Argentina: a Presidente e o juiz-mártir

Assim, Cristina Kirchner mandou assassinar o juiz Alberto Nisman.
Com certeza.

A Presidente, como não poderá ser reeleita na eleições deste ano, terá que apoiar Daniel Scioli, braço direito dela, cujo eventual sucesso poderá não ser tão simples. Portanto, eis a ideia: vamos matar um juiz! Nada mal como começo da campanha eleitoral.

Então? Então passamos de Je suis Charlie para Yo soy Nisman. Pouco mal, sempre mortos são e nem o sotaque muda: sempre anglo-israelita é.

O que fez o pobre juiz-mártir Nisman? Vamos ver.
Nos anos 1987-1988,  o Irão assinou três acordos com a Comissão Nacional Argentina da Energia Atómica. O primeiro acordo previa uma cooperação para converter o reactor fornecido pelos Estados Unidos ao Centro de Investigação Nuclear de Teheran (TNRC): de produção de urânio altamente enriquecido para urânio de baixo enriquecimento (19,75%).

Dezembro de 1992: a Embaixada dos EUA em Buenos Aires informou o governo argentino de que a continuação do acordo de cooperação nuclear entre Irão e Argentina já não era aceitável para Washington. Num planeta normal, a Argentina teria respondido: “Problema vosso”. Mas as coisas complicaram-se.

Em Março de 1992, a Embaixada de israel e em Julho de 1994 a fundação judaica AMIA de Buenos Aires foram feitas explodir, alegadamente por carros-bomba. Os investigadores argentinos e Charles Hunter (do FBI) logo demonstraram que ambas as explosões, em função dos danos provocados, não eram compatíveis com a teoria dos carros-bomba. Isso é: foram explosões mas provocadas de outras formas.

Mas ao contrário das evidências, o governo israelita, a pressão de Washington e do então Presidente da Argentina, Carlos Saul Menem, sempre insistiram que os alegados carros-bomba tinha sido colocados pelos iranianos, em cooperação com o grupo extremista Hezbollah (Líbano).

A acusação terminou num impasse, até que o presidente Nestor Kirchner em 2005 encarregou o juiz Nisman para que fosse aberto um novo inquérito. Nisman logo estabeleceu ligações com a Embaixada dos EUA, os advogados dos EUA responsáveis por investigações anti-terrorismo e com algumas personagens da intelligence argentina. Com “ajudantes” deste tipo, a conclusão era óbvia: em 2013 o juiz Nisman deu ordens para que a Interpol emitisse mandados de capturas contra uma série de notáveis iranianos e do Líbano.
Nomeadamente:

  • Hashemi Rafsanjani, o então presidente do Irão
  • Ali Akbar Velayati, o então Ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão
  • Ali Fallahijan, na altura à frente da intelligence do Irão
  • Mohsen Rezai, o então Comandante da Guarda Revolucionária do Irão
  • Mohsen Rabbani, ex-representante diplomático do Irão na Argentina
  • Ahmad Ashagri, ex-representante diplomático do Irão na Argentina
  • Hadi Soleimanpour, ex-embaixador do Irão na Argentina.
  • Ahmed Vahidi, o então comandante das Forças Al Quds do Irão
  • Imad Mougnieh, na altura à frente do Serviço de Segurança de Hezbollah

Portanto, segundo o juiz Nisman, para pôr na Argentina dois alegados carros-bomba que não eram capazes de provocar os danos encontrados, tinha sido precisa a intervenção do Irão todo mas um gajo do Hezbollah que, evidentemente, por aí passava.

E o facto de que o tipo de explosão não coincidisse com a hipótese dos carros-bomba? Pouco importava, afinal a ideia agradava aos EUA e israel, pelo que isso tornou-se um pormenor.

A Presidente Cristina Kirchner não ficou convencida com a teoria do juiz Nisman e o mesmo aconteceu com algumas personalidades nos EUA. Portanto, nos últimos tempos, foi pedida em Washington a abertura de negociações com o Irão tendo em vista a possibilidade de formar uma comissão de investigação composta por cinco juízes independentes, nenhum dos quais cidadão de um dos dois Países (Argentina ou Irão). Mas a lobby judaica fez pressões para tornar inviável este acordo e conseguiu: a hipótese dos carros-bomba não deve ser posta em causa: é uma espécie de dogma.

E aqui entra em cena outra vez o juiz Nisman: este tinha denunciado a Presidente Cristina Kirchner por, alegadamente, ter conduzido negociações secretas com o Irão por via diplomática. A oferta da Kirchenr teria sido a seguinte: “esconder” o envolvimento das autoridades iranianas nos ataques para que a Argentina pudesse trocar o seu grão com o petróleo do Irão. Isso significava também que a Kirchner estava na posse de provas segundo as quais meio Irão era responsável dos atentados.

Portanto, nesta altura seria simpático que alguém começasse a apresentar estas provas e não apenas teorias.

As “provas” do juiz, por exemplo. De fonte certa, aliás, certíssima: Antonio Horacio Stiles, número três dos serviços secretos argentinos, sólidas ligações com CIA e Mossad, agora emigrado nos Estados Unidos. Esta era a fonte do juiz Nisman.

Sabia o juiz das ligações entre Stiles, CIA e Mossad? Sim, sabia. Como confirma o jornalista Santiago O’Donnell:

Nisman tinha-me dito que toda a informação de Stiles vinha de conexões com a CIA e o Mossad.

Mas isso não era nada que pudesse incomodar o juiz: tinha sido ele, Nisman, o primeiro a tornar EUA e israel as referências logo no início das suas investigações. E não é tudo. O mesmo jornalista O’Donnell, no seu livro Argenleaks, publica um documento da embaixada dos EUA na Argentina. Eis um excerto:

Voltando para a reunião, os funcionários da embaixada dos EUA disseram Nisman tinha que parar de brincar com a “pista síria: funcionários da Embaixada disse que as acções de Nisman não pareciam motivadas por nenhuma nova informação, mas estavam baseadas numa repetição de antigas teorias sobre a “conexão síria “, o que poderia complicar os esforços internacionais para levar ao julgamento os suspeitos iranianos.

Percebendo o desconforto dos diplomatas norte-americanos […], Nisman assegurou-lhes que não iria insistir nas suas conclusões sobre a “conexão local”. Disse que tinha entregue esta investigação ao juiz Lijo e que a partir de agora estaria dedicado a seguir as recomendações que tinham sido feitas pelos funcionários dos Estados Unidos. Como escreveu Wayne (embaixador na Argentina), Nisman disse que não teria tido mais nenhum papel nesse aspecto do caso (a investigação acerca da ligação local) e continuaria a concentrar-se na descoberta de novas pistas e fortalecer as provas contra os iranianos.

Acontece que durante a investigação, Nisman começa a considerar outras hipóteses, nomeadamente uma pista síria. Mas o entusiasmo não é partilhado pelos EUA e israel, segundo os quais, como vimos, os carros-bomba e a culpa do Irão estão acima de qualquer dúvida.
E que faz Nisman? Obedece. Isso tanta para entender o nível de “independência” do juiz…

No mesmo dia em que foi convidado pela oposição a comparecer no Congresso para depor, o juiz Nisman foi encontrado morto no seu apartamento. Um tiro de pistola (a dele) na cabeça, a porta fechada.

Enquanto a sua deposição teria provocado um debate dalguns dias, a morte tornou-o um mártir, uma vítima da conspiração governamental e desencadeou um movimento destinado a durar meses; e já cavalgado pelos que desejam uma mudança de rumo na política do País.

Suicídio ou assassinato?
Durante uma entrevista radiofónica (New York AM970), o ex-chefe do Mossad, Shabtai
Shavit, sugeriu que foi o Irão, “directa ou indirectamente”, a ter assassinado o juiz argentino. Provas? Nenhuma, ora essa: o ex-chefe da intelligence israelita explica que são os seus anos de experiência que o levam a pensar isso.

É bom ter em conta este depoimento absolutamente imparcial.
“Xerife de Nottingham, quem é que rouba aos camponeses, Rei João ou Robin Hood?”
“Tendo como base os meus anos de experiência, eu digo Robin Hood”.

Nesta altura, a verdade é bastante simples: Nisman não era juiz “imparcial e independente”, era alguém que operava segundo as ordens de Washington. Suicidou-se? Foi assassinado? A ideia é que Nisman tivesse esgotado o seu papel: agora dá mais jeito morto do que vivo. Nem podemos esquecer o contexto: Nisman morre 10 dias depois do atentado em França contra a revista Charlie Hebdo, 9 dias após o ataque ao supermercado israelita em Paris, poucas horas depois de israel ter assassinado alguns líderes de Hezbollah.

A morte de Alberto Nisman é muito mais do que uma questão argentina.

As redes sociais têm mudado rapidamente o slogan de Je suis Charlie para Yo soy Nisman. Ainda não há ninguém que saia da embaixada dos EUA para distribuir bolachas, como em Kiev, mas talvez seja só questão de tempo.

Ipse dixit.

Fontes: Diario Veloz, Information Clearing House, WND, The New York Times

4 Replies to “Argentina: a Presidente e o juiz-mártir”

  1. Este post foi-me despertando interesse crescente há medida que ia avançando na leitura. Isto porque nunca dei muita atenção ao caso Nisman.
    Este tipo de operação, assumindo como verdadeira a linha do post, é cada vez mais recorrente, o que deixa subetender que coisas maiores poderão surgir a qualquer momento, em qualquer lado.

    Krowler

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