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O sacrifício de Chipre

Chipre, uma ilhota na parte oriental do Mar Mediterrâneo: pouco mais dum milhão de habitantes, na frente das costas turcas e sírias. Um País que adoptou o Euro. E que faliu.

Euro? Falência? O clima ideal para virar uma nação de avesso, é só esperar pela ajuda europeia.

A União Europeia concedeu 10 biliões de Euro de ajuda para restaurar a economia cipriota. Porque a ilha tem problemas, de facto: a proporção deficit/PIB é de 6,3% e a dívida pública, ainda que sólida, em Setembro de 2012, era 84% do PIB.

Primeiro efeito: com a ajuda europeia, a dívida ultrapassa logo 100% do PIB. Normal: a “ajuda”, como sabemos, é um empréstimo, isso é, uma dívida com tanto de juros, que vai somar-se à dívida preexistente. E os cipriotas agradecem.

O grande problema de Chipre são os bancos. O sistema de crédito da ilha está numa fase delicada, apesar de ainda encontrar um equilíbrio. Os bancos apresentam 58,8 biliões em capitais e reservas, 107,2 biliões em depósitos, 104 biliões de empréstimos, 1,7 biliões de obrigações em dívida e outros 37.4 biliões em outras obrigações. Não é uma situação má, mas delicada sim.

Porque depois temos de considerar 12.5 biliões de títulos arriscados, como 1.4 Títulos de Estado da Grécia (praticamente é como ter no cofre uma bomba-relógio) e 2.2 biliões de Títulos de empresas em fortes dificuldades, dificilmente recuperáveis.

Feitas as contas, a proporção de capital, das reservas e depósitos por um lado, empréstimos, títulos de dívida e vário tipo lixo do outro, é cerca de 1 para 1 (1,15), o que ainda é equilibrado mas denuncia algumas tensões.

Muito grave é a situação da dívida privada: 170,9% do rendimento bruto disponível, comparado com uma média de 99,8% da Zona Euro. A dívida das empresas não-financeiras é igual a 156% do PIB, em comparação com o 103,8% da média Euro. É esta condição de dívida privada elevada, num momento em que a economia desacelera (o PIB nacional tem vindo a diminuir a partir de Junho de 2011) é um forte risco. Basta que algo neste esquema deixe de funcionar para que o sistema-Chipre possa ruir e de forma bem rápida também.

Perante com esta situação delicada, o que faz a União Europeia? A pior das escolhas possíveis: pede para que o governo de Chipre implemente um imposto compulsório sobre os depósitos bancários! Um medicamento que matar o paciente em vez de curá-lo. E aqui a questão não e ser favorável ou desfavorável acerca dum imposto sobre o capital, não tem nada a ver com isso. Aqui a questão-chave é saber se, nestas circunstâncias, o remédio pode curar os doentes ou agravar as condições dele.

Não e difícil entender qual a razão: a taxa sobre os depósitos, de facto, representa uma parte dos depósitos que sai das contas guardadas nos bancos para acabar directamente nos cofres do Estado (e daqui para a Europa), além de aumentar também o risco de insolvência de numerosas pequenas e médias empresas (aumentando assim o risco dos bancos da ilha).

Um primeiro brilhante resultado já foi obtido: a fuga dos investidores russos, uma das principais fontes de rendimentos dos bancos. Ainda não há dados oficiais, mas é de esperar que tal fuga tenha piorado as contas bancárias da ilha, pois os russos não guardavam apenas alguns trocos no Chipre: fala-se de 20 biliões de Euros anuais, algo superior ao PIB da ilha (17.9 biliões).

Mais no geral, é a confiança nos bancos que esvaece. Quem deposita o seu próprio dinheiro num bancos, sabendo que logo qualquer montante será gravado com uma taxa mínima de 6%? É uma percentagem superior à taxa de inflação: compensa mais guardar o dinheiro debaixo do colchão, onde nem são pagas as taxas de manutenção da conta.

Sem esquecer a já citada proporção Dívida/PIB, que agora atinge 107%: o ideal para manobras especulativas, com óbvio prejuízos para os bancos da ilha que detêm boa parte dos Títulos de Chipre.

Pergunta: porquê? Porquê esta triste ideia da UE para “resolver” a crise de Chipre? Porquê uma intervenção que arrisca destruir o pequeno tecido económico da ilha numa altura em que precisaria de incentivos?

Na internet circula uma possível explicação.
Chipre não é um paraíso fiscal, mas é verdade que ao longo das décadas escolheu uma política que favorece o fluxo de capitais e investimentos estrangeiros.

A suspeita é que por trás dessa manobra haja interesses económicos, mas também políticos e estratégicos. As vantagens de destruir o sistema-Chipre reside na eliminação dum perigoso concorrente: Chipre atrair grandes quantidades de capital, ainda que de origem duvidosa, da Rússia; capital do qual os bancos da Alemanha, da França, da Espanha, da Italia, do Reino Unido tão desesperadamente precisam neste momento de grande dificuldade em recapitalizar.

Mas os benefícios são, principalmente, políticos e não económicos. Por um lado, a Alemanha pode fazer um favor aos seus bancos, com a destruição do concorrente Chipre, sem dar ao público a perigosa sensação de financiar com o dinheiro também alemão uma espécie de “paraíso fiscal” . Isso seria um grande risco para o governo democrata/liberal da Merkel, que está prestes a entrar em campanha eleitoral e que deve enfrentar o novo partido anti-europeu (cujos apoios aumentam, até na mesma área do CDU).

Do outro lado Chipre, devido à sua posição estratégica no Mediterrâneo, e por causa da amizade com a Rússia (Putin, no ano passado, concedeu ao Governo de Chipre um empréstimo de 2,5 mil milhões a uma taxa favorável de 4,5%, para evitar que a ilha acabasse nas garras da União) é um local estratégico. A ligação entre o Chipre e Rússia permite que o círculo de oligarcas perto de Putin possam exportar os capitais deles em condições favoráveis, ajudando a cimentar um poder impopular nos ambientes atlânticos. Esta ligação cria preocupações acerca da Marinha russa, que pode assim desfrutar o apoio logístico na zona oriental do Mediterrâneo.

Tudo isso sem esquecer os grandes depósitos de gás natural descobertos recentemente nas águas e no subsolo de Chipre.

Portanto, Chipre, com os habitantes dela, pode ser tranquilamente sacrificada em nome de interesse superiores.

Faz sentido? Sim, faz. Mas acho ser importante realçar outros aspectos. Dois deles.

Em primeiro lugar a total ausência de qualquer capacidade da Troika para conduzir políticas económicas que possam ser realmente direccionadas não à destruição, mas a uma reconstrução duma economia em ruínas, seja esta europeia ou simplesmente dum único País. Quando a Troika intervir, é logo para arrasar. E sair da crise só destruindo não passa duma miragem: não são estas as políticas que podem construir um caminho da unificação política e económica europeia, acompanhado pelo povo e não apenas concebido por uma elite psicótica.
A seguir, é possível ver nisso mais um sinal do fim da moeda única.

Não esta a altura para grandes discursos e promessas douradas. É esta a altura para intervir com força e decisão, sacando (literalmente) o dinheiro dos bolsos dos cidadãos que não podem defender-se. Nem há no caso de Chipre a tentativa para manter um mínimo de fachada, o assalto é directo, conduzido além de qualquer tecnicismo ou verbosidade.

É a atitude de quem sabe que pouco ou nada pode perder, a atitude de quem olha para o relógio e vê aproximar-se o fim da linha.

Ipse dixit.