A notícia, gritada por todos os media de regime, parece bombástica: milhões e milhões de Euros irão chover na cabeças dos cidadãos da Zona NEuro.
“Ehi, mas chove papel?”
“Não, é dinheiro”.
O pior será quando começarem a chover as moedas de 2 Euros, pior do que o granizo. Mas valerá a pena, pois com o Quantitative Easing (QE) do BCE os que agora não conseguem pagar as rendas poderão directamente comprar o apartamento. As empresas terão que fadigar para evadir as encomendas. Os cofres dos Estados explodirão, o desemprego será apenas uma lembrança feia e as pessoas serão eternamente felizes.
Tudo isso mais ou menos, claro. Ou se calhar não.
Aliás: não. Porque é verdade que com o QE em molho europeu a economia dará um pulo, mas um pulo para onde?
Pegamos nos Estados Unidos: os QE da Federal Reserve não deveriam ter provocado um “pulo” da economia norte-americana? Por qual razão não aconteceu?
Pegamos no Japão: meses e meses todos a repetir que o Primeiro Ministro é um louco, que os QE de Tóquio irão precipitar o País num Inferno sem regresso. E depois fazemos o mesmo?
Há lógica em todo isso?
Sim, há lógica, só que não pode ser explicada, não de forma oficial. Wolf Richter, analista económico e blogueiro, escreveu um bom artigo acerca disso: “Olhem que estão a afundar a economia global mas ninguém pode dizê-lo”. Se o Leitor entender um pouco de inglês, aconselho lê-lo, o link do blog (Wolf Street) fica no fundo deste artigo.
O que se passa é coisa já velha ma sempre actual: as políticas dos bancos centrais favorecem o famoso 1% da população mundial, a “elite”, enquanto aumenta a desigualdade.
Sim, verdade: ao longo das últimas duas décadas, centenas de milhões de pessoas têm sido “extraídas” da pobreza, principalmente na Ásia. Dito assim, até parece que a desigualdade ficou reduzida. Mas é exactamente o contrário, como explica Mohamed El-Erian, ex chefe da PIMCO e hoje Chefe do Conselho económico do Grupo Alianz: nos EUA, no Brasil ou na China (ahi ahi, os BRICS) houve um forte aumento da desigualdade na riqueza e isso resulta em desigualdade de acesso às oportunidades também.
Oxfam, uma organização sem fins lucrativos que trabalha em 90 Países, acaba de publicar um relatório segundo o qual o 1% mais rico do mundo está a ficar com a maior parte da riqueza global.
Em 2008, segundo os dados do Credit Suisse, o mesmo 1% possuía 44% desta riqueza.
Em seguida, houve a crise financeira e, a partir de 2009, mudanças, que ficaram ainda mais evidentes em 2010: o tal 1% começou a tomar posse duma parte cada vez mais crescente da riqueza, enquanto o restante 99% da população perdeu terreno.
Em 2014, o 1% do topo voou até deter 48% de toda a riqueza. E se esta tendência continuar, em 2016 o 1% deterá uma riqueza maior do que o resto da população mundial junta.
Não só. Em 2009, os 80 indivíduos que se acredita serem o mais ricos do mundo (segundo Forbes) tinha menos de 1 trilião de Dólares de riqueza líquida. Em 2014, esta fortuna quase duplicou, atingindo 1.9 triliões.
Dito de outra forma: os 80 indivíduos mais ricos possuem mais riqueza do que todos os 3,5 biliões de pobres juntos, 1 bilião dos quais vive com menos de 1,25 Dólares por dia.
Ok, voltemos atrás: foi dito que em 2009 a situação começou a mudar. Foi um ponto de viragem. Mas que aconteceu naquele ano, tal como nos seguintes? Algo tem que ter acontecido. E aconteceu, de facto: os bancos centrais de todo o mundo começaram a criar furiosamente dinheiro do nada e comprar activos financeiros (acções, títulos e outros), “enchendo” os preços destes.
Lembram-se dos bancos cheios de “activos tóxicos”?
“Temos que ajudar os bancos, o inteiro sistema está em perigo!” era o mantra da altura. E vai com políticas de taxas de interesse de 0 (zero), o que significou dinheiro praticamente grátis para os bancos. Isso enquanto as poupanças dos cidadãos ficavam a apodrecer nos bancos sem ganhar nada (uma taxa de interesse de zero significa que o dinheiro custa nada, mas o dinheiro na vossa conta bancária ganha nada também).
Resultado: quem tinha um pouco de dinheiro retirava-o do banco para investi-lo na Bolsa. E sabemos como é: quando há procura, os preços aumentam. Assim o dinheiro custava nada mas tudo o resto começou a aumentar: petróleo (“Nunca mais teremos um barril abaixo dos 100 Dólares!” vaticinavam os profundos conhecedores do mercado, gente com tanto de Nobel), acções, obrigações, títulos de alto risco, terrenos agrícolas, as commodities.
Mas quem beneficiou daquelas políticas monetárias?
E Bernanke estava certo: houve o “efeito riqueza” e beneficiou 1% da população.
Os activos tóxicos (acções, títulos, e assim por diante) do 1% foram salvos pelos bancos centrais. A confiança dos ricos cresceu e estes aumentaram os investimentos, pedindo dinheiro emprestado a um custo próximo de zero para comprar outros activos, confiantes de que preço teria continuado a subir porque os bancos centrais teriam continuado a imprimir dinheiro do nada. Uma maravilha.
E tudo isso enquanto ao restante 99% da população era contada a história dos bancos pobrezinhos e da economia que precisa de ser empurrada. Não é divertido?
Agora a Federal Reserve acabou os seus Quantitative Easing, mas tranquilos: é a altura do Banco Central Europeu, pois o joguinho funciona e não pode ser parado.
O que acontecerá com o QE europeu?
Paulo Portas, vice-Primeiro Ministro de Portugal:
Portas, de resto, elogiou muito a estratégia do BCE. Considerou-a “francamente positiva”, por visar “evitar a deflação, que gera riscos quase tão sérios como excesso de inflação; e melhorar o crescimento numa Europa que tem estado anémica”. Acrescentando que “visa” também “estimular a existência de reformas que tornem mais competitiva e mais flexível a economia europeia”. O presidente do BCE, “nos momentos certos, tem tomado as decisões certas para a Europa”, acredita Portas
“Melhorar o crescimento”…onde é que Portas consiga ver o crescimento é um mistério, mas agora a questão é outra: não ouvimos já isso?
E eis que chega o número um do governo, Passos Coelho, com uma intervenção muito, mas mesmo muito interessante:
Este financiamento do BCE não é para os Governos nem para os Estados, é
para os bancos e para a economia e portanto o BCE, ao contrário do que
algumas pessoas defendiam, não alterou o seu mandato, os seus estatutos,
o seu objetivo que é de política monetária e não está a financiar os
Estados, está a financiar os bancos e a economia.
É suficientemente claro?
Só como curiosidade, 12 de Novembro de 2011:
Lembrando que existe
uma crise de dívidas soberanas na Europa, que não afeta apenas Portugal,
Passos Coelho sublinhou que “se o BCE tivesse por função resolver o
problema dos países indisciplinados, imprimindo mais euros, pura e
simplesmente esse seria um péssimo sinal”. No seu entender, tal atuação
faria passar a mensagem de que não seria necessário rigor nem disciplina
orçamental, porque o BCE imprimiria mais moeda.[…] Para o
primeiro-ministro, não há consenso quanto à ideia de “monetização dos
défices” e, no seu entender, o caminho passa precisamente pelo
contrário.
23 de Janeiro de 2015:
Nunca me manifestei contra o programa do BCE, antes pelo contrário.
Esta era uma intervenção aguardada que está a ocorrer dentro daquilo que
é o estatuto e o mandato do BCE.
Normal. Mas voltemos ao QE do BCE.
Seria possível explicar com dados e intervenções de economistas porque o QE não será a cura para a economia europeia. Porque terá como consequência fazer subir os preços das acções, das obrigações. E porque o tal 1% agradece, mais uma vez.
Seria possível explica-lo com dados e intervenções, como afirmado.
Mas o Leitor já deve ter entendido.
Ipse dixit.
Fontes: Observador (1, 2), Diário de Notícias, Wolf Street