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A América do Sul e o Capital – Parte II

Segunda parte do artigo dedicado ao assunto América Latina e Capital.
Boa leitura.

A força de penetração e de especulação do grande capital não diminuiu com os governos progressistas, apesar das medidas fiscais e regulamentares tomadas por alguns desses Estados. Embora tenha havido progresso na implementação de políticas públicas em favor dos pobres, por outro lado não diminuiu o poder da grande expansão do capital.

Entre os governos democráticos populares, alguns se atreveram a promover a mudança constitucional, outros permanecem no quadro institucional e constitucional dos governos neoliberais que os precederam, mesmo envolvendo-se em conquistas sociais importantes, como a redução da pobreza e da desigualdade social.

As forças de Esquerda na América Latina continuam a concentrar-se no emprego do aparelho de Estado. Lutam para que os grupos dos marginalizados e dos excluídos possam ser incorporados nas regras normativas de cidadania (indígenas, sem-terra, sem-tecto, mulheres, recolhidores de materiais recicláveis, etc). Os governos e os movimentos sociais se reúnem, especialmente durante os períodos eleitorais, para conter as reacções violentas da classe dominante aliada ao aparelho do Estado.
Mas é esta classe dominante que mantém o poder. E, apesar do poder político aumentar as medidas em favor dos pobres, há um obstáculo intransponível no caminho: todo o modelo económico requer um modelo político compatível com os seus interesses. A autonomia da esfera política em relação à situação económica é sempre limitada.

Esta limitação impõe aos governos democráticos populares o dobrar-se perante alianças políticas, muitas vezes espúria, e sectores que, no País, representam o grande capital nacional e internacional, o que corrói os princípios e os objectivos das forças de Esquerda no poder.

E, facto ainda pior, esta Esquerda não consegue reduzir a hegemonia ideológica da Direita, que exerce um grande controle sobre os meios de comunicação e o sistema simbólico da cultura dominante.

Enquanto os governos democráticos populares se sentem permanentemente cercados pela Direita ofensiva e desestabilizadora, acusando-a de tentativas de golpe, este última sente-se segura, sendo apoiada pelos grande mass-media nacionais e globais, e por via da incapacidade da Esquerda em criar media alternativos, suficientemente atraentes para ganhar corações e mentes do público.

O modelo económico vigente, dirigido pelo grande capital e adoptado pelos governos progressistas, pretende tirar proveito dos benefícios da “globalização” para a exportação de commodities e de recursos naturais, recavando dinheiro para financiar, através das políticas públicas, o consumo dos segmentos excluídos.

Os governos democráticos populares usam uma retórica progressista, mas não podem abdicar do capital transnacional, que garante apoio financeiro, novas tecnologias e acesso aos mercados. E, para isso, o Estado deve participar como um forte investidor nos interesses dos investidores do capital privado, facilitando o crédito, com a isenção de impostos e a adopção de parcerias público-privadas. Este é o modelo pós-neo-liberal de desenvolvimento hoje predominante na América Latina.

Este processo de exportação-extorsão inclui recursos energéticos, água, recursos minerais e agrícolas, com destruição progressiva da biodiversidade e do equilíbrio ambiental, bem como a transferência de terra para monoculturas, exploradas com pesticidas e organismos geneticamente modificados.

O Estado investe na construção de infra-estruturas para facilitar o fluxo de bens naturais mercificados, cujas facturação em moeda estrangeira raramente regressa ao País de origem. Uma grande parte desta fortuna refugia-se em paraísos fiscais. Aqui é a contradição deste modelo neo-desenvolvidor que, no “fritar os ovos”, elimina as diferenças estruturais entre os governos de Direita e os de Esquerda.

Aceitar este modelo significa aceitar tacitamente a hegemonia do Capitalismo, ainda que sob o pretexto de mudança “graduais”, “realismo” ou “humanização” do Capitalismo. Na verdade, é mera retórica que se rende ao modelo capitalista.

Se os governos democráticos populares querem reduzir o poder das grandes empresas, não há nenhuma outra maneira que não seja uma intensa mobilização dos movimentos sociais, porque, neste momento, o caminho revolucionário é excluído, na verdade sendo de interesse de apenas duas áreas: o extremistas de Direita e os fabricantes de armas.

No entanto, se o objectivo for garantir as prestações do grande capital, então os governos progressistas terão de se adaptar, cada vez mais, a cooptar, controlar ou criminalizar e reprimir os movimentos sociais. Qualquer tentativa de equilíbrio entre os dois pólos é na verdade um casamento com o Capital e, em conjunto, um namoro com os movimentos sociais, na tentativa de seduzi-los e neutralizá-los.

Como os governos lidam com segmentos populares da população que beneficiou de políticas sociais? É inegável que o nível de exclusão e de pobreza causada pelo neoliberalismo requer medidas urgentes que vão além da mera assistência.

Agora, este assistencialismo é limitado ao acesso a limitados benefícios pessoais (bónus financeiros, escola, assistência médica, crédito fácil, isenção sobre os produtos de base, etc), sem uma complementaridade com os processos pedagógicos de formação e organização política. Dessa forma, são criadas bacias de rendimentos eleitorais, sem uma adesão a uma política alternativa ao capitalismo.

Dão-se os benefícios sem criar esperança. É promovido o acesso ao consumo sem favorecer o surgimento de novos actores sociais e políticos. E o que é pior, sem dar-se conta de que, no sistema de consumo em que as mercadorias são impregnadas de fetiches recicláveis ​​que dão valor ao consumidor e não ao cidadão, o Capitalismo pós-neoliberal apresenta “valores” – como a competitividade e a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza – que reforçam o individualismo e o conservadorismo.

O símbolo desta modalidade pós-neoliberal do consumismo é o telefone celular. Ele traz consigo a falsa ideia de democratização através do consumo e a incorporação na classe média. Assim, os segmentos excluídos sentem-se menos ameaçados quando acreditam estar ao seu alcance actualizar o modelo do telefone ao invés de obter o serviço de saneamento nas casas deles. O telefone celular é a senha para sentir-se inserido no mercado… E todos nós sabemos que as formas de existência social influenciam o nível de consciência. Ou, por outras palavras, a cabeça pensa onde os pés se encontram (ou imaginam encontrar-se).

Os nossos governos progressistas, nas suas muitas contradições, criticam o capitalismo financeiro e, ao mesmo tempo, promovem a “bancarização” dos mais pobres, através de cartões de acesso aos benefícios monetários, pensões e salários, crédito fácil, apesar das dificuldades em produzir direitos e eliminar as suas dívidas.

Em suma, o modelo neo-desenvolvedor monitorizado pela Esquerda esforça-se para fazer da América Latina um refúgio de estabilidade do Capitalismo em crise. E não tenta fugir da equação que combina a qualidade da vida e o crescimento económico, de acordo com a lógica do capital. E sem socializar a proposta da cultural indígena do bom viver, que pela grande maioria será sempre sinónimo de viver melhor em termos materiais.

O grande perigo de tudo isso é de fortalecer, no imaginário social, a ideia de que o Capitalismo é perpétuo (“A História acabou”, disse Francis Fukuyama), e que sem ele não pode haver processos realmente democráticos ou de civilização. O que significa demonizar e excluir, mesmo com a força, aqueles que não aceitam esta “obviedade”, considerá-los terroristas, inimigos da democracia, subversivos ou fundamentalistas.

Esta lógica é reforçada quando, em campanhas eleitorais, os candidatos de Esquerda falam com energia de que é necessário ganhar a confiança dos mercados, para atrair o investimento estrangeiro, tranquilizando os empresários e os banqueiros que têm mais dinheiro, etc.

Durante um século, a Esquerda latino-americana nunca se tinha adaptado à ideia de ultrapassar o Capitalismo em etapas. É uma situação nova, que exige muita análise para implementar políticas que impeçam que os actuais processos democráticos populares sejam invertidos pelas grandes empresas e pelos seus representantes políticos de Direita.

Este desafio não pode contar apenas com os governos. Deve estender-se aos movimentos sociais e aos partidos progressistas que, tão logo quanto possível, devem trabalhar como “intelectuais orgânicos”, socializar a discussão sobre os avanços e as contradições, as dificuldades e as propostas, com o fim de ampliar cada vez mais um imaginário centrado no libertação das pessoas e na conquista de um modelo de sociedade pós-Capitalista verdadeiramente emancipatória.

Admito, gosto muito deste artigo. Apesar da linguagem muito “anos ’70”, esta é a impressão que
tenho da América Latina. Se esteja correcta não sei, pois vivo numa outra parte do planeta, mas aqui é o Leitor que tem intervir para confirmar ou desmentir.

Há só dois pontos que gostaria de realçar.

1. Quem segue este blog conhece a posição do autor (eu!), que roga a ultrapassagem de divisões já velhas (Esquerda/Direita): acham que as tais indígenas do “bem viver” são de Esquerda ou de Direita? Eu acho que eles nem sabem o que isso significa e não deixam de viver bem por causa disso (aliás, vivem melhor).

Por isso, duvido que na só Esquerda fique o segredo da felicidade, tal como não há na Direita. Um novo conceito de sociedade não pode nascer com no berço as imagens de Adam Smith ou de Carl Marx: nasceria já velha e podre.

2. Há uma frase que fez-me uma certa impressão:

[…] os candidatos de Esquerda falam com energia de que é necessário ganhar a
confiança dos mercados, para atrair o investimento estrangeiro,
tranquilizando os empresários e os banqueiros que têm mais dinheiro

Conheço bem esta frase (“ganhar a confiança dos mercados”) pelo facto de tê-la ouvido inúmeras vezes. Aliás, esta era o slogan do Partido Comunista Italiano (PCI) após a queda do Muro de Berlim, quando era necessário re-inventar-se, despir a farda revolucionária para ser bem aceite pelo grande Capital.

O resultado é que hoje o PCI já nem existe: no lugar dele temos um partido de “Esquerda” (o Partido Democrata) que é difícil distinguir do partido de Berlusconi (e acreditem, não é um exagero: esta é uma das maiores críticas movidas ao Primeiro Ministro Matteo Renzi, também líder do ex-PCI, cujas políticas são o natural seguimento daquelas de Berlusconi).

Em outras partes da Europa, a Esquerda ou desapareceu ou sucumbiu perante os mercados (ou sobrevivem, como em Portugal, para recolher os votos dos nostálgico e dos reformados).

O que quero dizer é que quando um partido de Esquerda quer ser aceite pelos mercados, implicitamente admite abandonar os ideais que até a altura tinha defendido para abraçar uma nova ideologia: a ideologia do Capital. Não poderia ser de forma diferente (alguma vez ouviram um Che, um Marx, um Lenine falar de ser aceite pelo mercado?).

Num sistema político-económico normal (isso é, não como o nosso), deveria ser o mercado a adaptar-se às escolhas dos cidadãos (escolhas que se expressam nos partidos). Quando for a vontade dos cidadãos que tem de adaptar-se às leis do mercado, a política deixa de ter a supremacia sobre o capital e por este é conduzida.

O resultado é o que podemos observar à nossa volta.

Ipse dixit.

Fontes: meus senhores, aconteceu uma desgraça: perdi o link da fonte. O artigo de Frei Betto está num dos últimos números de Le Monde Diplomatique, mas já não consigo encontra-lo. Deve ser a primeira vez que isso acontece. Juro: Frei Betto escreveu isso tudo, não fui eu que inventei! Liguem para Frei Betto, perguntem!

Update: não apenas encontrei, como também encontrei a versão em português: pelo que, traduzi tudo por nada. Salva de palma para Max, a raposa de Portugal. O link é este: Le Monde Diplomatique edição brasileira