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Futebol e sociedade – Parte II

Por qual razão o futebol é tão importante na nossa sociedade?

Resposta simples: porque é um desporto bonito. E é, ao ponto de ter sido praticado (com algumas óbvias diferenças) em várias sociedades do passado também.

Os inícios

No III e II séculos a.C., por exemplo, na China (dinastia Han) era praticado um desporto chamado ts’uh kúh que consistia em lançar uma bola com os pés para uma pequena rede, em alguns casos evitando as defesas dos adversários.

Mais ou menos na mesma altura, na Grécia jogava-se o episkyros, do qual pouco sabemos: mas o jogo foi importado para Roma, onde tomou o nome de harpastum, jogado num campo de forma rectangular, dividido ao meio.

Também no Extremo Oriente existia uma variante japonesa chamada kemari (apesar desta ter uma variante mais cerimonial), ainda hoje praticado em eventos culturais.

Outros exemplos: o pok ta pok da cultura maia (segundo alguns estudiosos a forma de “futebol” mais antiga), o marngrook da Austrália, o ki-o-rahi dos Māori da Nova Zelândia, o pasuckuakohowog dos índios da América do Norte e o asqaqtuk no Alasca. Todos estes desportos tinham pontos de contacto com o futebol, no sentido que o jogo era focalizado numa bola e um par de equipas (que, na maior parte dos casos, tinham que jogar com os pés).

A evolução para o futebol moderno chegou antes com o football do Reino Unido no século XIV (sucessivamente proibido por causa da excessiva violência), com o calcio jogado em Firenze (séc. XVI) e, finalmente, com as primeiras regras unificadas redigidas na Universidade de Cambridge (Reino Unido), em 1848.

O futebol moderno

Até aqui a história, que demonstra como o futebol não seja, de todo, uma invenção moderna, mas um
desporto praticado pelo homem ao longo de milhares de anos. Mas isso não responde à nossa pergunta: porque é tão importante hoje? Mais uma vez, temos que olhar para História, mas numa época mais recente.

Após a Primeira Guerra Mundial, o futebol começou a envolver a cultura da classe trabalhadora, tornou-se o desporto nacional em muitos Países da Europa e da América Latina. O declínio económico daquela altura, o aumento do desemprego e as tensões internacionais que durante anos ocupavam os pensamentos e as vidas de milhões de pessoas, especialmente os jovens, são suficientes para testemunhar os problemas sociais dos fãs do futebol, mesmo que ainda não-violentos e “passivos” na forma de torcer.

Todavia, os intelectuais da época começam a entender as potencialidade desta disciplina e exploram os eventos ideológicos que o futebol podia transmitir para as pessoas: isso distraia as massas da suas condições e permitia também que o poder (o caso do fascismo italiano e o nazismo alemão representam óptimos exemplos) participasse nos sucessos dos eventos de futebol de maior prestígio, para realçar uma identidade “heroica” e nacionalista.

Mas ainda estamos num estado “embrionário” do futebol moderno. Não há o conceito de “empresa futebolística”, atletas e treinadores ganham bem, sem dúvida, gozando também duma assinalável notoriedade, mas ainda estamos longe dos valores insultuosos dos nossos dias. E as manifestações de regime não passam duma propaganda primitiva, bastante ingénua e por vezes ridícula.

Tudo muda logo após a Segunda Guerra Mundial: é aqui que começa a delinear-se a primeira “empresarialização”. De forma devagar, o futebol é olhado cada vez mais como um conjunto de inúmeras possibilidades para realizar ganhos. Empresários já bem sucedidos em outros sectores entram no mundo do futebol de maneira a aumentar as suas riquezas, embora as principais decisões permanecem nas mãos dos presidentes das federações nacionais e dos seus colaboradores.

Surgem novas federações internacionais, como a Confederação Asiática de Futebol (AFC) e a Confederação de Futebol Africano (CAF), o que alimenta o crescente interesse nas competições internacionais. E com este processo a figura do adepto também muda.

A liturgia do futebol hoje

O futebol começa a ter cada vez mais importância social no momento em que o jogo do Domingo
assume em si um aspecto quase religioso, esvaziando as igrejas e enchendo os estádios.

As assembleias dominicais, criadas para estabelecer ideais comuns e identidades de grupos, iniciam a mover-se  das igrejas para os estádios. As pessoas recolhem-se nas “torcidas” com o fim de afirmar a sua própria pessoa como parte duma comunidade.

O estádio também é um lugar de afirmação: aqui a consciência do dia-a-dia quase perde-se, tais como os conflitos entre as classes sociais. A festa que acontece todos os Domingos nos estádios é vista como uma liturgia que permite quebrar as regras geralmente impostas pela rotina da sociedade e para destravar as inibições.

O adepto entra no estádio para esquecer a sua individualidade, deixando de lado o papel social desempenhado na vida, para se tornar uma pessoa diferente, um membro duma comunidade diferente. E aqui encontramos um ponto particularmente importante: este comportamento permite que os indivíduos possam reencontrar aquelas características que nas sociedades primitivas, com máscaras ou roupas especiais, fortaleciam a identidade de membro do grupo enquanto parte duma sem hierarquia ou com uma hierarquia de tipo extremamente simples (o chefe da torcida) e facilmente identificável.

Esta cerimónia, de facto, permite a continuação duma consciência colectiva e realça o domínio do grupo sobre o indivíduo. É nestas ocasiões que a sociedade se torna consciente de si mesma, proporciona o desejo de envergar um caminho comum marcado pelo mesmo ideal.

Dito assim, parece um elogio do futebol. Mas é o contrário: é um sintoma gravíssimo, pois significa que a sociedade (aquela do dia-a-dia) já não tem as mesmas capacidades. A doença do torcer tornou-se uma pandemia crónica. Já não é uma questão de ordem social ou de política pública: o futebol é uma sociedade que vive ao lado da sociedade “normal”, representa um substituto dela.

A sociedade incompleta

Enquanto a vida moderna tende a dividir a comunidade (industrialização, urbanização, mobilidade social e geográfica, cada vez mais complexa divisão do trabalho, todos factores que estão a corroer a sociedade), o futebol opõe a capacidade de “reparar” os danos.

Fundar uma equipa de futebol ou organizar uma torcida ajuda a antagonizar os efeitos da atomização e da alienação que alteram o indivíduos dentro das grandes cidades e na nossa sociedade impessoal.

Os participantes estão integrados num grande sistema social, têm a possibilidade de conhecer e interagir com as pessoas pertencentes a outras equipas, outras cidades. Os clubes ajudam a promover uma identidade comum e por vezes de solidariedade, tanto local, cívica quanto no plano nacional. Estabelecem cores, símbolos, ligados emocionalmente a um local específico. E permite que a torcida possa auto-celebrar-se.

Tudo isso, por vezes, consegue envolver toda a comunidade, toda uma Nação, mesmo aqueles indivíduos que normalmente vivem fora do futebol, especialmente em ocasiões de grandes eventos, grandes vitórias ou de confronto com facções tradicionalmente rivais.

E há outra vertente muito importante. O futebol é explorado para que seja satisfeita uma necessidade humana básica: a agradável emoção do combate, algo que, mais uma vez, vem das alvorada da nossa História, faz parte do DNA (com boa paz dos pacifistas) e que de qualquer forma “tem” que encontrar um “escape”. Mais uma vez: em perfeita contraposição com a rotina da vida social, algo que já Aristóteles tinha individuado (embora não ligado ao futebol).

Numa sociedade civilizada há sempre um perigo: o tédio, que é o oposto da emoção descontrolada. Aristóteles tinha individuado em algumas actividades um meio-termo entre os dois extremos. O futebol é o canal que transforma os jogos em competições não feitas pelo puro divertimento dos jogadores (hoje em dia frios profissionais), mas encenados como diversão do público. É um efeito alcançado mais facilmente naqueles desportos que realçam a rivalidade directa ou indirecta entre homens ou entre equipas: e o que é isso se não uma repetição das antigas batalhas entre grupos tribais hostis?

Neste aspecto, muita da sociologia contemporânea erra ignorando a “tensão” que nasce da sociedade moderna como um objeto de estudo e apontando-a como algo do qual temos que nós livrar. Numa sociedade como a nossa é impossível. Numa sociedade mais avançada isso seria amplamente desejável, mas a nossa é ainda demasiado primitiva, sobretudo na medida em que ignora a complexidade (e as exigências não apenas materiais) do indivíduo em prol da sociedade globalizada (o topo do tédio).

Portanto, a expressão panem et circenses é muito mais profunda daquilo que pode parecer. Não se trata apenas de “distrair” o povo, de mantê-lo afastado das preocupações do dia-a-dia: é uma forma de satisfazer algumas necessidades básicas que têm as suas origens nos tempos mais remotos. É também uma forma de aliviar o tal tédio típico de qualquer sociedade complexa.

O problema? O problema é simples após tudo quanto escrito até aqui:

Tudo o resto (os ordenados astronómicos, a corrupção em todos os níveis, a perda do sentido desportivo, as intromissões das grandes corporações, etc.) são apenas consequências secundárias do futebol moderno que, neste sentido, é apenas o espelho da nossa sociedade: não é nem melhor e nem pior.

Voltando ao princípio do discurso.
Países onde o futebol têm uma presença avassaladora entre as camadas dos cidadãos são sociedades com problemas estruturais ou onde os adeptos não encontram (ou não podem encontrar porque não disponível):

  1. uma forma mais construtiva para canalizar as suas próprias energias;
  2. uma válida alternativa para fugir ao tédio da sociedade moderna.

Ou, dito de forma mais simples e menos elegante: os Países onde o futebol tiver traços de pandemia crónica estão socialmente atrasados. Área do Mediterrâneo, América do Sul…
Não gostam desta conclusão? É lícito.
Então é só propor outra.

Ipse dixit.

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