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A Suíça e os imigrantes

Diz o nobre Rafael:

Gostaria de sugerir que fizesse um artigo sobre o recente referendo na Suíça sobre emigração. Gostaria de saber a sua opinião, e a dos
comentadores habituais…

Emigração? Assunto complicado, muito complicado.

No passado mês de Fevereiro houve um referendum na Suíça. Assunto: imigração.
Os media fizeram o trabalho deles: passaram a ideia de que os suíços já não querem imigrados.
O que é falso.

A Suíça não tenciona fechar as fronteiras nem proibir a imigração. As autoridades helveticas têm agora três anos de tempo para transformar o voto popular em lei com:

Qual a razão do referendum? A explicação é simples: em 2005, num País com 8 milhões de habitantes, cerca de um terço eram ou imigrantes ou filhos de imigrantes.

O que pensar disso?

A vontade dos cidadãos

Pensamento simples: a Suíça é um País soberano, nem faz parte da União Europeia. Se este for a vontade dos cidadãos suíços (e é, de facto), que assim seja.

Já ouviram dizer que cada um é rei na sua casa? Ora bem, o princípio é este: estamos no âmbito da soberania popular, reconhecida pelas melhores constituições democráticas.

Ponto final.

Suíços egoístas? Não me parece: como afirmado, um terço dos habitantes (33%) ou são imigrantes ou filhos de imigrantes. Qual é o limite além do qual podemos deixar de considera-los “egoístas”? 75%? 100%? Ou é suposto a Suíça tornar-se um País “aberto”, onde todos podem entrar e encontrar um trabalho (mas quanto trabalho haverá na Suíça, um País que é menos da metade de Portugal como superfície, 60% da qual é constituída pelos Alpes?)?

Mas vamos tornar o discurso um pouco mais articulado? E vamos.

O que é a imigração

Eu resido em Portugal, mas não nasci aqui nem tenho a cidadania. Apesar de não ter chegado à procura de trabalho, sou imigrante. Se amanhã Portugal decidisse fechar as fronteiras e expulsar os imigrantes (mas lembramos que não é este o caso suíço), seria obrigado a sair do País.

Às vezes penso que a primeira coisa que faria seria comprar uma garrafa de champagne para festejar, mas é verdade que em qualquer caso isso implicaria uma mudança significativa na minha vida, com problemas de vários tipo. Por isso, seria simples supor a minha contrariedade perante esta iniciativa helvética.

Mas assim não é: a vertente “humanitária” da imigração, para a qual estamos convidados a olhar, está recheada de retórica cujo fim não é o bem estar dos mais desfavorecidos. Porque não é criando novos escravos com uma língua exótica que ajudamos o próximo.

Realmente tudo o que temos para oferecer aos desgraçados que vivem num País pobre é um lugar sub-pago, com poucos ou até sem direitos e um apartamento nas zonas mais problemáticas duma grande cidade?

Nem falo de quem chega do Terceiro Mundo: conheci pessoalmente engenheiros da Ucrânia que trabalhavam atrás dum balcão da Pizza Hut em troca de pouco mais de 300 Euros mensais. Licenciados, doutorados, pessoas que passaram anos a formar-se, muitas vezes com sacrifícios, obrigados ao mínimo salarial, que nem dá para viver de forma decente (e por isso fazem dois ou três trabalhos, muito mais do que as canónicas 8 horas). Esta também é a imigração.

Não é sempre assim, que fique claro: há pessoas que emigram e conseguem um lugar decente, por vezes bom até, algo que realmente pode mudar a vida deles e da relativa família. Mas quantos são?

Os mortos da imigração


Desejamos falar do Terceiro Mundo?
E falemos.

Tentamos imaginar um imigrante que se apresente na fronteira Suíça: sai do comboio, bem vestido, penteado, com a sua bagagem, e pede às autoridades helvéticas “Posso entrar para trabalhar? Sabem, é que preciso…”. E os Suíços, egoístas e racistas, respondem “Não, volte para trás e morra, para nós tanto faz”.

É assim que funciona a imigração? Certeza?

O nome Lampedusa diz algo? Diz, diz. É uma ilha italiana, no meio do Mediterrâneo, na qual ficam os que chegam dos Países mais desfavorecidos. “Chegam” quando conseguem, pois não poucos morrem durante a tentativa.

Lampedusa está preste a explodir, o centro de acolhimento está super-lotado: já várias vezes o governo pediu ajuda às autoridades europeia, pois a situação é horrível.
Resultados? Zero. Os barcos continuam a chegar, muitos não e os imigrantes afogam.
E alguém ganha com isso.
Esta também é imigração.

Onde está Durão Barroso, o Presidente da Comissão Europeia que rosna contra a livre decisão dos suíços, quando os imigrantes caem nas águas e os seus corpos nunca são encontrados? Porque também esta é imigração.

Alguns dados (todos amplamente subestimados):

Esta também é imigração.

Milhares de mortos na tentativa de alcançar uma vida melhor, enquanto nós (por assim dizer) a cada dia queimamos biliões só na Finança. E eu deveria ser favorável à imigração? Deixar que as pessoas morram só para sobreviver quando sabemos que haveria a possibilidade (prática, não teórica) de melhorar a vida deles nos Países de origem, inclusive a vida daqueles que aí ficam?

“Stop, Max, pára tudo: aqui não falamos disso, aqui falamos da decisão dos Suíços, numa óptica bem diferente, mais egoísta por assim dizer”.

Não concordo. Pensar que a maioria dos Suíços decidiu pensando no desgraçado que morre no meio do Mediterrâneo é pura hipocrisia; mas separar as duas coisas também não é honesto: os que entram na Suíça, antes de mais têm que alcançar a fronteira daquele País. Ou achamos que os imigrantes da Suíça viajam só em primeira classe?

Dificuldades

Se milhões de pessoas tentam chegar até a Europa, é porque sabem que aqui existe a possibilidade de imigrar. Por isso arriscam. Mas o que oferecemos é uma entrada pela porta traseira.

Os que também chegam por vias “normais” (com regulares transportes, sem arriscar a vida), depois deparam-se com uma fila intermináveis complicações.

E não falo porque ouvi dizer isso: sabem quantas horas perdi eu no SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) aqui em Portugal? E eu sou cidadão comunitário, tenho a vida facilitada, posso “saltar” muitas das práticas que outros têm de respeitar. E após horas no SEF, ainda estou com o nome errado nos documentos oficiais (apesar de ter reclamado e explicado as coisas), porque este é o nível de preparação.

As dificuldades de encontrar trabalho? Eu já vi-me recusado um trabalho porque estrangeiro: é ilegal, pois os cidadãos comunitários gozam dos mesmos direitos dos residentes, mas foi o que aconteceu.

Nem falo do que passei para os títulos de estudo, a carta de condução, coisas em teoria simples mas que para um imigrante tornam-se perda de tempo e custos.

Os problemas para encontrar uma casa? Neste aspecto eu tive sorte, admito, mas sei de senhorios que recusam arrendar quartos aos estrangeiros; vice-versa, sei de pessoas que exploram esta situação, sobre-lotando as casas com imigrantes à procura dum tecto (pormenor engraçado: muitas vezes os que exploram os imigrantes são também imigrados).

Depois, qual trabalho encontra o imigrante? CEO dum banco? Difícil. Na maior parte dos casos será um emprego com ordenado mínimo (que aqui em Portugal é uma espécie de esmola), muito mal pago. Mas o empregador gosta: o imigrante raramente chateia, tem medo de perder o lugar, desconhece os seus direitos.

Todas coisas que acontecem quando se fala de imigração como algo “bom e justo” sem que haja na realidade a implementação de estruturas para um acolhimento decente, para que o imigrante não se sinta apenas “um outro”.

Tudo isso é imigração também.

Instrumentos

Repito a pergunta: realmente tudo o que temos para oferecer aos
imigrantes é isso?
Sem dúvida pode funcionar para manter a consciência tranquila: “Eu sou a favor da imigração, coitadinhos, eles também têm direito de viver”. Mas acho que deveríamos ir além disso.

Começar a perguntar, por exemplo, por qual razão as pessoas emigram. Será que os nossos governos, aqui na Europa ou nos Estados Unidos, fazem tudo para favorecer o desenvolvimento das zonas mais atrasadas do planeta? Será que os governos destas mesmas zonas fazem tudo para proporcionar aos seus cidadãos as melhores possibilidades?

Se as respostas forem negativas, então não seria mal perguntar o porque de tudo isso. Será que a imigração constitui um instrumento? E quem ganha com isso? Não falo, como é óbvio, dos que lucram com o transporte ilegal dos emigrantes, falo dum nível mais elevado.

Ou será, mais simplesmente, que a imigração é a mais fácil das soluções possíveis para enfrentar os problemas no Terceiro Mundo?

Na verdade, a situação de hoje é a seguinte: o mundo ocidental pouco ou nada faz para ajudar os Países com mais dificuldades (aliás: as multinacionais exploram cada vez mais), deixa que milhares de pessoas morram na tentativa de alcançar as suas fronteiras e, quando estes conseguirem, na maior parte dos casos ficam “arrumados” com um ordenado de fome num degradado bairro nas margens das grandes cidades.

Se alguém quer não proibir a imigração mas pelo menos regulamenta-la no interior das suas fronteiras, logo é acusado de racismo, egoismo, etc.

Não há algo de esquisito em tudo isso?

Ideias

Um par de ideias, mesmo atiradas aí.

O mundo ocidental deseja realmente ajudar os mais desfavorecidos? Que tal uma taxa sobre os combustíveis importados do Terceiro Mundo? Uma taxa simbólica, 1% por cada litro.

O provento poderia ser utilizado para financiar estadias de estudantes-imigrantes nas escolas ocidentais, crianças ou rapazes (não falo aqui dos universitários), para forma-los segundo os padrões mais
elevados do mundo ocidental para que depois possam voltar para as
próprias terras com uma bagagem cultural ou profissional que possa ser
útil ao desenvolvimento local.

O que haveria de mal nisso?
Qual o futuro duma criança hoje numa escola
da Guiné, onde nem os lápis têm (e acreditem, não é uma maneira de
dizer)?

Em conjunto: significativas facilitações fiscais para todas as empresas ocidentais que decidirem abrir unidades de produção nos Países mais atrasados do Terceiro Mundo. Não a China, mas a Nigéria, a Guiné, o Zimbabwe.

Se
calhar estou a dizer apenas coisas estúpidas, como dito são ideias atiradas para o ar. Mas até quando não serão fornecidos instrumentos
de crescimento, até quando o Terceiro Mundo será visto como “terra de conquista” ou pouco mais, continuaremos a ter vagas de pessoas que desejam legitimamente uma vida melhor: e que para obtê-la têm que arriscar a vida.

Para acabar: ser contrário à imigração não faz sentido, pois toda a história do Homem está recheada de emigrações/imigrações. O contacto entre as culturas, os consequentes avanços, sempre foram obtidos não apenas com as trocas comercias mas também com a implementação de recém chegados. Sem a emigração, provavelmente todos ainda estaríamos a viver no Vale do Rift, no Quénia.

Todavia, a mesma História ensina que as movimentações de massa sempre coincidiram com choques, não apenas culturais. Não faz sentido nenhum proibir a imigração das pessoas (e a Suíça não vai proibi-la).

Regulamenta-la, pelo contrário, de forma que não provoque choques mas que seja um movimento naturalmente absorvido e enriquecedor, é um sinal de maturidade civilizacional.

Elimina-la, de forma que emigre só quem realmente faz isso como escolha e não como necessidade, por enquanto parece fora do alcance, basicamente por uma questão de egoísmo (e não só da Suíça).
Um autêntico crime, não há dúvida: porque numa condição como esta nem estaríamos aqui a falar do “problema da imigração”. Estaríamos a falar das inúmeras vantagens dos contactos entre culturas distantes.

O meu sonho é mesmo este: um mundo em que as pessoas possam ir para onde lhes-apetecer, não por necessidades mas simplesmente porque sim.

E agora: a palavra aos Leitores.

Ipse dixit.

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