A corda, o pescoço, o teu electroencefalograma

Já disse e repito: fico contente pelo facto de viver nesta altura.

Pode parecer uma afirmação esquisita, e talvez assim seja para muitos. Mas não no meu caso. Esta é uma das raras ocasiões nas quais podemos ver trabalhar forças que costumam ficar nos bastidores. As guerras, as revoluções, são apenas a consequência duma cuidadosa preparação, são o capítulo final. E, diga-se, muito menos interessante.

Mais empolgante é poder ver o que acontece “antes”. 
E hoje, quem viver na Europa, pode observar o esforço (por enquanto pacífico) para transformar um conjunto de Países numa ditadura.

“Ditadura”? Wow, que termo sério e “espectacular”…mas pertinente. Porque não tenham dúvidas: este é o objectivo, boa parte do qual já está alcançado, na máxima calma e descontracção.

O caso de Chipre é paradigmático.
O bloco da liquidez implementado pelo Banco Central Europeu na ilha (“Ou aceitam as condições ou não recebem mais um tostão”) é um acto de gravidade extraordinária, as consequências não podem ser ignoradas.

A decisão de Mario Draghi (Goldman Sachs) concentra-se em dois aspectos: em primeiro lugar, o BCE não fornece mais dinheiro ao Banco Central de Chipre, a seguir operações entre os bancos de Chipre e do resto do sistema bancário da Zona NEuro ficam paradas. A última medida é, de longe, a mais grave.

Por um lado, é uma sentença de morte para os bancos cipriotas (assim como para as empresas sediadas em Chipre, sejam elas de capitais locais ou não), simplesmente porque não podem mais fazer negócios com o resto do planeta: não têm dinheiro, não podem comprar, não podem pagar.

Por outro lado, representa um bloqueio económico que o direito internacional lê (e bem) como um “acto de guerra”. Existem os extremos para que o BCE e o governador dele, Mario Draghi, possam ser alvos duma acção perante um tribunal internacional.

Fiquem descansados, nada disso irá acontecer. Mas as considerações ajudam na percepção da realidade.

Para justificar o fecho do relacionamento entre bancos cipriotas e Zona NEuro, a razão utilizada é a “dúvida” acerca da solvência dos bancos de Chipre, o facto destas instituições estarem hiper-inflaccionadas perante a realidade económica da ilha.

Pergunta: vamos também travar o sistema bancário do Luxemburgo? Vamos interromper os relacionamentos com a Suíça? Vamos bloquear todas as transacções com os offshore? Não? E porquê? Chipre não é o único País com um sistema hiper-inflaccionado. Chipre sim, os outros não? Qual a lógica?

Mais: já no Junho do ano passado houve na ilha um haircut que tinha enfraquecido os bancos. E na altura o BCE não tinha dito uma palavra. Nem um pio. Porquê há 9 meses o BCE não tomou em consideração a questão da recapitalização dos bancos como uma questão de urgência?
Decidiu fazê-lo só após o Parlamento cipriota ter rejeitado o texto imposto pelo Eurogrupo e a Troika. Então as coisas tornam-se bem mais clara: Chipre tinha que dobrar-se perante a vontade europeia ou sofrer as consequências. Não é apenas uma mensagem, é um ultimato.

Mas atenção: Draghi fez questão de esclarecer que a decisão era dele e só dele. Não houve unanimidade, não houve “amplo consentimento”: o governador do Banco Central de Chipre não tinha aprovado, a União Europeia nem tinha aberto boca. Foi uma escolha unicamente do BCE e do governador dele. Draghi, um funcionário designado, nem eleito, que ultrapassa alegremente as instituições continentais, que atropela o direito internacional, que aperta a corda em volta do pescoço dum inteiro País sem que ninguém mexa um dedo ou tenha uma simples dúvida.

Fica assim explícito quando defendido aqui ao longo dos vários anos, fica claro quem realmente manda no seio da União Europeia, quais as forças que determinam o curso dos eventos. Barroso, a simpática Merkel e os amigos deles são meros figurantes que actuam por conta de outros interesses.

Fica também evidente qual a importância dos órgãos de soberania locais. O Parlamento de Chipre? Os representantes do povo? Qual a importância e a autonomia deles?

Acham que não pode existir uma tirania sem fardas nas ruas? Acham que votar é sinónimo de Democracia?
Façam um favor a vocês: acordem.

Conseguimos ver ditaduras em qualquer lugar: no Irão, na Venezuela, mas nós não, nós não somos estúpidos, nós somos superiores, temos 2.000 anos de cultura nas costas e depois somos umas democracias, como pode haver uma ditadura num regime democrático? Assim, temos um elefante na sala mas ninguém dá por isso.

No imaginário colectivo o ditador tem um rosto desagradável, impõe as suas ideias com a força dos exércitos, fecha os dissidentes numa jaula e tortura. Meus senhores, os tempos mudaram: já não há qualquer necessidade, estes aspectos folcloristas podem ficar no baú.
O novo ditador não tem um nome, vive escondido atrás da massa escura e amorfa de burocratas.
O exército? Não tem farda, mas papel e microfone: imprensa, média e políticos complacentes ou corrupto.
A principal arma? A economia de choque, eventos que aterrorizam os cidadãos e torná-los vítimas dos seus próprios medos.
Os dissidentes? Não há problema, é só deixa-los gritar no recinto da Internet, dando-lhe o quer fazer.
O objectivo da ditadura? Simples: o empobrecimento generalizado, o controle. Sem um tiro de espingarda, não é preciso: entregamos tudo, nem um murmúrio.

Alguns vão argumentar que não é verdade, que muitos estão a perceber o que se passa.
Sério? Quem? Onde? Na internet, pois. Mas na vida real? Não há luta, nem poderia haver: não estamos prontos. Continuamos a entregar tudo, dinheiro e liberdades, convencidos de que “pior não vai ser possível”.
Tenho uma notícia má: vai.

A Europa é uma ditadura, é por isso que a única solução seria ir-se embora quanto mais rápido possível. Estamos nas mãos de loucos e a única saída seria despedir-se. Para acabar nas mãos das novas ditaduras que andam pelo mundo fora? Porque a Europa não é um caso isolado.
A resposta é não: há outras estradas.

Mas nem vale a pena falar disso: ninguém irá para lado nenhum, não agora. É demasiado cedo.
Por isso não fiquem preocupados, liguem a televisão, descontraiam: vejam uma novela, um concurso, matem os poucos neurónios rebeldes. A entrega será mais fácil e indolor. E a culpa nunca será vossa, mas sempre dos “outros”.

Ou, em alternativa, acordem e gozem o raro espectáculo oferecido pelos tempos que mudam.

Ipse dixit.

3 Replies to “A corda, o pescoço, o teu electroencefalograma”

  1. "Ditadura"? Wow, que termo sério e "espectacular"…mas pertinente. Porque não tenham dúvidas: este é o objectivo, boa parte do qual já está alcançado, na máxima calma e descontracção.

    E o processo continua em curso, e segundo a minha sensibilidade, em fase de aceleração.

    Hoje já quase tudo começa a parecer normal.
    Seja a maior das anormalidades como o que se passou no Chipre e que se prevê que no curto prazo medidas semelhantes possam ser aplicads noutros países, que as reacçoes são cada vez menos. Silva Peneda (nem estava à espera que fosse este) e poucos mais.

    Pergunto: É assim tão dificil vislumbrar aquilo que está descrito neste post?

    É asssim tão difcil estranhar todos os atentados feitos diáriamente contra os direitos e liberdades das pessoas?

    É assim tão dificl perceber que os governos são meros fantoches dos mercados, atropelando e reduzindo a valores residuais os direitos dos cidadãos?

    Merecerão as pessoas este destino? Acho que sim. Merecem tudo porque no limite a responsabilidade é sua.
    Este é o modelo que ajudaram a construir.
    Este é o sistema que alimentam constatemente, com tudo aquilo que o sistema lhes pede.
    Este é o modelo adequado para quem se demitiu de dizer basta.

    Mas este modelo faz vitimas, não aqueles que o apoiam, pois esses antes de vitimas, são culpados. Antes aqueles que o denunciam e combatem.

    Uma sociedade é o espelho da qualidade dos seus cidadãos. O que vejo em termos de qualidade dos cidadãos dá-mos uma prespectiva muito pouco animadora.

    A história tende a repetir-se mas os tiranos tambem aprendem com os erros do passado.

    abraço
    Krowler

  2. olá Max: mais um post profético! Os bons observadores sempre percebem o movimento dos acontecimentos, quando aparentemente nada se move, e tudo se passa como se fosse muito natural.
    Concordo que as tecnologias de guerra estão em constante mutação, e que a política econômica ´seja a guerra por outros meios. Um exemplinho complementar poderia ser a Eritreia, coitada, que sempre quis passar a largo do domínio do império, e que agora é vítima de uma arma suja chamada direitos humanos. Deram para acusar aquele governo de traficar gente, enquanto via consulado americano, o tráfico de jovens eritreus que se mostram decididos a combater o governo africano, corre solto, com a aparência de bolsas de estudo no exterior. A velha tática de acusar os outros de fazer o que se está fazendo, usando uma nova tecnologia militar: os direitos humanos.Os motivos? Os de sempre! E a Eritréia é mais um daqueles lugares que não existem. Abraços

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