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Os serviços secretos

Após a publicação do artigo Espionagem: Portugal na vanguarda, nasceu uma troca de opiniões que
julgo ser de interesse geral. Portanto, permito-me utilizar um comentário de P. Lopes (que agradeço desde já) como ponto de partida:

Ou tem condições para trabalhar ou mais vale serem abolidos [fala-se aqui dos serviços secretos, nda],
se querem partilhar o trabalho da policias e tal como estas submeter o
seu trabalho ao poder judicial, que são um órgão de soberania autónomo, então onde esta a mossa para os valores liberdade e privacidade?

Valores que não são absolutos por vezes tem de se sacrificados
parcialmente para proteger outros valores como o direito a
vida. Fazemos assim, lanço-lhe um desafio: Deve ou não haver serviços
de informação e em que moldes? Quer me explicar a sua visão?

Depois segue uma breve nota acerca duma comparação que eu tinha feito anteriormente para mostrar o que pode significar um serviço secreto sem limites (PIDE, OVRA, Gestapo):

Para
terminar a famigerada PIDE é um bicho papão em 95% para legitimar o fim
da ditadura por uma suposta democracia que a falta de melhor apenas
assim se tenta legitimar. Curioso que após o 25 de abril os bons
rapazes do PC usaram sistemas de escutas da PIDE claro que ai já era
legitimo… A Pide combatia essencialmente a propaganda da URSS , e
diga-se de passagem comparados com a STASI ou o KGB, os pides eram uns
meninos de coro.

Bom, vamos com ordem.

Eu nunca disse que os serviços secretos (S.S. para encurtar) não deveriam existir. São parte
integrante da estrutura dum qualquer Estado, parece-me óbvio, e não desde hoje. Pensar num País, um qualquer País, sem S.S. é uma romântica ingenuidade.
Todavia aqui surge o problema dos tais “moldes”, porque os S.S. devem sim recolher dados, operar de forma “encoberta”, espreitar lá onde outros não podem/conseguem, antecipar (sobretudo isso), tudo em prol da nossa segurança. Mas sem esquecer que fazem parte dum Estado regido (em teoria…) por regras democráticas.

Os S.S. devem poder ir além destas regras? Não, nunca. Uma organização que opere fora dos limites da legalidade é uma organização ilegal e, como tal, não pode ser parte do Estado. Devem ser as leis a definir os moldes nos quais os S.S. podem operar. É lógico que, em nome da segurança do Estado (e de todos os cidadãos), podem existir situações nas quais os S.S. devem ser autorizados a praticar acções que podem quebrar determinados valores (por exemplo: a privacidade), mas tudo deve ser sempre:
  1. previsto pelas leis (excepções, encarregados, modalidades, duração, etc.)
  2. expressamente autorizado por parte dum órgão de controle

Portanto, os S.S. não seguem as pessoas
quebrando as leis: fazem isso porque as leis preveem situações nas quais
a privacidade dum cidadão deve ser ultrapassada, sempre em favor do
bem comum.

Todavia há um pormenor: no sistema judicial ocidental (pelo menos na maior parte dos casos), parte-se da ideia de que um indivíduo é inocente até prova contrária (julgamento em tribunal). Portanto: a privacidade dele deve ser “quebrada” só se existirem fortes indícios da sua culpa. E isso deve valer também no caso da vigilância executada por parte dos S.S..

O diploma proposto pelo governo de Portugal (com o apoio do Partido Socialista, os meus parabéns) inverte totalmente este conceito: antes escutam-se os telefonemas, é invadido o correio electrónico, as contas bancárias (quebra-se o direito do cidadão), depois analisa-se o conteúdo destes dados pessoais para ver se o indivíduo for ou não culpado. Tudo sem que haja razões fundamentadas para essa vigilância. Ou seja: espia-se um tal sujeito “porque sim”.

Eu concordo com a ideia de que haja um conjunto de juízes que autorizem a recolha de dados sensíveis (e este facto é parte do diploma),
mas a recolha só pode ser autorizada:

  1. quando sejam especificados quais os alvos da investigação (contrariamente ao que estabelece o diploma)
  2. quando existirem
    razões fundamentadas.

Sem que exista sobretudo o segundo ponto, entramos no âmbito da ilegalidade (ver um tal livrinho chamado entre nós “Constituição” e direitos previstos), portanto o Estado estaria a utilizar um instrumento ilegal contra os seus próprios cidadãos. E que seja ilegal é óbvio: a privacidade também como a inocência até julgamento são direitos fundamentais defendidos pelas Constituição, a “mãe” de todas as leis. Nenhuma lei pode sobrepor-se à Constituição sem tornar-se ilegal.

Por esta razão, será suficiente um pedido de análise por parte dum outro partido da oposição (Partido Comunista ou Bloco de Esquerda) para que esta proposta seja chumbada. Entretanto, a Assembleia terá ocupado o seu tempo em algo que já desde o início não tinha pernas para andar.

As leis, dependentes da Constituição, são os moldes e não podem existir outros. A não ser que seja decidido deitar no lixo Constituição, valores, direitos e gerir o Estado como se do nosso quintalzinho se tratasse. Pode ser uma escolha, lícita até: mas para isso são precisos alguns passos, todos dados no interior da Assembleia da República. E o primeiro passo é: modificar (ou eliminar) a Constituição.

A frase: “Valores que não são absolutos por vezes têm de ser
sacrificados para proteger outros valores como o direito a
vida”, pelo contrário, exprime o conceito segundo o qual deve valer
tudo porque o mal pode esconder-se em qualquer lugar. Pelo que, os S.S.
devem poder ter acesso a tudo, sem limitações.

É uma frase bonita, dum certo efeito até, e é por isso que foi repetidamente utilizada pelos vários Bush ou Obama. É com esta frase que foi justificada a adopção do Patriot Act, que limita as liberdades dos cidadãos, permite a violação da
privacidade, amplia os poderes das instituições (S.S.incluídos) até
torna-las independentes da autoridade judiciária “para proteger outros
valores como o direito a
vida”.

Os resultados estão debaixo dos olhos de todos.
Paradoxalmente, a maior liberdade concedida aos S.S. americanos (a
CIA em particular) está na base do maior escândalo que alguma vez
investiu os mesmos S.S. (após o Watergate da década dos anos ’70):
Guantanamo e as torturas dos presos. E aqui não falamos de criminalidade
da rua, de crimes financeiros ou de droga, falamos do bicho papão da
nossa sociedade: o terrorismo. A comissão de inquérito
do Senado foi obrigada a reconhecer que estes métodos foram totalmente
inúteis. Pelo que: maiores poderes, menos limites, resultado zero.

Isso não deveria fazer reflectir?

Mas há mais material acerca do qual é bom parar e pensar.

Os EUA, País com provavelmente os melhores S.S. do planeta (internos e externos), estão na parte alta da classificação dos Países com o maior número de delitos cometidos com armas de fogo (13º lugar no mundo, primeiro entre os Países ocidentais), entre México e Argentina.
Também ocupam uma posição pouco invejável na classificação dos Países com o maior número de homicídios voluntários, depois da Ucrânia e antes da Tailândia. Doutro lado, são o segundo País por número de pessoas presas.
Espantosamente,
Portugal, um País onde as más leis impedem uma livre e saudável
actuação dos S.S., ocupa as últimas posições em todas estas classificações. Deve ser pura sorte.
     
Mas abandonemos os crimes das ruas (que afinal ficam no âmbito de intervenção das forças policiais) e passemos para algo mais sofisticado: os crimes financeiros.
Eu não tenho paciência para isso, mas os mais curiosos podem consultar esta lista
e contar qual País aparece com mais frequência entre aqueles onde houve
escândalos financeiros de grandes proporções (só uma dica: é o mesmo
País com os melhores S.S. do mundo). E da lista faltam corporações
responsáveis de delitos graves no território dos EUA: Archer Daniels
Midland, BAE,
Bankers Trust,
BP, British Airways, Daiwa Bank, F. Hoffmann-La Roche, General
Electric, Hoechst AG, International Paper, Louisiana Pacific, Samsung,
Sears, Roebuck & Company, Tyson Foods, Waste Management Inc.

A lista dos cyber-criminais? Dos maiores ladrões? A circulação de substâncias estupefacientes nos EUA? Ou as acusações contra a CIA sempre no âmbito do mercado ilegal das drogas?

Nos EUA, um dia sim e outro também há alguém que entra numa escola ou
igreja e começa a disparar. E a coisa divertida é que muitas vezes estes
ataques são amplamente “anunciados” em páginas internet ou vídeo no
Youtube. Nem seriam precisos os S. S., uma boa polícia deveria ser suficiente. Mas, mesmo assim, os massacres
acontecem. CIA, FBI, United States Secret Service… nada, tudo
inútil. Será que estas instituições estão demasiado “presas” por laços
burocráticos? Por favor, não brinquemos…

Por último, uma observação.
Mas realmente acreditemos que os S. S. trabalhem duma forma tão primitiva? Do tipo “Vamos interceptar os e-mail do Sr. Barbosa, nunca se sabe o que pode esconder…”. Se os S. S. trabalhassem desta forma, seria bem melhor fecha-los desde já. Esta ideia, segundo a qual os direitos dos cidadãos deveriam ser constantemente quebrados para garantir a funcionalidade dos S. S., apresenta estes como um bando de puros incompetentes, sem experiência, sem metodologia, sem a mínima ideia do que se passa fora dos seus escritórios.


Os S.S. de qualquer País ocidental têm hoje suficiente experiência para saber antes de se mexerem quais os possíveis alvos das investigações, quais os possíveis canais utilizados pelos ambientes criminosos de qualquer tipo. Nenhum S. S. digno deste nome pediria a um juiz a autorização para investigar “um grupo de pessoas, assim, tanto para ver o que acontece”. Seria o máximo da incompetência. Os S. S. sabem como, onde e quando mexer-se.

Vice-versa, a proposta anti-constitucional do governo (com o apoio do Partido Socialista, mais uma vez: os meus sinceros parabéns) abre caminhos extremamente perigosos. Porque se a função dum juiz for apenas aquela de assinar uma autorização de vigilância, sem saber contra quem e sem conhecer os fundamentos, isso significa que os S. S. podem receber disposições directamente do governo (do qual parcialmente dependem), eliminando a função de garantia hoje desenvolvida pelo sistema judicial. Fica totalmente aberta a porta da espionagem utilizada por um governo qualquer para fins exclusivamente políticos e não “para proteger outros valores como o direito a
vida”.

Claro, se depois o Leitor considera a PIDE como um grupo de escuteiros ou a Gestapo como uma espécie de Cruz Vermelha, então pode ser que concorde também com isso.

Ipse dixit.