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O dinheiro, o Estado, a História – Parte I

O Leitor está de férias, deitado ao sol com o tablet na mão? Eis um artigo aborrecido, justo para estragar-lhe o dia. (No Brasil é Inverno, por isso o dia já está estragado).

Falemos de ouro, de moedas e de Estados (eu bem disse que era aborrecido…).

Já vimos como muitas pessoas acham que o dinheiro seja um valor absoluto, mas assim não é. Por exemplo: qual o valor duma nota de 10 Euros (ou Dólares, tanto faz)? Mais ou menos 30 cêntimos: o custo do papel, da tinta e da impressão.

A nota em questão tem um valor relativo: é a sociedade que confere valor ao pedaço de papel, somos nós que aceitamos aquela nota como se tivesse o valor de 10 Euros. A nota em si (tinta, impressão, papel…) nem daria para pagar um café.

Já vimos também que nem sempre foi assim. Antigamente, o dinheiro era produzido com metais preciosos, o que conferia um valor “real” (nota: na verdade as coisas não eram tão simples nem na antiguidade, pois desde sempre os governantes tentaram alterar a efectiva percentagem de metais preciosos nas moedas com metais de aspecto parecido mas menos nobre. Mas isso agora não interesse, justo?): ao ter na mão uma moeda de ouro do valor de 10 Euros (que não existe), eu teria na mão não uma representação dos 10 Euros, mas 10 Euros em ouro efectivo.

Tudo claro até aqui? Sim, tudo claro.
E aqui o discurso se torna interessante.

O ouro e as crises

Por exemplo: a Inglaterra, após as guerras napoleónicas, voltou a utilizar as velhas moedas de ouro e prata. Como resultado, no período entre 1820-1840 sofreu uma série de graves depressões económicas, até que na Irlanda (na altura inglesa) havia fome e dois terços da população emigrou.

Pormenor curioso: tudo isso aconteceu enquanto o Reino Unido estava a inventar o motor de combustão interna, o motor a vapor para os processos industriais, no meio duma revolução científica e tecnológica que, em teoria, deveria ter favorecido a economia e o bem estar das famílias.

Como explicar isso?
Voltemos atrás.

Para combater Napoleão, o Reino Unido contraiu grandes dívidas com os bancos privados: e, uma vez acabada a guerra, os banqueiros queriam ser reembolsados em ouro e impuseram, de facto, as moedas produzidas com o metal amarelo. Isso teria feito também aumentar a valor do ouro e aumentado os lucros.

Problema: não há muito ouro. Aliás, o ouro é pouco (e nem a prata abunda). E se o ouro for pouco, também as moedas feitas de ouro são escassas.
Menos moedas = menos compras = economia em crise. Muito simples.

Felizmente, por volta do 1840, novas minas de prata foram descobertas, foram produzidas mais quantidades de dinheiro e a economia recuperou.
Mais dinheiro = mais compras = economia em recuperação. Também isso é simples.

Uma coisa semelhante aconteceu novamente entre 1876 e 1893, outra altura em que a moeda foi convertida em ouro e o metal era insuficiente. Na América usaram a prata, o que gerou mais dinheiro, claro; mas aí surgiu um grupo sound money (“moeda forte”), financiado por grandes bancos, com o fim de eliminar a prata e seguir o rumo da Inglaterra. Isso restringiu a quantidade de moeda em circulação até que William Jennings Bryan, do Partido Democrático, fez um dos discursos mais famosos da história moderna:

Vocês não crucificarão a humanidade numa cruz de ouro, vocês não vão colocar esta cruz de espinhos na cabeça de quem trabalha.

Pelos vistos, Bryan não tinha o dom de prever o futuro, mas isso serviu para lançar o alarme. Ao mesmo tempo, pouco depois de 1890, foram descobertas novas minas de ouro e a falta de dinheiro desapareceu.

No período 1920-1926, Winston Churchill decidiu voltar ao antigo sistema de ouro (e duma chamada “paridade alta”, com dinheiro dependente do metal), o que criou uma nova recessão, tanto que o economista Keynes definiu o regresso de “relíquia bárbara”.

Lentamente, a maioria dos Países abandonou este “sistema áureo” e aqueles que ficaram, como a França, chegaram à Segunda Guerra Mundial já esgotados.

O ouro, os bancos e as crises

É sempre a mesma história ao longo dos séculos, e ainda hoje assim é, tal como ontem: os bancos, os mega-fundos, as dinastias financeiras, querem ser pagos em moeda forte, que valha mais e, portanto, criam uma propaganda na qual estamos constantemente ameaçados pela inflação, mesmo com a economia em colapso diante dos nossos olhos. Evitam que a moeda ganhe valor e criam a depressão.

Na prática, comportam-se como se o Euro também fosse moeda de ouro, em quantidades limitadas, sempre à espera que seja encontrada uma mina de prata no Peru para ter mais dinheiro.

Veja-se o caso da Zona (N)Euro: o Banco Central Europeu e as Mentes Pensantes de Bruxelas, perante a falência de inteiras Nações (Grécia, Irlanda, Portugal…) fizeram o quê? Imprimiram mais dinheiro? Nem por isso: chamaram o Fundo Monetário Internacional.

Mas pelo menos antigamente era sempre possível encontrar ouro na Califórnia ou no Peru, um pouco de sorte e a economia voltava a funcionar.

Tudo isso não é sério e a razão é evidente: o Estado, por sua natureza, sempre criou dinheiro (a não ser num sistema com 100% de moeda convertível em ouro, mas este é outro discurso): em vez disso, UE e BCE actuam como se ainda estivéssemos em volta das moedas metálicas, como no século XIII, e nada é possível fazer a não ser retirar o dinheiro dos bolsos dos cidadãos (austeridade).

Claro: depois há um mega-empréstimo aos bancos com taxa de juros de 1%, mas isso é para os bancos, não para os comuns mortais.

Resultado óbvio: não há dinheiro suficiente, as economias colapsam, há pessoas que chegam a  suicidar-se. O Estado pede dinheiro, tem o monopólio (na Europa é o BCE) e recusa criar mais.

Um Estado impossível  

Mais uma vez (pois o assunto já foi tratado várias vezes), tudo gira em torno da superstição segundo a qual o Estado (ou o BCE na Europa) é o único que produz dinheiro e se ficar sem notas tem como única solução busca-las nos ordenados, nas reformas, nas poupanças dos cidadãos.

É falso? Sim, é redondamente falso: o Estado é o único que não tem problemas financeiros, e isso por definição. E percebe-lo é extremamente simples. Aliás, seria extremamente simples se nas escolas ensinassem também como funciona o nosso mundo. Mas assim não é, e continuamos a viver num mar de ignorância, obrigados a acreditar no vendedor de banha de cobra de turno. (existe a expressão “banha de cobra” no Brasil?)

Voltemos ao assunto principal. O Estado realmente precisa do nosso dinheiro, de poupar nas despesas segundo o lema: “tanto entra nos cofres, tanto sai”?

A resposta será encontrada na segunda parte deste artigo, publicada amanhã.

Mas, por enquanto, é possível reflectir acerca disso: o conceito de Estado existe desde o tempo dos egípcios e dos sumérios, mas o imposto sobre os rendimentos quase nunca existiu até a I Guerra Mundial, em nenhum País do mundo. Claro, houve excepções, mas não passavam disso: excepções. Então, como foi possível para o Estado sobreviver ao longo de milhares de anos sem taxar os rendimentos (ordenados, reformas…) dos cidadãos?

Ipse dixit.