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A América do Sul e o Capital

Prenda para os Leitores do Brasil!
E da América Latina no geral.
E para os outros também assim todos ficam contentes.

Encontrei um artigo que acho ser interessante. Explico.

Sempre olhei para os fenómenos da América do Sul com suspeito. Alba, Celac, Unasur, Evo Morales, Dilma…tudo lindíssimo, tudo fantástico, mas há algo de fundo que inquieta.

Os modelos progressistas da América Latina estão todos baseados no Capitalismo. Todos, sem excepção. E não há sinais de que algo possa mudar num próximo futuro. O que acho uma pena.

Porque se dum lado estamos de acordo que afastar-se da influência norte-americana seja positivo, doutro lado um Capitalismo progressista é sempre…Capitalismo. Mudamos de patrão, mas a trela é a mesma.

E é curioso, porque mesmo aqui no blog já fui acusado de acreditar num Capitalismo com um rosto humano: curiosamente é o que fazem os progressistas da América do Sul, ao propor um Capitalismo que, sendo progressista, supostamente apresenta um rosto “humano”.

Pode ser “humano” o Capitalismo? Ou terá implícitas no seu ser as bases para, mais cedo ou mais tarde, descarrilar para uma sociedade dominada por poucos, fonte de desigualdades e injustiças?

No Brasil, Lula & c. têm extraído (literalmente) da pobreza quantas pessoas? Muitas, muitas mesmo. E este facto tem que ser lembrado. O mesmo aconteceu naqueles outros Países da América Latina que abraçaram governo de Esquerda.

Mas o que aconteceu a estes ex-pobres? Foram inseridos na lógica do capital.
Lembram-se da canção dos Pink Floyd, Another brick in the wall (“Um outro tijolo na parede”, por acaso um das piores faixas do grupo inglês)? O conceito é o mesmo.

Por isso, aplausos merecidos para Lula & c. (e isso sem ironia nenhuma), mas fica uma dúvida de fundo: não é possível ir além disso? Qualquer revolução (ou governo alternativo) é destinado a ser apenas uma troca de patrão? Dum sistema capitalista para outro?

O discurso poderia ser ampliado, incluindo os Brics (a China, a Rússia…). Mas por enquanto ficamos com a América do Sul.

O artigo que encontrei é dum escritor brasileiro, que muitos entre os Leitores imagino conheçam bem melhor do que eu. Trata-se de Frei Betto (aliás Carlos Alberto Libâno Christo), teólogo, escritor e político, vencedor do Prémio Jabuti: é um dos máximos exponentes da Teologia da Libertação (fique descansado o Leitor: no artigo de teologia não há nada, só aspectos políticos e económicos).

O artigo foi publicado este mês no Le Monde Diplomatique e aqui vai a tradução integral. Como é comprido, vai ser dividido em duas partes. Isso per evitar que o Leitor adormeça perante o ecrã.

América Latina:
o domínio do capital financeiro

Hoje, no meio da segunda década do século XXI, os governos democráticos populares predominam na América Latina. A maioria deles foi eleito por forças de esquerda. Cinco dos actuais chefes de Estado eram guerrilheiros durante as ditaduras: Dilma Rousseff, no Brasil; Raúl Castro em Cuba; na Uruguai José Mujica; Daniel Ortega na Nicarágua; Sanchez e Salvador, El Salvador.

Agora, ser de Esquerda não é um problema emocional ou uma mera adesão aos conceitos formulados por Marx, Lenin e Trotsky. É uma escolha ética, com razão. Uma opção que tem como objectivo promover, em primeiro lugar, os marginalizados e os excluídos. Ninguém é de Esquerda pelo facto de afirmar isso ou porque se enche a boca de clichés ideológicos, mas por via das práticas que desenvolve em relação aos segmentos mais pobres da população.

Na América Latina, os chamados governos democráticos populares incluem diversas concepções e procuram, em teoria, propor sociedades alternativas ao capitalismo. Movem-se de forma contraditória entre as políticas públicas voltadas para os segmentos de baixo rendimento e o sistema capitalista global, regido pela “mão invisível” do mercado. Os governos democráticos populares têm produzido, de facto, mudanças importantes para melhorar a qualidade de vida de amplos segmentos da sociedade.

Hoje, 54% da população vive em Países latino-americanos governados por governos progressistas. É um evento sem precedentes na história do Continente. O outro 46%, cerca de 259 milhões de pessoas, vivem sob governos de direita, aliados dos Estados Unidos e indiferentes se a desigualdade social e violência  piorarem.

Segundo Bernt Aasen, Directora Regional da UNICEF para a América Latina e Caribe, entre 2003 e 2011no Continente mais de 70 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza; a taxa de mortalidade das crianças com menos de cinco anos foi reduzida em 69% entre 1990 e 2013; a desnutrição crónica entre as crianças de 6 meses a 5 anos diminuiu de 12,5 milhões (em 1990) para 6,3 milhões (2011), o acesso ao ensino primário aumentou de 87,6% (em 1991) para 95,3% (2011).

No entanto, acrescenta, “A nossa região continua a ser a mais desigual do mundo, onde 82 milhões de pessoas vivem com menos de 2,50 Dólares por dia, 21,8 milhões de crianças e adolescentes não estão na escola ou estão em risco de abandoná-la; 4 milhões não foram registadas ao nascer e, portanto, oficialmente não existem […] e 564 crianças menores de 5 anos morrem diariamente de causas evitáveis​​” (ver O Globo, 2014/05/10, p. 19).

Dum ponto de vista histórico, é a primeira vez que tantos governos do Continente são mantidos longe dos ditames da Casa Branca. É também a primeira vez que são criadas instituições continentais e regionais (ALBA, CELAC, UNASUL, etc), sem a presença dos Estados Unidos. Trata-se de uma redução do influência imperialista na América Latina, entendida como a predominância de um Estado em detrimento de outro.

No entanto, uma outra forma de imperialismo prevalece na América Latina: o domínio do capital financeiro, focalizado agora na reprodução e na concentração do grande capital, que conta com o poder dos seus Países de origem para a promoção, por parte dos Países de acolhimento, da exportação de capitais, bens e tecnologias, e apropria-se das riquezas naturais e de valor acrescentado. Houve uma mudança desde a submissão política para a submissão económica.

E o resto?
Na segunda e última parte.

Ipse dixit.

Fonte: na segunda parte do artigo