O horizonte dos bancos

Bancos…e está tudo dito.

“A Europa redescobre o banco do Estado”, este o título do diário económico italiano Il Sole 24 Ore do passado 2 de Fevereiro acerca da nacionalização do grupo holandês Sns Reaal. Custo da operação: 3.7 biliões de Euros. Muito? Não, pouco considerada as vantagens. 

A actual crise pode ser considerada como a segunda fase da crise começada em 2007. Subprime, alguém se lembra? Parece uma vida, mas tudo começou há 6 anos. E ainda aqui estamos, com a nossa crise da qual boa parte do planeta parece não conseguir sair. A crise de 2007 decretou o fim do modelo de desenvolvimento centrado no enorme crescimento da finança: era previsível (e de facto alguém tinha alertado), pois tratava-se duma “bolha” que, como é lógico, cedo ou tarde tinha que rebentar.

A turbo-finança ainda não acabou, mas está com problemas: os assets tóxicos ainda circulam e há mais do que isso. Mas o que interessa aqui é observar o mundo dos bancos privados e, eventualmente, imaginar uma alternativa viável.

Na primeira parte da crise, a reacção foi uma descomunal injecção de liquidez por parte dos bancos centrais: dinheiro público atirado para os cofres dos bancos. Isso permitiu que o mundo financeiro reencontrasse o fôlego, mas com um custo enorme: transformar a dívida privada em dívida pública. O que antes era a dívida dos bancos privados, tornou-se pública (e ainda há alguém que fala de “Capitalismo”…). Tudo isso piorou as condições económicas de muitos Países, o que representou a ocasião pelos “liberais” para apontar o dedo contra a insustentabilidade da dívida pública, os custos dos Estados e a necessidade de redimensionar o welfare, ressuscitando a ideia dum Estado mínimo (o Estado é o problema? O Mercado é a solução). É esta a fase na qual vivemos hoje.

É este um aspecto surreal: como quantificado pelo Bank of England (Stability Report de Junho de 2009), a maior operação de socialização de perdas da história custou 14.000 biliões de Dólares (mais ou menos 50% do PIB de EUA e Europa juntos), dinheiro dos Estados, dinheiro dos contribuintes. A simples verdade é que os sistema privado (bancos e finança) não poderia ter sobrevivido sem a ajuda do público (Estado); e agora o privado deseja reduzir as funções do público.

As ideias de Lapavitsas

Voltamos aos bancos. O Leitor mastiga um pouco de inglês? Então leia Systemic Failure of Private Banking: A Case for Public Banks de Costas Lapavitsas (link em baixo, nas fontes). São 30 páginas de análise de grande interesse.
O Leitor é preguiçoso? Muito bem, então eis aqui os pontos fundamentais, pois Lapavitsas (economista, professor na Universidade de Londres) realça os seguintes aspectos:

1: o banco privado incapaz

No centro da crise ainda em curso há o fracasso sistémico dos bancos privados, sejam bancos comerciais, seja bancos de investimentos.

A extensão da falha sistémica dos bancos privados não só é realçada pela efectiva falência dos grandes bancos, causada pela gestão da informação e por uma inadequada gestão dos riscos. Os bancos também têm falhado no papel de instrumentos para a aquisição de produtos essenciais para os trabalhadores. A crise imobiliária criou milhões de pessoas desabrigadas só nos EUA, enquanto um extremo nível de dívida das famílias nos EUA, no Reino Unido e em outros países levou a uma compressão forçada do consumo. A crise mostrou que o sistema bancário privado é incapaz de agir como um mediador para a demanda de habitação, pensões e muitos outros produtos que fazem parte do salário.

2: a fraca resposta

Perante esta situação, as propostas de reforma têm sido muito tímidas, pois apenas sugerem uns métodos para uma melhor regulamentação e um maior controle dos riscos. Só em poucos casos os economistas exigiram uma nacionalização (ainda que temporária) dos bancos, o que põe em causa a questão da mudança de propriedade dos bancos como forma de superar a crise.

3: o fracasso sistémico
O fracasso dos bancos privados tem um carácter sistémico e as respostas também deveriam ter um carácter sistémico, e o objectivo de mudar permanente o equilíbrio entre os sectores público e privado no âmbito financeiro. Os bancos públicos poderiam efectivamente lidar com a crise e com a reestruturação do sistema financeiro e da economia a longo prazo.

4: o custo público do banco privado

A intervenção dos Estados e dos bancos centrais na abordagem da crise tornou disponíveis recursos públicos de tamanho significativo, mas, ao mesmo tempo tem tentado proteger os accionistas e os detentores das obrigações dos bancos.

As injecções de capital foram geridas inteiramente no interesse dos bancos, que têm explorado o dinheiro “fresco” evitando de efectuar uma limpeza nas próprias carteiras (e os assets tóxicos ainda estão aí: isso, claro, teria consequências dolorosas para os accionistas, mas qual a alternativa? Esperar o rebentamento da próxima bolha?).

Na verdade, para resgatar os bancos falidos, as autoridades impuseram altos custos suportados pela sociedade como um todo, protegendo os accionistas, os credores e os gestores dos bancos, e, em geral, a mesma natureza dos bancos privados, evitando qualquer significativa intervenção pública na gestão.

5: a resposta sistémica
Pelo contrário: uma resposta sistémica perante as falhas do sistema bancário deveria incluir a transformação dos bancos comerciais privados em bancos públicos. Isso tornaria mais fácil a tarefa de responder a pressões imediatas da crise bancária, bem como tornaria possível influenciar o papel dos bancos no longo prazo.

6: as vantagens do banco público 
Os benefícios de tornar público os bancos privados, sempre segundo Lapavitsas, seriam os seguintes:
  • a restauração da confiança na solvência dos próprios bancos, pois os bancos seriam cobertos pelas garantias e pelos recursos de toda a sociedade. Isso resolveria os problemas da liquidez dos bancos, reduzindo a necessidade de recorrer aos bancos centrais (e evitar assim o sobrecarregamento dos orçamentos destes últimos);
  • a capacidade de lidar duma forma mais transparente o problema da qualidade dos activos (os assets) dos próprios bancos, evitando também as tentativas para esconder perdas, contornar as restrições das leis e, quem sabe, talvez efectuar stress-test dignos deste nome;
  • as perdas poderiam ser divulgadas, tornando mais transparente a posição de quem hoje “joga nas sombras” e prejudica os pequenos e médios investidores em boa fé.

7: nacionalização, não carroção 
A criação dos bancos públicos é mais do que apenas uma nacionalização e não pode ser reduzida a uma simples transição entre gestores privados e burocratas estatais. Os bancos devem ser tratados de forma mais transparente possível, por meio duma representação nos conselhos de administração dos interesses dos trabalhadores e da sociedade civil.

8: a função do banco público 
A função de longo prazo dos bancos seria fornecer o crédito que deve ser considerado de utilidade pública, tal como acontece com o fornecimento dos transportes, da energia, da água. Isto é particularmente importante no caso da oferta de crédito para as pequenas e médias empresas (que – ao contrário das grandes empresas – não podem apelar directamente aos mercados para o financiamento) e no caso da concessão de crédito aos trabalhadores e as famílias em geral (crédito para a habitação, educação, etc.).

Desta forma, na opinião do Lapavitsas, seria possível inverter a tendência dos últimos 30 anos, desastrosa, da “financeirização do rendimento pessoal”.

De modo mais geral, os bancos públicos poderiam ser essenciais para promover o investimento em novos sectores económicos e promover uma mudança do centro dos interesses, de particulares para o social e colectivo.

 
É muito fácil observar a distância entre as ideias de Lapavitsas e as “soluções” oferecidas diariamente nos debates sobre a crise. Mas este não é o limite dos argumentos do economistas: o limite é dos economistas de regime, enquadrados de forma que não seja possível sair da zona do conforto. Zona dos bancos e dos representantes políticos destes, não do cidadão. Aliás, as indicações de Lapavitsas são úteis para focalizar dois aspectos fundamentais da emergência: a crise bancária, na qual as instituições privadas ainda precisam de apoio público para não falir, e a restrição do crédito para as empresas e os cidadãos.

Dúvida: e os bancos sem juros?

Dúvida: mas não seria melhor repensar a mesma ideia de banco? A questão dos juros, por exemplo: há bancos que não cobram interesses, como é possível?

Dúvida legítima: mas aqui tentamos encontrar uma forma de ver as coisas que não seja de total rotura com as condições presentes. Fala-se duma solução viável no curto/médio prazo, enquanto a criação de bancos sem juros (que existem como já vimos: espreita “O banco sem juros” ou “Os bancos do Islão”, links em baixo) implicaria uma reforma bem mais profunda não apenas do sistema bancário como também do financeiro.

E a mudança não ficaria por aqui, pois as consequências alcançariam aspectos que estão na base da nossa sociedade.

Pessoalmente acho os bancos sem juros a solução ideal, viável desde já em determinadas condições (por exemplo no caso do cidadão particular ou das pequenas empresas); mas ir além disso agora significaria trazer uma resistência fortíssima por parte de quem têm a faca e o queijo na mão, como se costuma dizer em bom português.

Não gostam de queijo? Então pensem na faca…

Repito: um banco sem juro representa a solução ideal (e talvez represente o passo natural após um sistema de bancos públicos) e tenho a ideia de que com o tempo (não pouco…) este será o desfecho escolhido pela sociedade futura. O que não impede que esta possa ser a melhor opção dos particulares desde hoje (aliás, em vez de homenagear os bancos com os juros, tentem encontrar um banco que não aplique a usura ou, pelo menos, uma caixa rural). Mas a crise sistémica, e não apenas do particular, existe agora e as soluções encontradas devem ser aplicáveis em tempos rápidos. Já tornar públicos os bancos privados não é simples…

Voltemos aos bancos? E voltemos. 

Uma questão de horizontes

 
O crédito como bem público, como os transportes, a saúde, a água? Óbvio. A ideia do banco (a instituição que concede o crédito) é parecida com aquela do dinheiro: não é má em si, pelo contrário. É a utilização que tornou-se péssima.

O Leitor deseja adquirir uma casa para si e a família dele? Não tem todo o dinheiro que for preciso? Qual o mal em encontrar alguém que disponibilize o montante desde já? E porque não falar das empresas? Porque recusar a ideia dos investimentos, que podem também significar a criação de novos lugares de trabalho? E como fazer os investimentos sem ter dinheiro? Exacto, com alguém que empreste o que for preciso. Este alguém pode bem ser um banco.

Em boa verdade, os bancos têm uma importância estratégica para qualquer País, a concessão do crédito tem consequências decisivas no presente e no futuro da economia. Nos últimos anos, infelizmente, o sistema bancário (privado) da maior parte do planeta seguiu a lógica da máxima rentabilidade a curto prazo, portanto, perante a presença de empréstimos não devolvidos (devido a forte crise), reduziu o crédito para as empresas e as famílias desviou o dinheiro para investimentos menos rentáveis mas seguros.

Uma táctica injusta? Não, mais do que justa: lógica. Os bancos privados são empresas privadas que perseguem o lucro privado, não o interesse público. Experimentem convencer o vosso padeiro a abdicar do lucro em nome da sociedade.

A presença de bancos públicos, com um horizonte de investimento de médio a longo prazo e sem a necessidade genética do “lucro antes do resto e a qualquer custo”, poderia ajudar a resolver a crise de uma maneira muito diferente.

Isso não significa desperdício de dinheiro (em Portugal temos tido um recente exemplo neste sentido, com uma nacionalização que mais pareceu uma piada de mau gosto), significa fazer escolhas racionais de carácter diferente daquelas feitas pelos banqueiros privados: as escolhas que incorporam não só a rentabilidade no curto prazo, mas também no horizonte de longo prazo, na óptica do crescimento económico global do País; o que também significa um accionista público melhor gratificado, pois consciente do facto que o pagamento dos impostos contribui, pelo menos parcialmente, para o futuro económico do País. Seria absurdo procurar um tal horizonte nos planos dum operador privado.

Mas há mais do que isso, há mais do que uma “simples” intervenção pública no sistema bancário para responder às dificuldades actuais.

O pólo do Zé

Como vimos,  os bancos privados, já sobrecarregados com o peso do crédito malparado, não emprestam dinheiro. Isso aplica-se ao crédito de curto prazo mas também e sobretudo no caso dos empréstimos de longo prazo, os mais arriscados: e são estes créditos que estão relacionados com o investimentos produtivos, como a expansão das instalações, a modernização tecnológica. É o nível deste tipo de investimento que determina em grande parte as condições económicas futuras.
 
Por esta razão, não é apenas necessário, mas urgente reconstruir um banco público para o crédito de médio e longo prazo, para poder emprestar dinheiro às empresas com taxas razoáveis. A noção de que o crédito é um bem público (e os bancos devem, portanto, ser considerados como serviços públicos) é válida em particular para o crédito de médio e de longo prazo. Este conceito, que ao longo de décadas foi esquecido, agora começa a vingar nos Países anglo-saxões: o Reino Unido agora quer um banco público para os empréstimos às pequenas e médias empresas. Isso enquanto a Alemanha nunca deixou de tirar proveito dum grande banco público que faz empréstimos para as empresas, a Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW), que apesar do nome assustador é um banco e é público.

E em Portugal? A Caixa Geral de Depósitos? Sim, tá bom…

Como fazer isso? Instituição (o utilização da CGD em Portugal ou de outro banco privado tornado público) dum banco público sob o controle directo do Ministério da Economia e Finanças; recapitalização adequada do banco (dívida pública? Óbvio, meus senhores) tendo em vista estas funções: crédito de longo prazo em todo o território nacional, apoio ao crédito facilitado (avaliação e co-financiamento), suporte a Estado e Regiões (e Distritos, Concelhos, Autarquias, Universidades, outras instituições públicas) para a utilização dos fundos da União Europeia (até quando esta existir), e, finalmente, uma estreita cooperação e integração operacional entre o novo banco do Estado e os Ministério dos Negócios Estrangeiros (as exportações!) e o sector dos seguro (fundos pensões). 

Não é nada do “outro mundo”, são coisas óbvias até, que bem poderiam funcionar. Desta forma, seria possível criar um centro público de desenvolvimento dos negócios bancários e das actividades seguradoras, que poderia até operar no comparto doméstico e naquele internacional também. Finalmente seria possível criar uma export bank portuguesa de tipo pública e transparente (lembramos: representantes dos trabalhadores e da sociedade civil no Concelho de Administração).

O nome? Banco do Zé? Ou será melhor Zé Bank? Fica a dúvida que irá ocupar o resto do dia.

Ipse dixit.

Relacionados:
Dos juros e do banco público
O banco sem juro
Os bancos do Islão

Fontes: Costas Lapavitsas: Systemic Failure of Private Banking: A Case for Public Banks (ficheiro Pdf, inglês), Today, ControLaCrisi, OltreMedia, Per Una Nuova Finanza Pubblica (todos links em italiano)

4 Replies to “O horizonte dos bancos”

  1. Ops!! Volto para casa e encontro o terceiro post do Max, em dia de fim de semana!? Kfoi, desculpa…que foi Max?
    Mas…voltando ao assunto,olha Max: quem depende de explicações claras, como as tuas, para entender como e porque deveriam ser os bancos sou eu, e gente como eu. Aqueles que nos governam e cotidianamente nos exploram, nos extorquindo,estes estão cansados de saber que crédito, para quem pouco dinheiro dispõe,é direito social. Só que também sabem que banco sem juros, microcrédito e transparência financeira não vão encher as suas algibeiras, e permitir-lhes a eternidade do seu parasitismo opulento. Então, nem sei porque acreditas que isso vai acontecer na sociedade futura. Porque esse sistema está desmoronando? Ora, creio não ser a primeira vez. Mas enfim, deves saber porque, e poderias nos dar a tua interpretação a respeito. Abraços

  2. Sobre este post e relativamente à minha posição sobre o sistema bancário a resposta está dada em grande parte no post seguinte '… e Chipre já era'.

    Tenho lido algumas coisas do Costas Lapavitsas e sobre o que aqui está transcrito parece-me que ele usa uma linguagem demasiado macia relativamente aos tempos que correm. Mesmo assim tem razão em tudo aquilo que diz.

    Krowler

  3. Tá a solução do banco público poderá ser muito boa e útil para nós simples mortais, exceto se o banco público funcionar como o "Banco do Zé, ou melhor Banco do BraZil" que haje tão fominha ou mais do que qualquer outro banco. Em tempo, não sou especialista nem estudioso do assunto, apenas um simpatizante, mas não consigo entender como os bancos podem "quebrar" pois emprestam dinheiro que não existe de fato e recebem juros por ele. Abraço.

Obrigado por participar na discussão!

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