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Tomates

Já sabemos: vivemos num mundo onde o que conta é a aparência.

Os factos, a realidade das coisas, passam em segundo plano. Até desaparecem se for o caso, totalmente substituídos por aquilo que os olhos vêm e que o cérebro quer acreditar.

O que acontece com o vírus Ébola é um bom exemplo. Mas podemos encontrar o mesmo na nossa vida de todos os dias. Aliás, continuemos o discurso começado com Ébola, o discurso acerca do racismo.

Lembro do que escreveu o Leitor Pedro entre os comentários:

Estupefato ao ler tanta bobagem!

Suponho (mas posso estar errado) que Pedro seja uma boa pessoa, daquelas naturalmente contra o racismo, para qual a ideia de explorar um outro ser humano (sobretudo sem com a pele de cor diferente) provoca a náusea.

Então uma pergunta: Pedro, costuma comprar tomates? Daqueles bons e gordos tomates vermelhos, italianos ou espanhóis, possivelmente enlatados? Fiz uma breve pesquisa na internet e vi que são regularmente vendidos, frescos ou enlatados, tomates pelados, tomates cerejas, etc.

Ora bem, vamos contar uma história para que o Pedro e nós todos possamos esclarecer as ideias acerca do que é o racismo, aquele moderno, e de como funciona. E de como todos, sem distinção, somos racistas (e exploradores) nos factos.

Os tomates do Gana

No Gana, o tomate era um dos principais recursos da economia. Cultivado há séculos, a culinária ganense estava recheada de pratos preparados com os tomates. E, claro está, imensos eram os campos de cultivo, cheios de trabalhadores locais.

Depois aconteceu algo. O governo de Accra (a capital do País), decidiu diminuir consideravelmente as taxas sobre os produtos importados. Não sabemos qual a razão duma tal escolha, mas não é difícil imaginar uma qualquer “gorjeta” para os funcionários certos nos lugares certos.

O resultado foi devastador: no caso do tomate, latas importadas de Italia, Espanha, China, com preços inferiores aos praticados pelos produtores locais, que não podiam competir. Em breve, os campos de tomate do Gana ficaram vazios: cultivar já não compensa.

Mas a história não acaba aqui. Porque cada campo de tomate dava trabalho a um ou mais trabalhadores, que ficaram assim desempregados. E ficar desempregado em África, num País do Terceiro Mundo, não é nada simpático. Pelo que, para muitos a única solução foi emigrar para Países mais ricos, como os europeus, por exemplo.

O que pode fazer um cultivador desempregado que emigrar para Espanha ou Italia? Pode trabalhar nos campos de tomates, que por aí não faltam. E é exactamente isso que acontece. Até é difícil quantificar o número de pessoas que hoje trabalham em condições miseráveis, com salários de fome, sem documentos legais, sem assistência médica, sem segurança nenhuma naqueles campos.

O que sabemos é que hoje os ganenses cultivam os tomates nos campos italianos ou espanhóis; recolhem os tomates dos mesmos campos; enlatam os tomates nas fábricas europeias; enviam para o Gana tomates cultivados na Europa pelos ganenses, fazendo assim florescer as indústrias ocidentais e continuando a fazer que cultivar tomates no País deles fique impossível.

Pergunto: Pedro, este não é racismo? Para mim é.
E reparemos: aqui falamos apenas dum único País (o Gana) e dum único produto (o tomate). Quantos casos parecidos se não idênticos haverá no planeta todo, envolventes milhares de outros produtos?

Nós, os bons

Mas ainda não acabou. Porque depois temos…nós.

Nós, firmemente anti-racistas, que choramos ao ver uma criança africana com a barriga vazia, entramos num supermercado e compramos uma lata de tomate italiano, espanhol, etc., ou até uma rama de tomatinhos frescos, logo desembarcados.

É justo, um prato de massa com tomate sabe bem e os tomates do Mediterrâneo são especiais (e são, acreditem).

Mas o que fazemos com isso? Ignorando ou não, apoiamos as empresas que mataram o cultivo de tomate no Gana, que obrigaram as pessoas a emigrar, que exploram aquelas mesmas pessoas para o seu próprio enriquecimento feito à custa dum País africano.

Podemos considerar-nos culpados, até cúmplices? Sim e não.
Sim, porque hoje existe internet e informar-se é simples.
Não porque uma pessoa não pode consultar internet de cada vez que tenciona comprar um produto no supermercado.

Para mim a resposta é “sim, somo culpados”, pela simples razão que temos de escolher, sempre, os produtos locais (e não apenas por uma questão de racismo, mas ambiental também e por outras ainda).

Relembramos mais uma vez: aqui fala-se do tomate, mas o discurso abrange muito mais do que isso. É o mesmo conceito de globalização que implica a exploração de inteiros Países em prol de outros. É o moderno racismo (feito, diga-se de passagem, não apenas contra os Países africanos), que faz perder o trabalho a milhões de pessoas, obrigando-as a abandonar as suas terras para sobreviver.

O anti-racismo, assim como a política toda, não é feita com o boletim de voto mas nas caixas do supermercado.

Ipse dixit.