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As culpas dos outros

Entre os vários problemas que estão na base de qualquer mudança, um é particularmente subtil e
perverso: a falta de autocrítica.

Não é possível mudar sem olhar para o espelho e reconhecer…o quê?
Uma coisa tão simples, tão banal, que tendemos a esquece-la: somos iguais aos outros.
Todos iguais, não há excepção. E esta igualdade tem que ser lembrada e aplicada em todos os campos.

Em princípio, todos concordamos com esta ideia. Mas só em princípio.
Depois entramos em áreas onde, por alguma estranha razão, de repente ficamos melhores. Quais são estas áreas? São aquelas que despertam as paixões. Tipicamente: o desporto e a política.

O que não deixa de ser curioso: dois assuntos tão distantes, um ligeiro outro bem mais importante, partilham a mesma capacidade de desencadear reacções que ofuscam o raciocínio.

O futebol funciona como uma substância estupefaciente capaz de tornar um tranquilo contabilista num assassino sem piedade, que mata por um cachecol com símbolos diferentes dos nossos. Algo que nunca aconteceria em condições normais, no futebol se torna realidade. No estádio, olhamos para as cores da nossa equipa, ouvimos o gritar dos adeptos da nossa bancada e de repente sabemos de torcer para a melhor equipa do mundo.

Os adversários podem ter bons jogadores, um treinador preparado, mas não é suficiente: se ganharem contra a nossa equipa, raramente admitimos a superioridade deles. A maioria gosta de agarrar aqueles que considera episódios-chave dum jogo perdido para demonstrar que aí os adversários tiveram sorte ou foram injustamente favorecidos pelos árbitros.

Em Portugal, por exemplo, há uma equipa (não faço nomes, valha-me Deus…) que elaborou uma teoria da conspiração: joga mal, tem atletas de qualidade mediana, mas os adeptos estão convencidos de que não ganham porque há um esquema de proporções imensas (até chega no estrangeiro) para prejudica-la. Para justificar os falhanços até é trazido de volta o nome de Salazar (e não, não é uma brincadeira).

Quando, pelo contrário, a nossa equipa ganhar, então tudo corre bem: o equilíbrio cósmico é respeitado, o Bem triunfa e as queixas dos adversários são apenas desculpas para ocultar a evidente inferioridade deles. Episódios-chave nos quais a nossa equipa foi favorecida tornam-se justas (e apenas imparciais) recompensas pelos tortos sofridos ao longo da temporada ou até de vários anos.

Isso no futebol. E na política? Exactamente a mesma coisa.
O nosso partido é bom, aliás, é o melhor. Os outros? Na melhor das hipóteses não entendem nada de nada. Na pior: são corruptos, antidemocráticos, conspiradores. E atenção, porque temos provas disso: é só ver a História.

O nosso partido não erra. São os outros que gostam de destruir, criar obstáculos, sabotar. Se o nosso partido errar, foi por excesso de bondade e de confiança nos outros (que, obviamente, não merecem).
O nosso partido não tem culpas: herdou uma situação infame criada pelos outros, o que mais poderia fazer?

Não eliminou a corrupção até hoje? Foi só porque tinha coisas mais importantes para fazer, como salvar a Nação. Mas o nosso partido não é corrupto. A corrupção existia já antes, e se o País não está uma lastima é só porque o nosso partido combate agora este mau hábito.

Olhem para todas as coisas boas que o nosso partido fez. Como podemos nem sequer imaginar que um partido assim possa errar? Isso pode caber apenas na mente de quem não sabe (e que deveria estudar antes de falar) ou de quem é intelectualmente desonesto.

O problema reside nos outros. Sempre, não tenham dúvidas. Os outros não têm pessoas dignas entre as fileiras. Eventualmente apenas algumas, raríssimas excepções que, todavia, não conseguem entender o erro de fundo deles. A verdade, tão simples, é que se o governo dos outros alcançou alguns bons resultados (e já isso é discutível), foi só por causa duma favorável conjuntura internacional. Apenas sorte. Se o programa político do outros tiver alguns pontos decentes (e também acerca disso seria preciso falar e nem pouco) é porque copiaram uma ideia nossa. 

Nós protestamos perante as injustiças, porque somos bons, gostamos da legalidade e temos todo o direito de gritar nas ruas a nossa insatisfação. Os outros ocupam as ruas só porque não querem trabalhar, não têm nada para fazer ou porque querem derrubar o nosso governo e trazer o País de volta para os tempos das trevas.

Em qualquer caso: não têm a mesma legitimidade das nossas manifestações, que são sempre bem fundamentadas e indispensáveis. Não têm legitimidade porque é verdade que somos democráticos (óbvio: somos bons) e respeitamos as minorias, mas há limites. E os outros passam sempre os limites. Manifestar contra a corrupção quando é o nosso governo que está no poder, isso significa passar os limites, até roçar o golpe nos casos mais graves. Se fossem pessoas sérias, teriam demonstrado antes, com o governo deles também.

Futebol e política compartilham a força das paixões. Mas há um problema: enquanto o futebol é apenas uma fábrica de ilusões, a política determina o destino do País. E o País somos nós, todos nós.
Apoiar o nosso partido quando também este errar, significa impedir uma séria autocrítica, legitimar os erros, criar antecedentes muito perigosos. Significa castrar a possibilidade de crescer e tornar o partido melhor, mais forte. Isso é grave.

A autocrítica dói. Implica admitir que não há super-homens e super-mulheres. Há homens e mulheres, ponto final. Implica admitir que somos todos iguais. Que a razão não vive apenas ao nosso lado.

Implica admitir que os outros têm o direito de errar.
E que nós também temos o direito de errar.
E isso, meus senhores, isso é demais para nós.

Ipse dixit.

Imagem: Carlos Farinha, A Feira da Ladra (pormenor)