Site icon

Futebol e sociedade – Parte I

Um trecho dum comentário que o Leitor Anónimo escreveu a seguir o último artigo, o “desabafo”
acerca da invasão do futebol nos medias nacionais de Portugal (como sempre: muitíssimo obrigado para participar!):

Panem et circenses!

vem dos romanos. Os gladiadores foram substituídos pelo futebol (e não é
só em Portugal, Max, é global), e tornou-se numa arma de controle da
população.[…]

Justo, não há dúvida.
O futebol é uma arma de distracção maciça, utilizada para desviar a atenção dos cidadãos.
Todavia, pouco antes, outro Leitor Anónimo tinha escrito:

Os
media, como disse o Max, fazem o trabalho deles, que é vender o quer
rende.

E aqui está o problema.

Um diário ou um programa televisivo/radiofónico desportivo não seriam produzidos se não houvesse um público disposto a receber o conteúdo. Temos a certeza de que seja toda culpa da camada de Valium que é continuamente despejada por cima das nossas cabecinhas? Ou será que nós, enquanto cidadãos, temos a nossa responsabilidade? Por exemplo, favorecendo assuntos “leves” como o futebol em detrimento de outros mais importantes.

Observem a seguinte tabela. A base é o portal Net Papers (que aconselho, pois reúne os diários internacionais) e Wikipedia. Do primeiro peguei o número de diários desportivos publicados, da segunda o total dos habitantes dos vários Países.

Obviamente, a tabela tem interesse quando forem analisados os diários desportivos que alcançam um público nacional: em Portugal, por exemplo, além de A Bola, O Jogo e Record há também o Desportivo de Guimarães, o Desportivo Transmontano e o Jornal Sporting que, todavia, têm uma relevância local e bastante limitada (sobretudo o Jornal Sporting, que julgo ter 12 Leitores, 13 no máximo lololol).

Da mesma forma, não foram consideradas as edições locais que “repetem” com algumas actualizações, as edições nacionais (é o caso de O Jogo). Além disso, não foram contabilizados os portais exclusivamente digitais (sem versão impressa, não disponíveis nas bancas).

Os resultados são os seguintes:

Duas notas:

  1. a Grécia não aparece na tabela porque, dada a situação económica, muitos diários parecem ter fechado durante os últimos anos e estabelecer quantos ainda estão em actividade não é simples.
  2. esta não é uma tabela “cientificamente” correcta, porque não tem em
    conta  o poder de compra dos habitantes. Neste caso, os 4 jornais da
    Roménia têm mais “peso” do que os três de Portugal, porque um cidadão
    romeno tem que gastar mais (comparativamente) para comprar um jornal
    desportivo. Da mesma forma, a posição da Dinamarca é enganadora, em
    primeiro lugar porque há um só diário deste género em todo o País,
    depois porque o rendimento individual permitiria comprar muitos mais
    diários desportivos em comparação com a Roménia ou com Portugal.

Comentário: na Bélgica, Finlândia, Irlanda, Noruega, República Checa e Suíça não existe um único diário desportivo, apesar de, num par dos casos, haver o mesmo número de habitantes de Portugal (Bélgica e Rep. Checa).

No fundo da tabela, pelo contrário, encontramos Portugal, onde é publicado um diário desportivo por cada 3.5 milhões de habitantes. Parabéns, meus senhores.

Mesmo considerado a diferencias no poder de compra, a posição de Portugal é penosa: não há outro País europeu onde sejam publicados tantos diários desportivos em relação ao total dos habitantes.

Então: é apenas culpa dos media? Temos a certeza de que seja um fenómeno “global”? Ou há algo que diferencia os Leitores da Alemanha (1 diário desportivo por cada 82 milhões de habitantes) e Portugal (1 diário por cada 3.5 milhões de habitantes)? Que acham?

Tentei a mesma operação com a América do Sul, mas aqui os problemas são ainda maiores. Vamos ver a razão. Antes a tabela:

Os problemas:

  1. No Brasil não consegui perceber quais são os diários desportivos regionais (que parecem ter mais importância do que na Europa) e quais nacionais. Confio na bondade dos Leitores para eventuais emendas.
  2. A questão do poder de compra parece-me mais importante ainda do que na Europa e isso falsifica bastante a tabela. Os casos do Paraguay e do Ecuador parecem-me os mais significativos neste sentido.
  3. No Brasil (como sinaliza Chaplin) há rádios que transmitem futebol 24 horas por dia, um fenómeno desconhecido na Europa (por enquanto…), talvez exista o mesmo em outros Países do mesmo Continente e isso tem influência nos resultados da tabela.
  4. A recente crise da Argentina tem tido o mesmos efeitos observados na Grécia, pelo que dados certos não há.

No geral (seja Europa, seja América, seja outro Continente qualquer), a situação é mais grave ainda
do que parece porque o futebol é uma indústria e nada mais do que isso.

As empresas (as sociedades desportivas) devem gerar grandes lucros para poder apostar em atletas conhecidos que possam atrair mais público e favorecer a venda dos acessórios (cachecóis, boné, etc.).

Os atletas estão nas mãos de representantes (os agentes) que têm carteiras tão numerosas ao ponto de poder influenciar os destinos duma equipa ao longo duma inteira temporada.

Nem podemos esquecer a guerra dos direitos televisivos (e quem acham que paga estes direitos afinal? Pensem nisso), os sponsors e os nunca claros relacionamentos com as entidades bancárias (acerca dos quais as autoridades fecham os olhos, caso contrário seriam bem poucos os clubes que não entrariam em falência dum dia para outro).

A violência que gravita em volta do futebol obriga a deslocar centenas, por vezes milhares de polícias em ocasião dos eventos mais importantes (e tudo isso tem um custo: quem acham que paga?).

Falando das instituições internacionais, a situação até piora: as ligações FIFA, EUFA e grandes corporações estão no mínimo duvidosa, mas o poder é tão elevado que pode obrigado um País a contraria as suas próprias leis nacionais (ver caso Mundias do Brasil e cerveja).

O futebol alimenta o crime organizado. A FIFA, por exemplo, tem um longo historial de corrupção, que culminou nos últimos dias com as demissões do presidente Joseph Blatter (segundo alguns um “golpe” da Rússia, segundo outros um “golpe “do FBI). Fala-se de ligações com a Máfia da Sicília, de jogos falsificados para pagar subornos e assegurar votos para os Mundiais de 2022. Meus senhores, esta é canja.

Procurem na internet algo relacionado com a Tailândia, a central da apostas mundiais de futebol, e o relacionamento entre esta actividade e aquela de reciclagem de dinheiro derivado do comércio da droga. Falamos de algo que acontece diariamente, com montantes desconhecidos mas sem dúvidas assustadores, em comparação com os quais os subornos de Blatter são brincadeiras de crianças.

O futebol não é apenas panem et circenses, não é só uma arma de distracção maciça. É uma indústria podre que alimenta o crime organizado e vive em simbiose com as grandes corporações.

Poderá dizer o Leitor: “Eh sim Max, descobriste a água quente”. Sem dúvida.
Mas este artigo não é contra o futebol: na internet não faltam escritos melhores do que este acerca do assunto. O foco aqui está em nós: nas tabelas publicadas acima.

Qual grau de desenvolvimento pode reivindicar um País com o maior rácio entre habitantes e diários desportivos publicados? Ou onde existem rádios que transmitem futebol 24 horas por dia?

Como sempre, dúvida: porque o futebol é tão importante em determinados Países e menos em outros? Aliás, a pergunta está mal feita, pois deveria ser: por qual razão o futebol representa uma parte tão importante numa sociedade enquanto numa outra, onde é igualmente apreciado e seguido, não ocupa uma tal prioridade?

A resposta pode fornecer um instrumento para entender melhor a atitude das pessoas em alguns Países? Obviamente sim.

Muitos, para denegrir o fenómeno, descrevem o futebol como “onze estúpidos [os mais cultos chegam até 22, nda] que correm atrás duma bola”. Erro e ingenuidade, pois o futebol é muito mais do que
mero desporto, entretenimento, indústria, marketing ou instrumento para
“controlar” as massas. Assim como errado e grave é desvalorizar o papel activo que futebol exerce em algumas sociedade.

Atenção, pois não é esta uma pessoal tentativa para defender o futebol: é exactamente o contrário.
Mas aqui entramos no âmbito da sociologia e, dado que hoje está calor, vamos ver o resto na segunda e última parte deste artigo.

Ipse dixit.