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A parte melhor? O intervalo.

Um cinema de terceira ordem na periferia, daqueles duma vez, com bancos de madeira, o rasto de luz que do projector parte o fumo da sala até chegar ao ecrã.

Parece de estar ainda lá. Um filme sem sentido, uma tragicomédia realizada com as sobras de outras películas. Só que o filme é a nossa realidade. Mas é tão mau que nem dá para acreditar.

A partir do dia 11 de Setembro de 2001 as coisas aceleraram: com uma regularidade impressionante, somos confrontados com eventos trágicos e ridículos. Não “trágicos ou ridículos”, mas as duas coisas juntas.

Só alguns exemplos, em ordem casual: a morte de Bin Laden, o atentado de Madrid, aquele de Londres, de Boston, a Primavera Árabe, a “libertação” da Líbia, o ISIS, Charlie Hebdo. E agora a morte de Boris Nemtsov.

Pegamos na última, a morte do líder russo da oposição. Apesar de ainda não haver um relatório oficial, a versão que circula em Moscovo é que Nemtsov foi morto por muçulmanos da Chechênia que, desta forma, quiseram punir o político por causa da sua posição perante a peça Charlie Hebdo.

Como nota Paul Craig Roberts: “O que é isso? Um 11 de Setembro dos pobres?”.
Pergunta pertinente.

Após o curto voo das seis balas que mataram o político, os media ocidentais logo apontaram o dedo. E ainda apontam. O culpado é Putin, não há dúvida. Não pode existir dúvida. Se um adversário de Putin morrer, só Putin pode ser o assassino. 1 + 1 = 2.

Mas não foi Putin. Porque o que os media esquecem de dizer é que Nemtsov não tinha nenhum peso político na Rússia de hoje. Nemtsov era um ex, e nada perigoso. Matar um (e não “o”) líder da oposição sem poder e sem garras, à porta do Kremlin, seria a coisa mais estúpida que o Presidente da Rússia poderia ser feito. Com 86% das preferências dos Russos, matar Nemtsov para quê?

Se, por absurdo, fosse possível demonstrar a culpa de Putin, este deveria receber a pena máxima, não pelo homicídio em si mas para o grau de estupidez alcançado.

Mas a versão que circula em Moscovo? Não é melhor.

É verdade: Nemtsov tinha falado em favor de Charlie Hebdo, apoiava o bombardeio israelita na Faixa de Gaza e a sua mãe é judia. Num dos seus últimos escritos tinha sugerido que o “FBI russo” fosse empregue na luta contra o terrorismo islâmico na Chechênia, em vez de perturbar os russos liberais em Pátria.

Aparentemente, Nemtsov era o alvo perfeito para os fanáticos islamistas.

Mas Nemtsov não era pior do que outros líderes da oposição na Rússia.
Khodorkovsky pediu que todos os jornais da Rússia publiquem diariamente um desenho satírico do profeta Maomé. Moskvy Ganapolsky definiu os muçulmanos “não humanos”. Julia Latynina abençoou os canhões israelitas que destruíram os árabes em Gaza. Esta é a oposição na Rússia (e depois ficamos espantados se Putin recolhe 86% das preferências?).

Nemstov não era pior nem mais perigoso do que os outros. Se a versão apoiada pelo Kremlin será aquela do radicalismo islâmico tchetcheno, estaremos mais uma vez perante uma versão (no mínimo) incompleta.

Paradoxalmente, será a versão que também o Ocidente acabará por abraçar. Haverá acusações no princípio (“Putin descarrega as culpas nos Tchetchenos”), mas no médio prazo vingará.
O presidente russo não irá abanar por causa do caso Nemtsev, pelo que ao Ocidente não resta que utilizar quanto de bom será possível extrair deste conto. E o bom é culpar os “radicais islâmicos” de tudo e mais alguma coisa para justificar as loucas despesas na guerra contra o ISIS e esta nova fase de “Guerra ao Terror”.

Mas não deveria acabar assim, porque o assassinato dum político não é um pormenor, sobretudo quando o crime se torna uma arma (alegadamente) utilizada para atacar um adversário. Nemtsov já não era aquilo duma vez, o seu real poder era muito reduzido, mas a popularidade ainda era assinalável. Deveria ser esclarecida qual a verdadeira razão: sobretudo, deveria ser posta em claro a verdadeira origem do homicídio, se a responsabilidade for política, interior ou exterior à Rússia.  

Nós? Nós ficaremos mais uma vez com um filme de terceira categoria. Com um final confuso, sem sentido e actores bem pouco credíveis. Pelo que, a última palavra será dos “conspiracionistas”, com teorias por vezes delirantes, por vezes acertadas, mas sempre acusados de ser visionários fora da realidade.

É verdade que a entrada neste cinema é gratuita, mas seria lícito esperar um pouco mais do que isso.

Ipse dixit.

Fontes: Paul Craig Roberts, Come Don Chisciotte