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O Califado! Tenham medo Cristãos, tenham muito medo…

Alguns títulos das últimas semanas.

TSF: Jihadistas anunciam criação de califado 
BBC Brasil: Califado de grupo islâmico é avanço perigoso, diz analista
Terra: Iraque: insurgentes restabelecem “califado islâmico”
The Guardian: Isis declara califado no Iraque e na Síria

Ponto número um: não há califado nenhum. Só que um grupo de deficientes que acha viver ainda no tempo das cruzadas dá jeito. A quem? Bom, não é difícil imaginar isso.

A notícia da “restauração do califado” pelos chamados mujahedin (isso é, os “empenhados num esforço aceitável aos olhos de Deus”, nada mais, nada menos) no passado dia 30 de Junho, na área de fronteira entre a Síria e o Iraque, causou rapidamente um oceano de comentários: na grande maioria dos casos, infelizmente, completamente fora da realidade.

O elefante e os cacos

O ISIL (ou ISIS) enfatiza a natureza universal da sua escolha e até mudou o seu nome para IS, Islamic State, Estado Islâmico. Algo que deveria juntar todos os muçulmanos do mundo e restaurar a umma, a comunidade muçulmana como um todo.

O novo califa tem o nome do primeiro califa do Islam, Abu Bakr, sogro do Profeta Maomé: é Abu Bakr al-Baghdadi, também líder do IS. O porta-voz da organização, Abu Muhammad al-Adnani, salientou a importância do evento, que daria uma nova cara ao Islam, e exortou os fiéis a acolher o bem ao rejeitar a “democracia” e os falsos valores do Ocidente.

Alguns “especialistas” têm comentado que estamos perante o mais importante desenvolvimento da jihad muçulmana após o 11 de Setembro de 2001 e que o novo califado pode até quebrar o equilíbrio do Oriente Médio e representar uma ameaça real para a liderança da al-Qaeda. O que não faz sentido, sendo o IS e o califado parte daquela galáxia de organizações radicais que convivem sob o nome de Al-Qaeda.

Por sua parte, o governo iraquiano liderado por Nouri al-Maliki (que fica numa posição um tanto ambígua: permanece na órbita dos Estados Unidos mas detesta os Estados Unidos e é uma expressão da comunidade xiita iraquiana que simpatiza para a Síria e o Irão, portanto contra os Estados Unidos; os quais, doutro lado, detestam al-Maliki e vão tentar substituí-lo) está envolvido numa contra-ofensiva que visa recuperar os territórios ocupado pelo IS, arrancando com a ofensiva no começo de Junho coordenada por trezentos “conselheiros militares” de Washington.

O Califado

Enquanto isso, al-Maliki aceitou da Rússia a entrega de doze caças-bombardeiros Sukhoi, que lhe permitem combater eficazmente os guerrilheiros do SI, e o Irão forneceu (ou está já a fornecer) ao governo oficial iraquiano alguns drones.

Para completar o quadro, é bom lembrar que o exército do “califado” tem um equipamento suportado por financiamentos dos emirados do Golfo, Arábia Saudita inclusive. Aquela mesma Arábia Saudita que é aliada dos Estados Unidos.

Faz sentido tudo isso? Contrariamente ao que pode parecer, a reposta é “sim”, faz todo o sentido. E a explicação reside na profunda ignorância com a qual o Ocidente mexeu-se nas últimas décadas.

Nós, ocidentais, costumamos ver o mundo islâmico como um todo, uma espécie de monólito. Mas assim não é: existe uma grande fractura no Islam entre xiitas e sunitas,
um pouco como no Cristianismo existem os Católicos e os Protestantes.
Esta divisão tem um nome: Fitna, que pode ser traduzido com “discórdia”.

Mover-se no panorama oriental sem considerar este aspecto é como entrar numa loja de cristais com um elefante. EUA, Grã Bretanha, França, apoiaram as “Primaveras Árabes”, as revoltas contras Assad, ameaçaram Teheran, financiaram o “novo” Iraque, viraram de avesso o Egipto, sem perceber o que estava em jogo. Até israel deu prova de pouca lucidez ao pôr-se contra o regime “moderado” de Erdogan na Turquia.

Ao longo duma década vivemos na ilusão de que o problema era Bin Laden com a sua organização criada pela CIA (al-Qaeda). Morto Bin Laden, problema acabado. Festa grande no Ocidente, o mau da fita morreu. Mas Bin Laden, aristocrata saudita, instrumento ocidental finalizado à criação do Grande Medo, limitou-se (de forma consciente ou inconsciente, provavelmente nunca vamos descobrir isso) a abrir as portas, atrás das quais estava a Fitna, aquela divisão antiga de séculos que agora tem armas e motivações para voltar a fazer correr o sangue. 

Resultado: o Novo Grande Medo agora tem o rosto do terrível califado, algo que parece saído duma  inexperiente empresa de marketing. Mas o problema não é esta encenação de terceira categoria, o problema é que o Ocidente tem trabalhado (como o tal elefante na loja) para acordar algo que estava adormecido. E conseguiu.
Agora fica a observar os cacos: alguém tem cola?

O terrível e patético califado

Abu Bakr al-Baghdadi, o Califa!

E chegámos ao ponto: existe ou não este califado? Tem pernas para andar? É uma ameaça? Teremos
que acordar rodeados de reluzentes cimitarras? Vamos ser vendidos como escravos no mercado de Medina?

Para percebe-lo temos que ver o que é um califa.

Em 632, após a morte do Profeta que ao longo duma década tinha dirigido os árabes convertidos ao Islam (segundo o modelo dum conselho federal das tribos, tal como Moisés dirigia o governo descrito no Êxodo), os seus seguidores estabeleceram eleger um Khalifa, que é um sucessor para a liderança da Umma (a comunidade muçulmana, como vimos).

O califa combinava o poder judicial e aquele executivo, não o Legislativo pela simples razão que as leis já existiam e ficavam no Corão. Os quatro primeiros califas, conhecidos como Rashidun (os “bem encaminhados”), foram escolhidos com uma eleição feita pelos anciãos da comunidade e não foi um grande sucesso: todos foram assassinados. Pelo que surgiram as primeiras divisões, a tal Fitna, que culminaram com Ali, primo e genro do Profeta, que de facto fundou o movimento xiita já em 658 d.C.

Aqui podemos observar quais as diferenças entre os três movimentos islâmicos:

Sunitas, Xiitas e Kharijites ainda representam as três denominações fundamentais do Islam, mas as duas principais correntes são a sunita e a xiita. E destas, apenas um reconhece a instituição do califado.

E aqui chegámos ao novo Califado. estabelecido nestes dias no Iraque.
O Califa (khalīfa) è o termo utilizado para indicar o Vigário de Maomé na guia política e espiritual da comunidade islâmica.

O problema é que o último califa “clássico” sunita foi al-Mustaʿsim (1242-1258 d.C.); o último califa árabe foi Abdül Mejid II (1922-1924 d.C.), da dinastia otomana (a Turquia de hoje). A partir de então não houve mais Califas.

Tem Abu Bakr al-Baghdadi, o “novo Califa”, a autoridade necessária para proclamar um Califado?
Segundo muitos islâmicos a resposta é “não” (aqui, por exemplo, o que pensa o pregador Yussef Al-Qaradaui). E os mesmos combatentes na Síria rejeitam a ideia como “ilógica” e “sem fundamento legal”. O Califado de Baghdad ficará assim sem qualquer poder efectivo até o reconhecimento da Liga Árabe (que não irá reconhece-lo). Nem será reconhecido pelos Xiitas, como é claro. 

Doutro lado, reconhecer o califado do Estado Islâmico do Iraque significaria fazer correr ao contrário os ponteiros do relógio, como se na Europa alguém quisesse fazer renascer o Sacro Romano Império de Carlos Magno.

Os islâmicos desejam o regresso dum Califado, mas não destes e não nestes termos. O Califado é visto como oportunidade para reunir sob uma única bandeira toda a comunidade muçulmana, seja sunita, xiita ou kharijites. Este Califado falha já na base, que é integralmente sunita e que, mesmo assim, deixa perplexos até os sunitas mais radicais (como os “rebeldes” da Síria).

Claro: a conquista do mundo…

Então, este Califado não tem utilidade? Tem, fiquem descansados, tem.

Para já foi accionado o alarme internacional, naturalmente apoiado pelo Pentágono, contra o perigo de “ataques por grupos de iraquianos, sírios ou iemenitas” (isso porque segundo Washington aquela gente é toda igual, sempre muçulmanos terroristas são).

Controles mais rigorosos nos aeroportos, novas perspectivas de negócios para as multinacionais do costume (os contractors têm que trabalhar, não é?) e, quem sabe?, em perspectiva até uma acção humanitária para erradicar o Califado do Iraque e, já que estamos aí, remover também o presidente al-Maliki.

E esperem nos próximos tempos notícias arrasadoras do Califado: mulheres violadas, presas, lapidadas, crianças assadas, idosos esquartejados, tudo o que a fértil e mórbida imaginação da máquina mediática ocidental conseguir imaginar. Tudo com a caixa de ressonância dos diários (que vendem bem com esta histórias), das televisões (as audiências!) e o apoio dos “especialistas” (bem pagos).

O bolo do medo tem fatias para todos.

Ipse dixit.

Fontes: no texto