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O futuro: as duas sociedades, sem nada no meio

O nome é Inequality for All (Desigualdade para Todos) e é o documentário que nesses estreia nos cinemas dos Estados Unidos.

Enquanto esperamos que a película chegue até aqui, vamos espreitar.

O filme-reportagem está baseado nos cursos universitários em que Robert Reich (professor na Universidade de Berkeley e ex-ministro do Trabalho de Bill Clinton) denuncia os perturbadores efeitos sociais da acentuação da desigualdade que ocorreu nos Estados Unidos (mas não só): o fosso entre os ricos e o resto da sociedade, cada vez mais profundo e que hoje atingiu uma dimensão nunca vista desde os anos vinte do século XX.

Mais capital, menos trabalho

E, enquanto Barack Obama promete gastar o que resta do seu mandato para a criação de empregos e para dar oxigénio a uma classe média que está a desaparecer, Sidney Blumenthal diz que os Democratas vão centrar a campanha presidencial de 2016 sobre as desigualdades. Um filme este que já conhecemos: antes cria-se o problema (ou, pelo menos, nada-faz-se para limita-lo), depois sugere-se a solução.

Mas não é só a “esquerda” que coloca os holofotes sobre a questão do crescente fosso entre ricos e pobres: acaba de chegar nas livrarias Avegare is Over (A Média está Acabada), um ensaio de Tyler Cowen, economista da George Mason University, brilhante, provocador e certamente não progressista, que desenha futuros cenários alarmantes em que a classe média, como o título sugere, irá desaparecer.

Voltemos ao filme-documentário de Robert Reich.

Até alguns tempos atrás, a visão predominante era de que as dificuldades em que quase todos os Países industrializados encontram-se estão ligadas à crise financeira (aquela começada em 2008) mas também à globalização; esta criou novas oportunidades, mas também causou uma transferência sem precedentes de riqueza do Ocidente para os Países em desenvolvimento, especialmente na Ásia .

A tecnologia não tem um papel central nesta análise: a nova economia digital é vista como um factor que, por um lado, cria problemas sociais quando os robôs substituírem os homens, mas por outro lado, aumenta a eficiência do sistema, gerando mais riqueza e, portanto, mais oportunidades de emprego.
Afinal de contas, segundo o raciocínio dos “tecno-optimistas”, em 1790 93 % dos norte-americanos viviam da agricultura; duzentos anos depois, em 1990, a participação dos agricultores caiu para 2 %, mas os Estados Unidos eram um País com uma prosperidade incrível, que havia (quase) atingido o pleno emprego.

Uma nova era de “destruição criativa”? Como quando a máquina a vapor enviou para a reforma o cavalo como meio de transporte e toda a economia que tinha crescido com ele. Nesta óptica, o “cavalo de ferro” (a locomotiva, com as suas ferrovias e fábricas construídas perto dos trilhos) alimentou uma nova e bem maior economia: empregos qualificados ou humildes, mas ainda assim numerosas e pagos, em média, muito mais do que os trabalhadores agrícolas.

Aos poucos, todavia, percebeu-se que na era do rápido desenvolvimento das tecnologias digitais, nos Países industrializados, o motor da criação de emprego tinha deixado de funcionar. Exemplos: a análise de Robert Gordon, da Universidade de Northwestern, segundo o qual as tecnologias digital e virtuais não criam tanto trabalho quanto as revoluções anteriores (o vapor, a electricidade, o motor de combustão interna…); ou Race Against the Machine, o famoso ensaio de Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, do MIT de Boston.

Obsoletos

Nos últimos meses, no entanto, surgiu uma interessante análise mais focada sobre os efeitos que a revolução digital está a ter na distribuição dos rendimentos. Noah Smith, um jovem economista da Universidade de Michigan e blogueiro, concentrou a sua atenção sobre a mudança na distribuição de rendimento entre capital e trabalho, num ensaio publicado pela revista The Atlantic:

Durante a maior parte da história moderna, dois terços da riqueza produzida foram utilizados para pagar os salários, enquanto o restante terço foi para os dividendos, alugueres e outros rendimentos de capital.

Mas desde o ano 2000, bem antes da crise produzida pelo crash de Wall Street de 2008, as coisas mudaram:

A quota de trabalho começou a diminuir progressivamente até chegar a 60 %, enquanto os rendimentos de capital têm crescido.

A causa , de acordo com Smith, encontra-se na tecnologia:

No passado, o progresso técnico sempre aumentou as capacidades do ser humano: um trabalhador com uma serra eléctrica é mais produtivo daquele que trabalha com um serrote. Mas essa era acabou. A nova revolução, a do computador e das tecnologias digitais, diz respeito às funções cognitivas, não à extensão das capacidades físicas. E uma vez que as habilidades cognitivas do homem são substituídas por uma máquina, o homem torna-se obsoleto, assim como aconteceu com o cavalos na era da máquina a vapor.

 O degrado

Interessante também a análise dum outro professor, do MIT de Boston, David Autor, cujos estudos
sugerem que o computador, capaz de substituir trabalhadores em tarefas bastante complexas mas com um alta componente de rotina, permitem que o homem possa dedicar-se ao trabalhos não-rotineiros, que são essencialmente de dois tipos:

No topo há obras abstractas, aquelas que exigem a intuição, a criatividade, a capacidade de persuadir e resolver problemas. Estes são o trabalho de gestores, cientistas, médicos, engenheiros, designers.

Por outro lado, existem trabalhos que exigem interacção manual, capacidade de adaptação e observação, capacidade de reconhecer um idioma: preparar uma refeição, dirigir um camião na cidade, limpar um quarto de hotel. Estes trabalhos não são substituídos por computadores, mas não requerem grandes habilidades profissionais e geralmente são mal pagos. Menos pagos de muitos postos de trabalho que desapareceram com a automação .

Este é um processo que está longe de esgotar-se: um recente estudo, e muito detalhado, da Universidade de Oxford, que examinou em profundidade, um a um, 72 sectores produtivos, concluiu que quase metade dos postos de trabalho ainda ocupados pelo homem (47 %, para ser preciso) mais cedo ou mais tarde serão ocupados por máquinas.

Mais optimista do que Gordon, que teme um futuro feito de desemprego em massa, Autor acho que o mercado de trabalho vai expandir-se para novas actividades, que hoje não conseguimos imaginar: a informatização da sociedade não reduzirá o número total de postos de trabalho, mas irá degradar a qualidade (e, portanto, os rendimentos) dos mesmos.

No entanto, as conclusões de Autor não são muito diferentes das de Cowen: crescente polarização dos salários, diferença abismal entre as classes sociais.

Como evitar esta armadilha? Este é o desafio ao qual os políticos devem dedicar mais atenção.
Em vez disso, como escreve no New York Times Stephen King (economista-chefe do gigante bancário HSBC):

Os governos estão limitados a rezar para que haja uma forte recuperação: preferem optar pela ilusão porque a realidade é muito escura.

As (poucas e más) ideias

Por enquanto, quem “suja as mãos” na tentativa de encontrar soluções são principalmente os economistas. E os resultados não são excitantes.

Aqueles de ideias progressistas não acreditam que um aumento da desigualdade seja sustentável no longo prazo e temem pela manutenção das democracias, ao contrário de Cowen, que prevê uma adaptação ao inevitável num mundo que não irá rebelar-se e que, de facto, será cada vez mais conservador (como conservadores são, ainda hoje, os mais pobres estados dos EUA e não os mais ricos).

Noah Smith quer estimular a proliferação das pequenas empresas fazer tornar maior número possível de trabalhadores quais empresários deles mesmos e imagina um mecanismo de compensação para a transferência da riqueza: uma carteira de acções de empresas presentes na Bolsa para ser entregue a todos os cidadãos no aniversário dos 18 anos. Uma espécie de apólice de seguro para proteger o indivíduo contra o impacto dos robôs no mercado de trabalho.

Em vez disso, Autor pensa num esforço para ampliar o leque das ocupações que exigem intuição e habilidades distintas: por exemplo, a enfermeira também é capaz de actualizar a terapia de um diabético, um electricista pode redesenhar uma inteira rede eléctrica. Tudo isso com o fim de recriar uma espaço intermediário para uma classe que ele chama de “novos artesãos”.

Outros, como o tecnólogo visionário Jaron Lanier, pensam numa redistribuição da riqueza produzida pela civilização do Big Data: grandes grupos de economia digital, que acumulam riquezas imensas graças à capacidade de analisar um grande volume de informações, devem efectuar micro-pagamentos com mecanismos automáticos em nosso favor, cada vez que utilizarem os nossos dados que colocamos na Net.

Todas as ideias (teoricamente) inteligentes, que tentam imaginar um reequilíbrio com base na medida do possível, com mecanismos de mercado, mas que dificilmente podem ser decisivas. O desafio político é este: afinal, quando há meio século era imaginado um mundo em que estaríamos a trabalhar algumas horas por semana, assumiu-se que as máquinas teriam substituído o homem mas também que os frutos da maior produtividade teriam beneficiado mais ou menos todos.

Estamos no início do século XXI e nada disso aconteceu.
A realidade é que:

  1. vive-se cada vez mais de capital e menos de trabalho
  2. o capital fica concentrado nas mãos de poucos

O problema ainda é o mesmo: incentivar uma redistribuição pelo menos parcial sem cair nos excessos dum Estado-padrão ou duma elite “de comando”, cujas queimaduras ainda são claramente visíveis na pele de alguns Países.

Por enquanto, eis o trailer do filme em idioma original (pois ainda não existe uma versão legendada):

Ipse dixit.

Fontes: Il Corriere della Sera
, Imdb, Youtube