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Não é vida

Pensamos nisso: o que é melhor para uma empresa? Um cidadão feliz ou um cidadão infeliz?

A resposta parece óbvia: todas as publicidades são construídas para que o consumidor possa alcançar a felicidade, com a satisfação das suas exigências, autênticas ou induzidas. Mas para que o consumidor possa alcançar este estádio de “felicidade”, é preciso que parta dum estado de “infelicidade”: deve sentir a necessidade de algo, algo que lhe falta.

Eis portanto a resposta correcta: o ideal para o mercado é um cidadão infeliz, que precisa de comprar.
Mas ainda antes do que isso é preciso que o consumidor interprete a felicidade como algo que pode ser obtido simplesmente gastando dinheiro.

Na prática: o mercado precisa de pessoas infelizes e bem pouco inteligentes.
E o que tem o mercado? Exactamente isso: idiotas tristes.

É normal que assim seja: ninguém quer consumidores felizes pois são inúteis como um par de sapatos sem sola. Um consumidor feliz, satisfeito da sua existência, é inútil para uma economia de mercado. O que vender para uma pessoa assim? Com quais razões? A publicidade, com as suas promessas de sucesso, satisfação, desejabilidade social, teria pouca ou nenhuma influência sobre um indivíduo feliz, em paz consigo mesmo, satisfeito da sua própria vida.

A sociedade do consumo postula o crescimento ilimitado da produção e a criação infinita de bens, assumindo que não há limites para a melhoria e que a tecnologia pode continuar a apresentar produtos que simplificam a vida das pessoas. O sucesso está baseado no empobrecimento psicológico (como dizia Baudrillard) mas também físico e real, determinado por um estado de insatisfação permanente que descreve o indivíduo hoje. O espremedor elétrico, a máquina de lavar roupa, o carro e todas as outras invenções modernas que deveriam devolver o tempo ao indivíduo (esta é a verdadeira riqueza) e com ela a serenidade e a liberdade, tiveram o efeito oposto.

Em vez de ter mais tempo livre para ler, reflectir, para parar e meditar, passar tempo com amigos e família, o indivíduo está cada vez mais sobrecarregado com a falta crónica de tempo livre e, ao mesmo tempo, com os objectivos que tem de alcançar (porque assim requer a sociedade ilusória criada pela publicidade), caso contrário será apenas um falido. Os espaços da existência individual, entendida como o tempo dedicado a nós, são reduzidos ao essencial.

Para pagar a máquina lavar roupa ou o carro ou uma casa ou a geladeira que ficou avariada, tudo com os pagamentos em prestações, é preciso contar com um salário; e para ter um salário suficiente a garantir as necessidades básicas (que hoje já não são as mesmas duma vez, mas muito mais sofisticadas) é necessário ter um emprego a tempo inteiro, que absorve a maior parte do dia. Por isso, sobra apenas a noite, quando uma pessoa volta do emprego, cansada demais para pensar ou aprender: e que a única coisa que queremos é deitar-nos no sofá: claro, com na frente a televisão embutida de publicidade, que mostra alegremente todas as coisas que ainda não temos.

Como pode um ser humano ser feliz nestas condições? O Homem não nasceu para isso, as suas necessidades são outras. Passar a maior parte do dia fechado dentro de quatro paredes, a receber ordens, a trabalhar para os lucros da uma empresa: não é vida.

O nosso conhecimento da realidade passa através de conceitos pré-embalados e transmitidos por outros, como a escola, os meios de comunicação: são já prontos, não são postos em discussão, têm só que ser absorvidos: não é vida.

As ideias acerca da realidade, das leis, dos costumes, das tradições, da mesma língua, tudo isso não pode ser separado do contexto no qual o Homem vive mas são o fruto disso. Qual ideias podem surgir acerca da realidade se tudo o que temos é um ciclo pré-estabelecido e invariável de nascimento – escola – trabalho – morte? Não é vida.

A realidade, tal como é apresentada hoje, não é o resultado do livre pensamento, mas sim fortemente influenciada (e por vezes determinada até) pelo contexto, pela publicidade, pelos meios de comunicação: uma sopa homogeneizada que tende para a exaltação da individualidade. Mas atenção: uma individualidade falsa, pois não tem em conta as reais necessidade de cada um de nós, mas propõe uma imagem de pessoa que tem de comportar-se duma determinada maneira, com gostos e desejos específicos, partilhados com todas as restantes “individualidades”, que assim se tornam uma só. Não é vida.

Onde fica a vida? Onde fica a felicidade?
Fica no Paradoxo de Easterlin (do economista americano Richard Easterlin) que mostra como o nível de felicidade das pessoas não cresce em função do crescimento do PIB. Pelo contrário, com o aumento da riqueza económica, antes a felicidade aumenta, depois começa a diminuir.
Num período difícil em que a humanidade perdeu os seus pontos de referência, com as família já não tijolo da sociedade, com os nacionalismos sob-ataque, com as identidades individuais cada vez mais voláteis, o único ponto de referência torna-se, paradoxalmente, a televisão: é ela o único elemento estável (pelo menos fisicamente) num universo de sentidos que muda, é ela que cada vez mais constitui a ligação entre o nosso pequeno mundo e o outro mundo.

E é a televisão que explica-nos o que é a felicidade. Mas como? Trabalhando para mostrar a nossa infelicidade, os nosso medos, as nossas fraquezas. Porque, como afirmado: um consumidor feliz não presta para nada. Mas esta não é vida.

Ipse dixit.