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TISA

As “revelações” de Wikileaks até agora não podem ser comparadas, do ponto de vista dos efeitos, às de Edward Snowden. Todavia, Wikileaks continua a obra de difusão e agora apresenta um documento que vai além das fofocas entre embaixadas e promete um certo interesse.

Trata-se dum tratado internacional que poderia ter enormes consequências para as vidas de biliões de pessoas no mundo, ainda mais do que a privatização dos serviços básicos, tais como serviços bancários, saúde, transportes, educação. Um acordo que é negociado no segredo absoluto e que, em conformidade com as suas disposições, não pode ser revelado antes de cinco anos após a sua aprovação.

Dois diários, o italiano L’Espresso e o alemão Sueddeutsche Zeitunge, apresentam parte do conteúdo do tratado, graças ao trabalho de WikiLeaks, a organização de Julian Assange que concedeu a exclusiva (e os cofres de Assange agradecem).

O nome do tratado é Tisa, que significa Trade in Services Agreement (“Acordo sobre a Troca de Serviços”) porque não afecta os bens mas os serviços, que é o coração da economia dos Países desenvolvidos. Os riscos são enormes: o sector dos serviços é o maior que oferece trabalho do mundo e produz 70 % do produto interno bruto global. Só nos Estados Unidos é responsável por 75 % da economia e gera 80 % dos postos de trabalho no sector privado.
Sentados à mesa para seguir as negociações do Tisa encontramos aqueles Países que têm os maiores mercados no âmbito dos serviços: Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, os 28 países da União Europeia mais a Suíça, Islândia, Noruega, Liechtenstein, israel, Turquia, Taiwan, Hong Kong, Coreia do Sul, Japão, Paquistão, Panamá, Peru, Paraguai, Chile, Colômbia, México e Costa Rica.

Rascunhos do Tratado ou informações mais precisas sobre as negociações não existem. Por esta razão, quanto publicado é importante: se confirmado (o que não será simples), representa a primeira vez desde o começo das negociação que notícias acerca do Tisa, e não apenas vozes, são divulgadas. O texto remonta ao passado dia 14 de Abril, a data da última reunião (a próxima está agendada para os dias 23-27 de Junho) e é um esboço dos pedidos apresentados pelas várias partes em jogo: realça as diferenças entre os vários Países (como os Estados Unidos e a União Europeia) e revela as diferentes ambições e agendas nacionais.

O que impressiona de imediato é a primeira página do arquivo, que explica como o documento tenha que permanecer em segredo, apesar de poder ser discutido utilizando canais desprotegidos:

Este documento deve ser protegido contra a divulgação não autorizada, mas pode ser enviado por correio, por e-mail sem sigilo ou fax, discutido através de linhas telefónicas inseguras e armazenado em computadores não reservados. Deve ser armazenado num edifício, quarto, ou contentor fechado ou protegido.

Esquisito. Tudo isso parece ser pensado para favorecer uma fuga de notícia, pelo que é lícito perguntar se não estarmos perante duma divulgação “controlada” para sondar as reacções do público. Mas vamos em frente.

O documento poderá ser desclassificado “depois de cinco anos após a entrada em vigor do Tisa e, se não entrar em vigor, cinco anos após o encerramento das negociações”.

Por qual razão tanto secretismo (seja isso de fachada ou menos)?

A razão é que o Tisa é a natural continuação do Doha Round, a série de negociações lançadas em Doha, no Qatar em 2001, e realizado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, para favorecer a globalização e a liberalização da economia; o Doha Round provocou protestos em todo o mundo e que falhou em 2011, após dez anos de negociações que envolveram Estados Unidos, Japão, União Europeia e Países em desenvolvimento (Índia, China, América Latina).

Com o fracasso do Doha Round, os Países envolvidos decidiram continuar em palcos menos visíveis: o resultado é o Tisa, do qual ninguém fala e que muito poucos conhecem.

Em que consiste o Tisa? Difícil afirma-lo com certeza até não estar disponível o projecto completo, mas o esboço fornecido por Wikileaks acerca dos Serviços Financeiros indica uma tendência clara.
Jane Kelsey, professora de Direito da Universidade de Auckland, Nova Zelândia

O maior perigo é que o Tisa trava as tentativas dos governos para fortalecer as regras do sector financeiro. O Tisa é promovido pelos governos que criaram no WTO [World Trade Organization, a Organização Mundial do Comércio, ndt] o modelo de desregulamentação financeiro que falhou e que foi acusada de ter ajudado a alimentar a crise económica mundial.

Um exemplo do que emerge deste projecto demonstra que os governos que aderem ao Tisa permanecem obrigados a ampliar os existentes níveis liberalização e desregulamentação das finanças, perderão o direito de reter os dados financeiros nos seus territórios, vão ficar sob pressão para aprovar produtos financeiros potencialmente tóxicos e irão enfrentar acções legais caso sejam tomadas medidas de precaução para evitar uma nova crise.

O artigo onze do texto libertado por WikiLeaks não deixa dúvidas sobre o facto de que os dados das transacções financeiras estão no centro dos objectivos dos Países que lidam com o Tisa. No texto, a União Europeia, Estados Unidos e Panamá (este último conhecido paraíso fiscal) apresentam diferentes propostas.

A Europa exige que “nenhum país parte das negociações adopte medidas para impedir a transferência ou a análise da informação financeira, incluindo a transferência de dados por via electrónica, de e para o território do país em questão”. A União Europeia precisa que, apesar desta condição, a lei dum Estado membro do Tisa para a protecção dos dados pessoais e da privacidade permanecerá intacta, “desde que esse direito não seja utilizado para contornar este acordo”.

Panamá, no entanto, coloca as mãos para a frente e pede para especificar que “um país parte do acordo não seja obrigado a fornecer ou permitir o acesso a informações relacionadas com assuntos financeiros e contas de clientes individuais numa instituição financeira ou num prestador de serviços financeiros transfronteiriço.

Os Estados Unidos, pelo contrário, são drásticos: os países que fazem parte do acordo devem permitir que o fornecedores de serviços financeiros transfiram, dentro e fora do seu território, de forma electrónica ou de outra forma, os dados. Ponto. Não há detalhes sobre a privacidade neste caso.

É interessante notar como, enquanto no mundo debate-se acerca das revelações de Edward Snowden, a espionagem da NSA e tudo o resto, os membros do Tisa não apenas ignoram isso mas discutem alegremente  de partilhar qualquer dado, sem limitações. O que o NSA adquire ilegalmente, no Tisa torna-se lei.

A Europa, por exemplo, dum lado abriu oficialmente uma investigação sobre o escândalo NSA, com a pomposa “Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos” do Parlamento Europeu; do outro lado, e sem esforço, trata com os Estados Unidos acerca da transferência de soberania sobre os nossos dados financeiros por razões de negócios. Casando, afinal as afirmações da lobby Coalition of Services Industries (IBM, Microsoft, A&T, UPS, FedEx, JPMorganChase, etc.) segundo a qual:

Com o avanço da tecnologia da informação e da comunicação, cada vez mais os serviços serão prestados por via electrónica e, portanto, as restrições à livre circulação dos dados representam uma barreira ao comércio do serviços em geral.

Ámen.

O tratado prevê também a eliminação de todas as leis nacionais que são consideradas como obstáculos ao comércio dos serviços no sector financeiro; das regras para limitar o tamanho das instituições financeiras (Too Big To Fail, as demasiado grande para falir) e a privatização da segurança social.

O Tisa é portanto uma proposta para a desregulamentação total dos bancos e das grandes instituições financeiras, uma espécie de manifesto para um futuro de “ditadura financeira”, que iria beneficiar os poucos (a “elite”) à custa dos cidadãos, cujo dinheiro já agora é utilizado para salvar as instituições financeiras.

O sonho da tal minoria é portanto um mundo completamente escravo do dinheiro (melhor ainda se electrónico) e totalmente mercantilizado, onde cada indivíduo é essencialmente submetido ao sistema financeiro privado. Para que isso se torne possível, é preciso eliminar as barreiras, constituídas pelos Estados nacionais e pelas leis destes.

O Tisa indica o caminho.

Ipse dixit.

Fontes: L’Espresso, Wikileaks: Trade in Services Agreement (ficheiro Pdf, inglês)