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O dia seguinte

– Próximo!- disse S. Pedro olhando para a lista das entradas.
– Nome?
– Mandela.
– Prince Mandela, ex-Mitsubishi, agora directora da Câmara do Comércio da África no Sul nos Estados Unidos?
– Não, aquela é a minha filha.
– Makaziwe Mandela, ex-directora do Banco de Desenvolvimento da África do Sul, agora chefe do Industrial Development Group, área diamantes e petróleo?
– Não, aquela é a outra filha.
– Mandla Mandela, o político do parlamento da África do Sul?
– Não, aquele é o meu neto.
– Ndaba Mandela, o filantropo e homem de negócios que lidera a organização ligada às Nações Unidas Africa Rising Foundation?
– Não, aquele é o outro meu neto.
– Zenani Mandela, a embaixadora da África do Sul na Argentina?
– Não aquela é outra filha ainda.
– Winnie Madikizela Mandela, a política que disse “Com as nossas caixas de fósforos e os nossos colares [de pneus] vamos libertar este país”? Aquela condenada por roubo, fraude e rapto?
– Não, aquela foi a minha primeira esposa.
– Ocansey Mandela, o futebolista do Burkina Faso?
– Não, aquele nem sequer é parente meu…
– Mas então, você é… – S. Pedro levantou o olhar e percebeu:
– É mesmo você!
– Pois sou, Nelson Mandela, o ícone.
– Ahhh, mas esta é uma grande honra Senhor Mandela, há anos que sigo o seu trabalho contra o apartheid, muito bem feito, muito bem…olhe, está tudo pronto, o Paraíso é a primeira porta à direita, é só pôr uma sua assinatura aqui se não se importa…mas olha só, o Mandela mesmo, quem diria…olhe, olhe toda a documentação que temos acerca de si: quando nasceu, onde estudou, a prisão…
– Pois, fui um mártir.
– Eu bem sei, eu bem sei, ora essa, tudo temos. Olhe, olhe, os seus discursos, as suas frases…o que é isso? “Israel deveria retirar-se de todas as áreas que tem vindo a ocupar às custas dos árabes em 1967, e, em particular, Israel deve retirar-se completamente do Golan, sul do Líbano e Cisjordânia”. Você disse isso?
– Bah…não lembro…
– Não, é que esta coisa não é nada simpática…sabe, o “povo eleito”, há alguém com um fraquinho lá em cima…
– Mas sabe, eu fiz tantos discursos, se calhar este saiu um pouco mal, acontece…
– Pois, percebo, percebo…agora, não vamos criar problemas por uma coisas destas, não é? Já assinou? Muito bem, então arrumo o seu dossier e…espere…”Desde os seus primeiros dias, a Revolução Cubana também tem sido uma fonte de inspiração para todas as pessoas que amam a liberdade. Admiramos os sacrifícios do povo cubano na manutenção da sua independência e soberania face à campanha imperialista orquestrada para destruir as impressionantes melhorias alcançadas durante a Revolução Cubana”. Ó Mandela, mas então você é comunista!?!?!?
– Ohhhh, comunista, que exagero…sou um pouco de Esquerda, mas nem muito, olhe, eu diria mais social-democrata, isso mesmo: sou social-democrata.
– Social-democrata? Mas você aqui diz “Viva a Revolução Cubana! Longa vida ao camarada Fidel Castro!”
– Eu disse isso?
– Pois disse!
– É…é que…sabe, era convidado, uma semana em Cuba, tudo pago com o dinheiro do povo, hotel cinco estrelas, comida de borla…parecia-me simpática uma palavrinha assim…afinal sou um ícone…
– Mas qual ícone e ícone, uma coisa destas não passa, lamento, há muitos controles no arquivo central, depois quem leva na cabeça sou eu….vamos ver, para os comunistas seria a porta à esquerda, direitinho para o Inferno, mas considerando o apartheid e tudo o resto…olhe, porta central.
– O que há na porta central?
– O Purgatório.
– O Purgatório? Depois de tudo aquilo que eu fiz? Mas sabe quantos anos já passei na prisão? 27!
– Ainda melhor, está habituado: e depois não esqueça que a cada 2.000 anos mais ou menos há uma amnistia geral, nem o tempo de ambientar-se e já está no Paraíso. Afinal…ehi, o que é isso também?
– Minha nossa, o que encontrou agora?
– Church Street, Pretoria, 20 de Maio de 1983: 19 mortos e mais de 200 feridos…e foi você que mandou explodir a bomba?
– Sim, mas eu sou um revolucionário…que dizer, não comunista, sou revolucionário mas bom…um ícone revolucionário, isso.
– Mas qual revolucionário? Mas qual ícone? Matou 19 inocentes, brancos e pretos, este é terrorismo: você é um terrorista!
– Impossível, deram-me o Nobel da Paz.
– Grande coisa, também deram o mesmo ao Obama…lamento, para os terroristas não há descontos, também o Osama fartou-se de chorar mas com estas coisas não se brinca: porta da esquerda.
– Mas sou Mandela, sou um ícone!
– Quero lá saber do ícone, porta da esquerda e já.
– Mas o apartheid?
– Aquilo fica, e ainda bem, mas também a bomba e os 19 mortos ficam. Porta da esquerda.
– Mas eu conheço Kofi Annan!
– Pois, outro que vai direitinho para a porta da esquerda. Não me faça perder tempo por favor, próximo!
– Mas eu conheço Bono Vox!
– Eh? Bono, aquele dos U2?
– Sim, aquele que investe em Forbes, no Facebook, no Dropbox, na Costa Azul, em Manhattan, na Califórnia, com Bill Gates, ele mesmo, o multimilionário, somos grandes amigos.
– Mas porque não disse isso logo? Bono Vox, Bill Gates, claro…quem acha que forneceu o software do arquivo, eh?
– Bono?
– Mas não, não, foi o amigo dele, o Gates. E Bono, já era simpático antes, depois, desde que escreveu a introdução ao Livro dos Salmos, imagine, lá em cima não lêem outra coisa: Rei David como Elvis Presley, esta foi o máximo, em cima adoraram, rock e Bíblia, o topo. Pronto, vamos fazer assim: o seu dossier fica aqui, aliás, vou emenda-lo eu pessoalmente e a seguir vou envia-lo para o arquivo.
– Agradeço, você é uma boa pessoa, vou dedicar-lhe uma das minhas frases célebres: “nascemos para testemunhar a Glória de Deus dentro de nós”.
– Que maravilha, já viu? Esqueça o comunismo, não custou muito pois não?
– Gostou? Então oiça esta também: “Quem sou eu para ser brilhante, belo, talentoso, fabuloso? Na verdade, porque você não deveria ser? Você é um filho de Deus”.
– Linda, linda, linda mesmo, bravo Nelson.
– E esta, eh? “Não gosto de matar nenhum ser vivo, nem sequer essas criaturas que nos enchem de medo”.
– ……………………………….
– ah, tem razão, a bomba, esqueci-me…
– Próximo!

Ipse dixit.