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O Brasil e a escravidão

Abro a versão online do diário Público e encontro esta notícia:
Libertados cerca de 3000 escravos no Brasil em 2012

No dia em que a lei de abolição da escravatura no Brasil celebra 125 anos, o Ministério do Trabalho e Emprego daquele país revelou que, durante o ano passado, 2849 trabalhadores foram resgatados de situações análogas às dos escravos no século XIX.

De acordo com o comunicado do ministério, foram levadas a cabo 255 acções de fiscalização que culminaram nestes resgates, que representam um aumento de 14% face a 2011. Para aquela entidade, “o aumento de número de resgatados deu-se porque as acções fiscais foram realizadas em regiões até então não inspeccionadas”.

De acordo com o El País, os resgatados não só trabalhavam em grande latifúndios agrícolas como em siderurgias e estaleiros de construção civil.

É, aliás, a indústria siderúrgica a principal fonte de escravos retirados a essa condição: 150 só no estado do Pará.

“O número de resgatados está crescendo por causa de dois factores: por um lado aumentou o interesse dos estrangeiros pelo Brasil, que muitas vezes entram de maneira irregular e se envolvem em condições de trabalho degradantes. Por outro, intensificámos as fiscalizações. Logo, a tendência é encontrarmos cada vez mais estrangeiros de nacionalidades variadas vítimas desse crime”, disse à BBC Brasil Renato Bignami, coordenador do programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo.

Ainda de acordo com a BBC Brasil, Luiz Machado, da Organização Mundial do Trabalho, considera que este número de escravos retirados às condições abusivas de trabalho “é só a ponta de um icebergue”.

“A situação no país de origem é tão má, que ele [o trabalhador escravo] aceita a exploração como forma de alimentar o sonho de um dia se tornar o dono da oficina e ter uma vida melhor”, diz, referindo ainda que a maioria destes escravos são estrangeiros que chegam ao Brasil já endividados. Segundo Luiz Machado, os escravos no Brasil virão sobretudo da Bolívia, do Peru, do Paraguai e do Haiti.

A escravatura no Brasil foi abolida a 13 de Maio de 1888, quando a então regente Isabel de Bragança assinou a chamada Lei Áurea.

É uma notícia arrepiante.
Já o facto de ainda existir um programa de Erradicação do Trabalho Escravo é espantoso. Mas a surpresa aumenta quando vou espreitar os diários brasileiros de hoje.

Na primeira página da Folha de S. Paulo, por exemplo, não há nada acerca do assunto. Há Angelina Jolie que retira os seios (uma pena, admito), o julgamento anulado do caso Dorothy Stang (e quem é esta?), enquanto o editorial é dedicado aos casamentos gays.
Mesma coisa no Globo, onde podemos encontrar ainda Dilma e Lula que atacam a oposição (?) e um artigo acerca dos hotéis de luxo em Buenos Aires (que eu pensava ficasse na Argentina).
No Estadão outra vez o casamento gay. Que será importante, tudo bem, mas a ideia é que a escravidão no ano 2013 seja um pouco mais importante…
Nem nos diários do Pará (o Estado citado no artigo do Público) a situação melhora: no Liberal nada acerca dos casamentos gays, o destaque é para o preço das bananas, que aumenta.

Moral: o facto de ainda existirem escravos não parece uma coisa tão importante, um dia depois a notícia já desapareceu.

Vou ver o artigo original, no diário espanhol El País. Entre os comentários, um em particular, de tal Jurandir:

Eu me importo que o Brasil é mais rico do que Bangladesh, e do que a Espanha. Não existe escravidão no Brasil. São bandidos como em qualquer lugar do mundo que se aproveitam dos mais fracos.
No Brasil não existe escravos. Existem bandidos que se aproveitam da ingenuidade de algumas pessoas em locais inóspitos, na Amazônia. O Brasil é a 7ª economia do mundo, e a Espanha? Saludos

Isso significa que no Brasil não há escravidão? A notícia de El País (e do Ministério do Trabalho e Emprego) é falsa? O facto do Brasil ter uma economia melhor do que o Bangladesh justifica tudo? Qual a real situação acerca do trabalho escravo?

A palavra aos Leitores brasileiros (que agradeço desde já).

Update:

O blogueiro inteligente ficaria calado, observando calmamente o desenrolar-se da discussão, evitando de participar directamente com o risco de ser alvo de insultos. Isto feito pelo blogueiro inteligente. Eu, pelo contrário, parto dum comentário para introduzir algumas observações.
Diz Azevedo Dias (que agradeço muito pela participação!):
E pensar que quem começou com essa história de escravidão no Brasil
foram vocês, os portugueses, e agora ficou a bomba social para estourar
nas nossas mãos.
Sem dúvida quem começou a história da escravidão no Brasil fomos “nossês” portugueses, não há como contornar aquele que é um facto. Todavia…
Todavia o Brasil é independente desde o ano 1822: tornou-se autónomo mais ou menos na mesma altura dos restantes Países da América do Sul. Isso significa que os Portugueses não governam há 191 anos. Agora, com toda a boa vontade, parece-me um pouco forçado culpar exclusivamente Lisboa, não acham?
Interessante realçar também como a escravidão foi abolida em 1888: apenas 20 e poucos anos depois dos Estados Unidos. Há Países que aboliram a escravidão só a seguir e que hoje não têm problemas neste sentido: é o caso do Nepal (1921), do Irão (1928), da Mauritânia (1981). Até a Italia aboliu a escravidão nas colónias só em 1935.
Todavia, é no Brasil que hoje há um fenómeno de escravidão que chama a atenção da comunidade internacional. Culpa de Portugal?
Esta situação faz-me lembrar o que se passa na Italia do Sul. As regiões meridionais queixam-se dum estado de atraso em relação ao Norte em muitos sectores. O que é verdade, não pode ser negado. A razão apontada no Sul é histórica: foram “nossês” do Norte que invadiram o Sul e inviabilizaram o desenvolvimento.
O facto é que ninguém hoje leva à serio estas afirmações. Porquê? Porque a “invasão” deu-se em meados de 1800 e todos sabemos que o Sul continuou (e ainda continua) a votar e escolher governantes locais e não só que exploram a situação de atraso do Sul para seu próprio interesse. Apontar aos erros históricos fica assim como pálida desculpa para não admitir a própria actual responsabilidade.
Não sei se esta é também a situação do Brasil, sinceramente não tenho um conhecimento suficiente para exprimir-me neste sentido. O blogueiro (que sou eu!) publicou o artigo dum diário não para encontrar culpados (a propósito, imaginemos que Portugal seja reconhecido como causa única da actual situação de escravidão no Brasil. Então? Problema resolvido?), quanto para falar dum fenómeno que parece existir e que deveria ser combatido. É o mesmo que acontece com muitos outros assuntos aqui neste blog.
Depois, claro, cada um pode sempre avançar com queixas de vários tipo. Eu, por exemplo, posso queixar-me dos bárbaros que acabaram com o Império Romano. Ou dos Turcos que assaltavam a minha cidade durante a Idade Média. Mais: posso dizer que se hoje Genova não é como Londres, a culpa é toda dos Turcos que fizeram estragos.
Isso melhora a minha condição?

Ipse dixit.

Fontes: Público, El País, Ministério do Trabalho e Emprego