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A irresistível necessidade de vitimizar-se

E como é antiga tradição em todas as Quintas-feiras a partir de hoje, eis que falamos de História.
Fiquem descansados: nada de Breve História de Economia, hoje falamos de algo mais leve, até divertido, com incêndios, fogo e mortos.

Partimos do Papa Francisco, este santo homem que reza a humildade ao ponto de recusar os sapatinhos vermelhos para ficar com os sapatinhos dele, comprados em saldo numa loja chinesa (acho eu).
O simpático Ciccio (diminutivo de Francisco em italiano) foi visitar as grutas de S.Pedro, para rezar na tumba onde, segundo a tradição, ficou guardado o corpo do Apóstolo.
Até aqui tudo bem.

O problema é que na ocasião, por toda a net, reapareceu a história de Nero “primeiro perseguidor dos Cristãos” e do incêndio de Roma. Tudo isso é clamorosamente falso. Não que isso ajude na resolução dos nossos problemas, nomeadamente daqueles económicos: mas uma religião, que sobretudo em determinados Países ainda tem uma importância assinalável, que explora as mentiras é coisa bastante triste. Com ou sem Papa Ciccio.

Em primeiro lugar: Nero nunca perseguiu os Cristãos. Não é que “perseguiu pouco”: não perseguiu mesmo. Pela simples razão que Roma sempre foi extremamente tolerante perante as outras religiões. O lema era: não perturbar e podes ficar com o teu Deus. Ponto. Nero continuou na mesma estrada e se matou os Cristãos não foi por razões religiosas, como será possível ver.

Tudo nasce do enorme incêndio que deflagrou em Roma na noite entre o dia 18 e 19 de Julho do ano 64 d.C. e aqui já podemos observar um facto: Nero nem estava em Roma, mas em Anzio, 60 quilómetros da capital.

Uma vez avisado do incêndio, Nero voltou logo para Roma e aí organizou as medidas de emergência para conter o fogo e socorrer os feridos. Abriu os monumentos e os jardins dele para acolher os que tinham perdido a casa, fez chegar comida das redondezas e baixou o preço do trigo. Até o historiador Tácito, que odiava Nero, foi obrigado a reconhecer a obra de socorro do imperador.

A lenda afirma que durante o incêndio, Nero observava a catástrofe da residência dele enquanto cantava da queda de Tróia. O que é impossível pela simples razão que quando Nero voltou para a capital, a residência imperial, a Domus Transitoria no topo da colina Palatino, já estava prestes a ser engolida pelas chamas e não foi possível salva-la.

Problema: quem deu fogo à cidade? Os historiadores cristãos acusam Nero, pela vontade dele de reconstruir o centro da cidade segundo novos planos. Nero reconstruiu sim a cidade, mas isso é normal após uma desgraça que arrasa totalmente três dos 14 bairros e causa graves prejuízos em outros sete.
Quanto aos anteriores “planos” de Nero, simplesmente não existe o mais pequeno rasto deles. A única coisa que sabemos é que o imperador queria construir uma nova residência, a Domus Aurea. E de facto construiu a nova residência, no mesmo lugar onde ainda está: na colina do Palatino, onde ficava a velha também.

A verdade é que o incêndio foi casual: não foi o primeiro em Roma e nem foi o último. As acusações contra Nero foram literalmente inventadas pelos historiadores cristãos, nomeadamente Suetónio, e por Dião Cássio, Eutrópio e Plínio o Velho.
Como fontes não são grande coisa: Gaius Suetonius Tranquillus (Suetónio) era cristão, Lucius Claudius Cassius Dio (Dião Cássio) escreveu mais de um século após Nero, Flavius Eutropius (Eutrópio) retomou as ideias dos primeiros dois enquanto Gaius Plinius Secundus (Plínio o Velho) afirmou ad Neronis principis incendia, o que pode ser traduzido como “desde o início do incêndio de Nero”. O que é um pouco vago.

Como firmado, o incêndio foi casual. Mas então, por qual razão Nero decidiu perseguir os Cristãos?
O facto é que os Cristãos decidiram festejar a catástrofe, o que foi pouco simpático. E nem podemos excluir que alguns deles tomassem parte activa na propagação do fogo, sendo a destruição de Roma uma das grandes aspirações deles: o mesmo apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos, mostra-se preocupado por causa do extremismo de alguns companheiros de fé.

Por isto, Tigellino (Tigelino em português), chefe dos pretorianos, concentra as próprias atenções contra os únicos que parecem estar contentes no meio duma cidade destruída. Alguns dos Cristãos até confessavam ainda antes de serem presos: não admira, pois havia já na altura a “glória do martírio” (como nos modernos terroristas islâmicos), e provavelmente nem estavam envolvidos nos acontecimentos. Mas desta forma garantiam o desejado suplício.

No total foram presos 300 Cristãos, sendo que uma centena deles foi libertada. No caso dos restantes 200, os processos duraram vários meses, algo insólito no âmbito da rápida justiça romana. E as penas foram terríveis: queimados, crucificados, entregues como comida para os cães. Mas tudo segundo os hábitos da época.

E, sobretudo, nada que estivesse relacionado com a religião.

O facto é que boa parte das autoridades romanas acreditavam que grupos de Cristãos extremistas tivessem sido responsáveis por aquele acto de terrorismo (como seria definido hoje). Além dos 200 condenados, os restantes membros da comunidade religiosa (3.000 no total) nem foram tocados e o mesmo Paulo, líder dos Cristãos em Roma, pôde continuar a obra dele. O mesmo aconteceu com os Cristãos das províncias.

A coisa engraçada é que Nero nem gostava das penas capitais. Desprezava espectáculos violentos como os combates de gladiadores e quando assistia a um combate concedia sempre a graça ao derrotado, salvando assim a vida do desgraçado.
Não era um santo, com certeza, mas nem foi aquele doido varrido e sanguinário que a iconografia cristã quis transmitir. Durante o reinado dele, não foi aprovada nenhuma norma restritiva face às religiões.

As perseguições começaram mais tarde, com Titus Flavius Domitianus (Domiciano). Mas na altura,  Lucius Domitius Ahenobarbus Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus, em arte Nero, já tinha morrido.

Ipse dixit.

Fontes: Massimo Fini, Wikipedia: 1, 2, 3, 4 (versão italiana)