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Piripirilândia e a terrível Besta da Inflação

Interessante uma série de comentários que apareceram após a publicação de O dinheiro, o Estado, a História – Parte I e II.

Os vários comentários permitem enfrentar um problema delicado, o da inflação. Por exemplo, a contribuição de Nemo (que agradeço pela participação e pela oportunidade) e as respostas de Anónimo56 (agradecido também, como é óbvio).

Aqui um dos comentário de Nemo:

Existe uma diferença substancial entre a criação de moeda por parte do Estado e dos bancos comerciais.

Quando um banco empresta dinheiro, cria moeda. No futuro, exigirá o retorno do montante emprestado acrescido de um juro. Porém, o banco só empresta quando tem a expetativa que o devedor será mesmo capaz de cumprir a sua obrigação. Isto obriga o devedor a mostrar que tem um projeto viável (no caso de empresas) ou rendimentos futuros condizentes com o que o empréstimo exige; isto é, obriga o devedor a mostrar que tem capacidade para gerar valor suficiente na sociedade (rendimentos do capital ou trabalho) para suportar o empréstimo.

Assim, apesar da criação colossal de moeda nestas últimas décadas, a inflação manteve-se baixa, pois a criação de moeda exigia por contrapartida uma expetativa de aumento do PIB.
Pelo contrário, quando as expetativas são infundadas, assiste-se a uma galopagem nos preços, como se verificou na mais recente bolha imobiliária.

Já no Estado esta expetativa não é necessária. Aos decisores num Estado com plena soberania monetária (sem bancos centrais independentes) nada acontece se os projetos que apresentam gerarem valor nulo ou negativo na sociedade. Em primeiro lugar, geralmente são projetos muito difíceis de avaliar. Em segundo lugar, mesmo havendo mecanismos de proteção do erário público, estes em geral são pouco eficazes devido à influência política no processo. Por último, políticas de expansão monetária desenfreada por parte do Estado são formas fáceis e populares de atenuar os verdadeiros problemas económicos de um país, exceto quando dão para o torto, algo infelizmente frequente.
Tudo somado, impressão por parte do Estado, tem uma tendência notável para gerar níveis de inflação altos e para entrar em descontrolo. 

A questão é delicada e mexe directamente com as nossas vidas.
Perguntem: porque os ordenados não aumentam?
Uma das primeiras respostas será: porque isso aumenta a inflação.

Mas é isso que se passa?

A inflação

Uma das primeiras coisas publicadas neste blog foi Inflação ou Deflação? (Março de 2010…passa o tempo, não é?), no qual era explicado de forma muito simples o mecanismo da inflação:

O dinheiro é como as maçãs. O que acontece quando no mercado chegam de repente tantas maçãs? Acontece que o valor dum saco cheio de maçãs desce. Lei da procura e da oferta.

Da mesma forma, quando o dinheiro impresso e em circulação é demais, o valor dum saco cheio de notas…baixa!

E acontece, para acabar, que as empresas têm que pedir mais dinheiro pelos mesmos bens.

Ou seja: sobem os preços.

Esta é a inflação. Uma subida geral dos preços.

A inflação é “má” por vários motivos:

  • porque o pão custa cada vez mais
  • porque o ordenado sobe em medida menor que a inflação, por isso estamos cada vez mais pobres
  • porque as poupanças perdem valor.

Agora, os preços podem subir pouco ou muito no prazo de um ano, mas também dum mês, dum dia ou até em poucas horas.

Por isso: muito dinheiro em circulação = menor valor do dinheiro.
E isso é mau.
Aumentar salários imprimindo dinheiro cria inflação.
Pagar dívida pública imprimindo dinheiro cria inflação.

Tudo parece claro e linear mas assim não é. E para percebe-lo, temos que abandonar as simplificações, porque aqui deixamos a teoria pura para falar da realidade. Que, como sabemos, simples não é.

Criar dinheiro cria inflação?
Mas a inflação já existe. Qual País tem uma taxa de inflação de 0 (zero)? Aliás, no nosso sistema, quando num País isso acontecer, todos entram em fibrilação porque é interpretado como o sinal de que algo não corre bem.
No caso da Zona NEuro, não apenas a inflação existe, mas os vários Países nem criam dinheiro: costumam toma-lo emprestado. Temos inflação sem criação de dinheiro. Notável.

Este é um ponto importante, porque num sistema como o nosso, permanentemente inflacionado, o poder de compra  fica em lento mas constante declínio. Perceber isso é simples: se houver inflação, o dinheiro perde valor. Se o dinheiro perder valor, o nosso ordenado perde valor. Com o ordenado do próximo mês será possível adquirir menos do que este mês.

Mas aqui acontece uma coisa esquisita: se o Estado emitir moeda, o poder de compra permanece invariado.
Como assim? E a inflação?
Confusos? Calma, vamos com ordem.

Hoje em dia, os bancos centrais (privados, tal como a Federal Reserve ou o Banco Central Europeu) injectam liquidez e criam inflação: isso sem que os salários sejam aumentados, porque os bancos centrais não injectam o dinheiro nos nossos ordenados.

O que fazem os Estados para criar liquidez? Resposta: vendem os Títulos de Estado, que são na sua maioria adquiridos por bancos privados. Atenção: vender Títulos significa não criar dinheiro mas obter dinheiro emprestado, em troca da promessa de devolvê-lo com juros. E são estes interesses que criam inflação, sem que haja no entanto um correspondente aumento nos salários e nas pensões, porque o dinheiro a ser devolvido permanece em circulação, mas não é contabilizado.

Um bocado confuso, não é? Ok, vamos fazer um exemplo prático.

O caso de Piripirilândia

O Estado de Piripirilândia (um País simpático, por acaso) obtém emprestados 200 Guacamoles (a moeda local), com um juro de 5%.

O Estado coloca em circulação 190 Guacamoles e não 200 (há sempre despesas que devem ser cobertas) e, para evitar o fenómeno da rarefacção monetária, vai emitir outros Títulos por uma valor de 10 Guacamoles.
Portanto, em Piripirilândia há agora em circulação 210 Guacamoles, mas o Estado contabiliza apenas 200 Guacamoles. Porquê? Porque os últimos 10 Guacamoles ficaram na posse dos bancos privados.

Nesta altura o Leitor pode dizer:
“Mas este é um sistema confuso!”
Por acaso é.
“Mas este é um sistema sem sentido!”
Sim, mas é assim que as coisas funcionam.
“Mas não gosto nada disso!”
Ó Leitor, e que culpa tenho eu? Pense nisso nas próximas eleições em vez de ralhar comigo, ora essa…

Agora, vamos ver o que aconteceu.
Em Piripirilândia aconteceu o seguinte:

  • o dinheiro em circulação aumentou (e foi criada inflação)
  • o Estado contraiu dívida (que terá de ser reembolsada, com juros)

E no meio de tudo isso, ordenados e reformas permaneceram invariados.
Invariados? Uma ova! Não permaneceram invariados, mas perderam poder de compra. Porque, como vimos, a inflação diminui o poder de compra dos nossos ordenados.

Em Piripirilândia, a taxa de inflação fica agora perto de 5%: isso significa que os preços nas lojas aumentam 5%, mas os salários ficam invariados. E perdem poder de compra.

Dúvida: mas isso acontece apenas em Piripirilândia?
Infelizmente não. Isso acontece normalmente, aqui, no nosso sistema: a venda de Títulos de Estado aumenta a inflação, mas não há um aumento correspondente nos salários e nas pensões, porque o Estado não reconhece o interesse (o tal 5% do exemplo) que deve ao Banco. Portanto, mais dinheiro circula, os preços sobem, salários e pensões não.

E vamos ver um caso ligeiramente diferente: e se fosse o Estado a emitir moeda?
Aconteceria uma coisa esquisita: o poder de compra permaneceria inalterado.

Como assim? 
Ok, voltamos ao simpático País de Piripirilândia.

O Primeiro Ministro, farto deste mecanismo perverso da inflação que deixa os cidadãos mais pobres (mas enriquece os bancos), decide imprimir dinheiro.
200 Guacamoles imprimidos directamente pelo Estado.
Festa grande em Piripirilândia!

Até a manhã seguinte, quando os preços nas lojas começam a aumentar. Normal, a inflação funciona assim: faz aumentar os preços.
Então a CTGTPA (a Confederação Total e Geral dos Trabalhadores de Piripirilândia e Arredores) começa uma série de protestos veementes, pede a demissão do Ministro das Finanças, do Primeiro Ministro, do Governo, eleições antecipadas e saída da Nato. 

Mas o Primeiro Ministro não se demite e decide aumentar os salários e as pensões. O que ontem custava 1 agora custa 2. Mas ontem o salário dos cidadãos era 10, hoje é 20.
Moral: nada mudou, o poder de compra ficou invariado.

Fantasia? Mera teoria?
Nada disso: é isso que sempre aconteceu.

O baubau (Enter Sandman) e os bancos que ganham

Última nota acerca do comentário de Nemo (mais uma vez: obrigado!):

Já no Estado esta expetativa não é necessária. Aos decisores num Estado com plena soberania monetária (sem bancos centrais independentes) nada acontece se os projetos que apresentam gerarem valor nulo ou negativo na sociedade. Em primeiro lugar, geralmente são projetos muito difíceis de avaliar. Em segundo lugar, mesmo havendo mecanismos de proteção do erário público, estes em geral são pouco eficazes devido à influência política no processo.

Discordo fortemente desta ideia.
Esta é uma ideia que pode ser válida em Países de brandos costumes, mas não pode ser assumida como paradigma geral. E, sobretudo, não pode constituir um objectivo.
O nosso objectivo não pode ser “melhor ficar assim porque somos uns desgraçados”, deve ser “até agora funcionou assim, tentamos melhorar”. Caso contrário, caro Nemo, melhor abolir as eleições e a democracia toda. Perder tempo para quê? Melhor ir para praia e preparar um churrasco com cervejola enquanto observamos o pôr do sol.

Foi com a criação de moeda e com as grandes obras públicas que Hitler conseguiu empurrar a Alemanha para fora do pântano de Weimar, atingindo o desemprego zero.
Foi no meio duma inflação em constante aumento (ou, em qualquer caso, com valores sempre de dois dígitos) que a Italia viveu o boom da década dos anos ’80.

Eu vivi aquela época (em Italia entendo, não a de Hitler) apesar de ser um moço na altura, e acredite Nemo: vivia-se bem, mas bem mesmo. Apesar de todas as teorias catastrofistas acerca da inflação.

Foi aí que aprendi a não ter medo do baubau da inflação criada pela emissão de moeda estatal. Tomara nesta altura ter o mesmo problema: desemprego em queda, exportações em alta, um País que produz, carteiras cheias. E eu deveria ter medo da inflação porque o Estado cria dinheiro?

Factos, Nemo, não teorias.

Muito mais medo provoca em mim um sistema no qual os bancos acumulam lucro gerando inflação, fazendo com que os preços subam enquanto o poder de compra das pessoas desce.
Muito mais medo provoca um sistema no qual os bancos ganham também no cenário oposto, no caso duma recessão económica, tendo a vantagem de ficar na posse de bens tangíveis (empresas, casas, terrenos) utilizados como garantias para os empréstimos não devolvidos.
Muito mais medo provoca em mim um sistema no qual os bancos privados ganham sempre.

Por isso: é bom ter medo da inflação, o baubau que estraga as noites dos economistas. É bom que o Estado não crie dinheiro, porque assim ficamos sem inflação (ou não?). É bom que sejam os bancos privados a gerir tudo, eles sabem o que fazer.
E sabem, disso não tenham dúvidas.

Ipse dixit.