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Grécia: vamos ver as contas?

Ao ligar a televisão aqui em Portugal é simples encontrar dois indivíduos que deveriam passar o resto da vida deles na prisão e que, pelo contrário, ainda estão em liberdade: não só, mas falam como se quisessem instruir o povinho acerca das contas gregas.

Por incrível que pareça, as declarações de ambos são ouvidas e rematadas pelos media de regime. Falamos, obviamente, do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, e do digno compadre Primeiro Ministro, Passos Coelho.

Mas podem ficar descansados os amigos Portugueses: Lisboa não é uma excepção. Em cada País, nesta altura, há um ou mais indivíduos que defendem publicamente os interesses dos bancos sem nunca apresentar dados. Porque espreitar os dados significa perceber que as coisas estão ligeirissimamente diferentes de quanto afirmado.

Pegamos nas palavras da múmia, o Presidente:

Portugal tem vindo a demonstrar solidariedade em relação à Grécia para que ela permaneça na zona do Euro. Além do empréstimo que fizemos à Grécia de cerca de mil e 100 milhões de euros [no âmbito do primeiro resgate a este país], Portugal tem vindo a transferir para a Grécia o produto do juros das obrigações na posse do Banco de Portugal, o que significa muitos milhões de euros que saem da bolsa dos contribuintes portugueses.

Sim, então? Isso deveria demonstrar quanto é ridículo um sistema no qual um País em sofrimento (Portugal) tem que desviar 1.100 milhões de Euros (este ó volume da “solidariedade” portuguesa) quando, antes da moeda única, era Atenas que imprimia o seu próprio dinheiro. E como pequeno pormenor: o que é esta “transferência” do “produto dos juros das obrigações”? Foi uma prenda? Assinaram um cheque tipo “Tomem lá, meus irmãos, e tentem sair do buraco”? Sério? Nada de juros? Ahiahiahi…
Mas para o simpático Cavaco isso significa só uma coisa:

A Grécia não pode fazer o que bem entende.

Supérfluo comentar.
Vamos ouvir o outro génio da família, o Coelho. O cobrador de impostos alemães assim declarou na Universidade Católica de Lisboa:
[…] Passos Coelho apelidou de “conto de
crianças” a ideia de que “é possível que um país, por exemplo, não
queira assumir os seus compromissos, não pagar as suas dívidas, querer
aumentar os salários, baixar os impostos e ainda ter a obrigação de, nos
seus parceiros, garantir o financiamento sem contrapartidas. […] É sabido que o programa do partido que ganhou as
eleições é difícil de ser conciliado com aquilo que são as regras
europeias.

Portanto, em ambos os casos, estamos perante uma imagem que é transmitida de forma bastante clara: a Grécia não quer pagar as suas dívidas e quer fazer a boa vida, aumentado salários, baixando os impostos, etc. E isso apesar de todo o dinheiro que recebeu como “transferências”.

Seus parasitas gregos. São a vergonha da Europa toda.
Mas será mesmo assim?

Eis um gráfico que nem o idoso, nem o cobrador alemão nem outros políticos no Velho Continente mostram:

Aqui podemos notar como o sofrimento de uma grande parte da população é devido ao corte brutal nos gastos públicos: de 93 biliões para 77 biliões (- 16 biliões em 5 anos). As dívidas do Estado são agora de 320 biliões contra impostos de 80 biliões.

Também dá para observar como em 2011, por exemplo, o Estado pagou 15 biliões só de interesses. Nos últimos 5 anos, os gregos pagaram 48.6 biliões de Euros em juros. E as projecções indicam que a tendência é para a subida.
A partir do ano de 2013, os Gregos teriam as conta em ordem (a ordem psicótica da Zona Euro, claro), com mais entradas (taxas e impostos) do que saídas (despesas). Mas o que trama os Gregos são os juros. Nada mais do que os juros.
Pegamos nas projecções para o ano corrente. Os impostos irão totalizar 81.2 biliões, as despesas 77.6 biliões, pelo que é festa: sobram 3.6 biliões de Euros, que dariam perfeitamente para pagar o papel das impressoras utilizadas nos escritórios públicos de todo o País. E, contratando com o fornecedor, talvez um par de tinteiros também. E mais nada. Sem dúvida um grande passo em frente.
Mas…
Mas há alguém que quer 9.1 biliões de juros. Pelo que, não apenas não sobra nada (adeus papel, adeus tinteiros) como até os Gregos têm que encontrar ainda 5.5 biliões de Euros.
“Eeeehhhhh, mas Max, sabes como é, o mercado, os investidores….”.
Stop, pára tudo: quais investidores? Quem são estes? De quem estamos a falar? Mas ainda alguém acha que os bancos privados estejam envolvidos na lama da Dívida grega? Se for assim, então actualizem-se: os bancos abandonaram o barco que afundava há tempo. Sobram alguns hedge founds que adquiriram a Dívida com preços mais baixos em 2011-2012, mas agora os credores têm outros nomes: União Europeia, Fundo Monetário Internacional, fundo salva-Estados. E mais nada.
Confrontem as declarações da simpática Angela Merkel na altura da explosão da crise grega
(“Austeridade!”) com aquelas de agora (“Querem sair? Adeus”). O que mudou? Mudou o facto dos bancos alemães já não ter activos gregos.
Não há desculpas, já não dá para esconder-se atrás de fantomáticos “investidores”: para que a Grécia possa recuperar um mínimo (mas um mínimo mesmo), são Bruxelas e companhia que devem fazer um passo atrás. Porque reparem: não estamos a falar de devolver ou não a Dívida, falamos exclusivamente do pagamento dos juros. É tão difícil não lucrar com as desgraças dos outros?
Vamos fazer um rápido cálculo? Desde quando a Grécia entrou no Euro, tem pago algo como 100 biliões de juros sobre a Dívida Pública (isso porque antes as taxas eram maiores em percentagem). Mas este é um cálculo parcial, pois não tem em conta a dívida privada: na verdade, o total pode bem alcançar os 200 biliões de Euros. Isso num País com um Produto Interno Bruto (PIB) anual de 180 biliões.

Repito: falamos apenas dos juros, não da devolução do capital.

Parte destes interesses foram para os bancos privados gregos, mas 3/4 foram para as instituições financeiras estrangeiras, para as quais o Euro funcionou como uma máquina para espremer juros gregos (e para fazer enriquecer uma mínima parte da sociedade grega que, em seguida, levou o dinheiro para o estrangeiro: a mãe do último Primeiro Ministro socialista do Pasok, Papandreou, tem uma conta na Suíça com 500 milhões de Euros).

Fugidos os “investidores estrangeiros”, sobram os “investidores amigos” institucionais: Bruxelas, FMI, Fundo Salva-Estados. E com amigos destes a ruína fica ao virar da esquina.

Se a ideia for dar algumas possibilidades aos Gregos, a Europa tem que abdicar dos quase 10 biliões de juros anuais. Qualquer outra solução que implique o pagamento irá manter o País numa condição de pré-morte, sem possibilidade de melhorias.

Se, como diz o catatónico Cavaco, “A Grécia não pode fazer o que bem entende”, nem a Europa tem o direito de vida ou morte sobre os Estados Membros.

Se, como afirma o cobrador alemão Coelho, “o programa do partido que ganhou as
eleições é difícil de ser conciliado com aquilo que são as regras
europeias”, talvez seja o caso de explicar a todos qual o fim destas regras: cooperação ou usura? Se o programa de Syriza é “um conto de fada”, também a ideia de que Portugal e os outros Países “amigos” estejam a “ajudar” a Grécia sem ganhar nada com isso.
 
E por favor: paramos duma vez por todas de chama-la “ajuda”, ok?

Addendum

No meio de tudo isso, esqueci-me de realçar um “detalhe” que tão “detalhe” não é.
Antes, como vimos, a Dívida grega estava nas mãos dos “investidores estrangeiros” (basicamente os bancos privados internacionais), agora é detida maioritariamente pelo Fundo Salva-Estados (mais FMI).

É interessante notar como a situação evoluiu: antes quem arriscava eram os privados, agora…pois, quem arrisca agora? A resposta é dada pelo catatónico Presidente português, Cavaco Silva, na já citada intervenção:

Portugal tem vindo a transferir para a Grécia o produto do juros das
obrigações na posse do Banco de Portugal, o que significa muitos milhões
de euros que saem da bolsa dos contribuintes portugueses.

Cá estão os novos “investidores”, os que arriscam agora: os contribuintes. É o dinheiro que “sai dos bolsos dos contribuintes” que agora financia a Grécia, o risco é dos cidadãos. A classe política conseguiu salvar os bancos privados à custa do dinheiro de todos. Mais uma vez.
O que se passou com os grandes bancos privados dos Estados Unidos na altura dos subprimes (com as pesadíssimas intervenções “líquidas” da Administração Obama), repetiu-se agora com a bolha grega. Porque neste jogo há entidades que nunca perdem. E não são as públicas.

Ipse dixit.

Fonte: Blitz, Expresso (1, 2), Cobraf