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National Geographic: reescrever a História em favor da Nato

Ontem passei-me. E sim que após quatro anos de blog deveria já estar habituado.

Costumo ver Air Crash Investigations, Mayday – Desastre Aéreos em português, uma série do National Geographic acerca das tragédias do ar: como de vez em quando apanho o avião, é agradável saber antes como podemos morrer depois e quais as causas.
É uma satisfação.

Ontem episódio dedicado aos factos de Ustica, aos quais já tínhamos dedicado dois artigos: 30 anos, o fio vermelho e A Líbia, a França, a Nato: trinta e um anos atrás.

Extrema síntese: no dia 27 de Junho de 1980, um avião civil da Itavia que fazia a ligação entre Bologna e Palermo (Italia) e que transportava 81 passageiros mais a tripulação, de repente desapareceu dos radares.

Seguiram-se 30 anos de investigações, despistagens, um longa série de acidentes que viu mortalmente envolvidos pessoal militar e civil que, mais ou menos directamente, estavam relacionados com o assunto. Só em 2011 chega a decisão definitiva da Justiça: o avião da Itavia tinha sido abatido por um míssil durante uma acção de guerra nos céus italianos, acção no meio da qual o avião civil entrou por acaso (tinha partido de Bologna com duas horas de atraso).

Apesar de ainda existirem dúvidas acerca da completa dinâmica, sabe-se hoje que houve um confronto entre caças líbios e caças da Nato, provavelmente de origem francesa.

Dado que este foi um dos factos acerca dos quais a opinião pública italiana sempre demonstrou particular interesse (o facto chocou o País em 1980), eu incluído, eis que com curiosidade comecei a assistir ao programa do National Geographic.

O resultado é que arrisquei um ataque de fígado.
O National, em menos de uma hora, conseguiu demonstrar que:

Eu fiquei boquiaberto. O que é perigoso pois podem sempre entrar moscas.
O facto de ter havido aviões militares na área é mais do que confirmado:

Nada, tudo isso não importa, o National Geographic atira tudo para o lixo e decide que o desaparecimento do avião é um mistério. Aliás, era um mistério, porque agora um novo especialista, tal Frank Taylor, analisa tudo de novo e descobre que a culpa foi duma bomba posicionada na toilette.

Uma bomba? Na toilette? Claro que sim. E eis a prova: o lavatório estava tudo retorcido, exactamente como se na toilette tivesse havido uma explosão.

Pena que uma outra equipa de especialistas britânicos, guiados pela D.ra Halstead, encontrou o lavatório e o assento do water intactos: e, uma vez analisados os restos da toilette, não foram encontrados restos de explosivos.

Além disso: uma bomba num voo de dura uma hora e meia e parte com duas horas de atraso? A bomba deveria ter explodido até antes do avião partir. Mas não segundo o National Geographic, que ignora totalmente os resultados da equipa da D.ra Halsetad e apresente o simpático Taylor como uma espécie de Sherlock Holmes reencarnado.

E eis a conclusão: quem tentou convencer ao longo das décadas os italianos de que o Itavia tinha sido abatido por um míssil foi o governo italiano. Que, por razões ignotas, ficou apaixonado por esta teoria.

Esta é a parte mais perturbadora: o governo italiano fez tudo e mais alguma coisa para evitar a hipótese do míssil. Inventou uma “falha estrutural” do avião (na prática, um avião que se desfaz em pleno voo…), inventou a hipótese do terrorismo (isso é, uma bomba, como apoiado por Taylor), sempre negou que na área houvesse outros aviões, sempre recusou de forma firme e até indignada a ideia dum míssil.

Mas não pelo imperturbável National Geographic, que em 50 minutos, destrói décadas de investigações (radar, confissões, serviços secretos…), ignora os homicídios relacionados com o caso (pelo menos 12, entre os quais os dois pilotos militares italianos que tinham lançado o alarme), acha que o caça líbio despenhado-se na Calabria no mesmo dia foi só um mero acaso (é normal para os caças líbios precipitarem em Italia, em particular em concomitância com outros atentados), individua a causa (a bomba) e o culpado pelo atraso na solução (o governo italiano, com a mania do míssil).

Ainda 10 minutos de programa e teriam concluído que nunca existiu um voo da Itavia entre Bologna e Palermo.

Pergunta: quem ganha com tudo isso? Quem sai ilibado aos olhos do público após esta triste reportagem? Resposta: a verdadeira responsável, a organização militar que decidiu envolver-se num duelo no céu da Italia, aí onde transitavam os voos civis. A Nato.

Mas provavelmente, segundo o National Geographic, no Mediterrâneo nem existe algo chamado Nato. E o facto do National ter sede em Washington não deve ter nada a ver com isso.

Ipse dixit.

Ligações:
A ignóbil reportagem do National Geographic pode ser encontra neste link do Youtube, mas apenas em língua inglesa. Informação Incorrecta dedicou dois artigos aos acontecimentos:
30 anos, o fio vermelho
A Líbia, a França, a Nato: trinta e um anos atrás.