma época de transicção, nascida após a queda do equilíbrio durado várias décadas, onde Estados Unidos dum lado e União Soviética do outro mantinham uma situação estável.

No início dos anos Oitenta, Moscovo ainda ocupava metade da Europa e exercia uma forte influência sobre um grande parte do mundo. A “revolução socialista” (vamos chama-la assim) estava viva, com os líderes da Esquerda que realizavam peregrinações a Moscovo como se fosse a Meca e enviavam os seus jovens lá para aprender como fazer as coisas à maneira soviética. Ainda na metade nos anos Oitenta, os soviéticos lançavam em órbita a estação espacial Mir, enquanto as sondas Vega eram enviadas para estudar Vénus.

Pena: o gigante já se encontrava em avançado estado de decomposição. E pouco depois rebentou.
“Bom”, pensámos todos, “pelo menos acabou a ameaça duma guerra nuclear”. Parecia a alvorada duma época de paz. E foi o começo do pesadelo.

Os sintomas

Com a queda da União Soviética, acabou a velha ordem e surgiu a curta época de transicção.

O Capitalismo (ou aquela coisa que teimamos em definir desta forma) ocupou todos os cantos do planeta, até Cuba teve que fazer concessões apesar da retórica. A China tornou-se a fábrica do mundo e atraiu os empreendedores de todo o globo. O livre mercado entrou em todos os Países, até naqueles que continuam a definir-se “socialistas” (caso extremo: a Coreia do Norte, onde são vendidos os carros da Fiat). Na verdade, hoje não há País sem “livre mercado”.

A fase de transicção acabou. E o que sobra não é grande coisa.

Como é possível falar de inviolabilidade da propriedade privada, depois da confisca das poupanças dos depositantes nos bancos de Chipre? (e a Grécia que arrisca um destino semelhante)

Como é possível falar da integridade territorial dos Países e do direito à autodeterminação depois da destruição planeada de inteiras Nações, como Jugoslávia, Iraque, Líbia, Síria e Ucrânia?

Como é possível falar de livre iniciativa quando é construído um navio mas depois não é entregue por causa de ordem que chegam de Washington? (caso dos navios Mistral que a Rússia tinha encomendado à França)

Como é possível falar de Democracia quando o Primeiro-Ministro da Grécia (por acaso, o berço da Democracia) ignora a vontade popular, aceitando os sujos jogos de Bruxelas?

Como é possível falar sobre a luta contra o racismo, quando nos Estados Unidos os pretos (ah, desculpem, não se podem chamar assim… então façam o favor de não chamar-me “branco”, pode ser? “Pálido” parece-me mais politicamente correcto e mais hipócrita) são constantemente assassinados pela polícia? E quando nem se pode criticar israel ou propor uma séria revisão histórica pois automaticamente chega a acusação de “anti-semita” ou até “nazista”?

Como é possível acusar os Sérvios de genocídio, enquanto ninguém que admitir o que se tornou o aparentemente “independente” Kosovo? Um criminoso enclave especializado na produção e na distribuição de armas e drogas? E, ao mesmo tempo, não podemos falar de genocídio perante o povo curdo massacrado pela Turquia?

Como podemos reivindicar a oposição perante o extremismo e o terrorismo, quando de facto o Estado Islâmico e os fascistas ucranianos são apoiados pelos Países “democráticos”?

Como podemos falar de “luta à corrupção” depois do colossal terremoto financeiro de 2008, quando as agências de rating davam classificações excelentes a instituições bancárias que na manhã seguinte colapsavam?

Os exemplos poderiam continuar, como qualquer Leitor sabe. E interpreta-los como “erros” ou “dificuldades” não adianta: são falhas, bem profundas, que têm as suas raízes no desaparecimento das antigas ideologias.

E não se fala aqui do desaparecimento duma ideologia específica (o Comunismo ou Socialismo da União Soviética): o Liberalismo desapareceu também, tal como o Capitalismo, o Nacionalismo… os “-ismos” foram absorvidos e anulados, e com eles os valores que traziam. Em troca tivemos os direitos das minorias sexuais, que não parecem poder constituir uma sólida base para uma sociedade toda.

Quem ainda hoje acha-se portador de algo “diferente” (um tique típicos sobretudo das elites de Esquerda) deveria olhar com mais atenção para a casa dele e descobrir assim que também aí tudo está construído por cima daquele mesmo “livre mercado” que livre não é mas que domina o planeta.

Mas por qual razão desapareceram os antigos “-ismos”? Também aqui a resposta é simples: nenhum deles tinha a força necessária para travar o avanço da nova ordem na qual vivemos. Desapareceram porque desactualizados. Nem o Capitalismo sobreviveu: aliás, este tinha sido um dos primeiros a morrer.

O “-ismo” auto-destrutivo 

O que temos após a fase de transicção é o vazio? Não. A política nunca morre e com ela as
ideologias. Só que, como sempre acontece, os rótulos são postos mais tarde.

De facto, já temos um novo “-ismo”, para o qual ainda falta uma clara definição. Defini-lo “turbo-Capitalismo” é errado, tal como “ultra-Liberalismo”: errado porque ambos os termos se concentram em demasia no aspecto económico-financeiro, ignorando as componentes sociais. É uma ideologia, disso não tenham dúvidas: só que falta o nome.

Mas isso interessa até um certo ponto e, afinal, será um problema para os historiadores do futuro. Nós, agora, temos um outro problema: este parece ser o único “-ismo” no poder. É necessário ir além disso, é preciso encontrar um novo”-ismo”, que possa travar e, se possível, anular o actual. Há espaço para isso, há muito espaço: o aparecimento de novos movimentos políticos que recusam os velhos rótulos na Europa é um bom indicador disso. Depois há os Países em desenvolvimento que podem jogar um papel fundamental. E não, lamento, não com o BRICS, que outra coisa não é a não ser o livre mercado reciclado.

Multipolaridade? Sim, sem dúvida: este deve ser o futuro.
Multipolaridade baseada no esquema do costume? Não, obrigado: isso acabaria por criar contraposições, guerras comercias… já conhecemos, fiquem com ele. Se a ideia é retirar do baú as velharias, então podemos ficar como estamos, nem vale a pena esforçar-se, porque sabemos já agora qual o desfecho. É preciso olhar para frente, não para trás.

Eu não tenho a capacidade para definir um novo “-ismo”. Gostava ser um génio, mas não sou; sou uma pessoa normal, tal como o Leitor, pelo que só posso dizer como não deve ser: não deve ser nada parecido com o que já temos. E, talvez, não é tarefa duma só pessoa pôr as bases para uma nova ideologia (nem Marx inventou o Comunismo sozinho!). Mas esta é a altura certa.

É a altura certa porque o que temos pela frente é uma contagem decrescente (ou “contagem regressiva”, como dizem no Brasil): o “-ismo” dominante é intrinsecamente destruidor. Diante de nós, agora cada vez mais claro, parece existir o caos: a crise dos recursos é uma ameaça bem real. Mas ainda antes de lá chegar, haveria a queda da sociedade tal como hoje é conhecida. E é em situações extremas como estas que podem nascer os “-ismos” pais perigosos. Temos que evita-lo.

Como? Que tal começar a atirar algumas ideias para o ar? Porque não sei se ficou suficientemente claro: qualquer novo “-ismo” deve nascer a partir de nós.

Ipse dixit.

Fonte: Club Orlov