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Portugal: as propostas do FMI

O Jornal de Notícias publica hoje um relatório do Fundo Monetário Internacional.

É muito interessante, pois trata-se da receita mágica com a qual um País (um qualquer…Portugal, por exemplo) pode sair da crise e percorrer sorridente as avenidas do bem estar.

Em primeiro lugar, o FMI afirma ter chegado a hora de adoptar reformas inteligentes. Que, por acaso, são aquelas sugeridas pelo próprio FMI. Sorte nossa.

O objectivo, afirma o documento, é eliminar as ineficiências, as injustiças e promover o crescimento.
São conceitos revolucionários e pessoalmente estou feliz de ter sobrevivido até hoje para poder ouvir alguém dizer coisas destas.

Assumida a superioridade intelectual do FMI, vamos agora ver quais as medidas propostas.

  • Corte entre 10 e 20% do número de funcionários públicos

Só esta medida permitiria poupar 2.700 milhões de Euros. Isso é genial. Pega-se em alguns milhares de pessoas, atira-se tudo para a rua, e pronto, o Estado poupa.

Claro, estas pessoas ficariam no desemprego, sem rendimentos, sem possibilidade de construir um futuro, uma reforma. São também pessoas que reduziriam drasticamente os consumos. E, ao mesmo tempo, o Estado falharia um dos objectivos primários dele, que é criar trabalho.

Não haveria também um aumento dos subsídios de desemprego? A não ser que a ideia do FMI seja também eliminar estas esmolas.  

Mas estes são detalhes e, como tais, podem ser tranquilamente ignorados.   

  • Corte nos salários da função pública

E os que conseguiram fugir aos cortes e permanecem na máquina do Estado? Salários mais baixos, assim aprendem, parasitas.
Um corte de três a sete por cento nos ordenados poderia garantir ao Estado até 760 milhões de Euros poupados. Já um corte nos suplementos dos trabalhadores da Função Pública, que pode chegar aos 30%, pouparia 300 milhões de Euros. Toda fartura.

Eu acho que se uma pessoa tiver menos dinheiro, consequentemente gastará menos, o que não é propriamente bom na óptica da economia nacional. Mas eu não sou o FMI, nada percebo do assunto, pelo que bato as palmas perante esta medida inovadora.

  • Corte nas reformas

Sejamos honestos: se já os funcionários públicos forem parasitas, que dizer dos reformados? Estes não produzem, não trabalham: limitam-se a sugar a riqueza produzida por outros.

Mas a longa vista do FMI não esqueceu-se desta classe de aproveitadores: extensão do corte nos subsídios de férias e de Natal conjugado com um segundo corte de 15% nas pensões acima de um valor mínimo, ainda não determinado.

E mais: é inevitável uma alteração nas regras de cálculo das pensões. E uma das medidas deve ser a proibição de reformas antes dos 65 anos, o que permitiria poupar outros milhões de Euros.

Acho que neste âmbito o FMI poderia ter sido um pouco mais atrevido: já alguém pensou na poupança do Estado com reformas aos 85 anos? Pensem um pouco nisso.

  • Desemprego: o subsídio é demais
O FMI observa também o sistema de protecção social e não gosta dele: diz ser “demasiado dispendioso, injusto especialmente para os mais jovens” e defende que “subsídio de desemprego continua demasiado longo e elevado”.

Pena que o FMI não avance com alguns exemplos práticos, pois seria interessante perceber o sentido de “demasiado longo” ou “elevado”.

  • Professores: rua

Portugal é um dos Países mais cultos do planeta: 6 em cada 5 cidadãos são licenciados, 7 em cada 5 tiraram um master e o nível cultural nas ruas é o mesmo que pode ser encontrado em Oxford ou Cambridge. Pelo que surge espontânea uma pergunta: professores para quê? Portugal não arrisca ser demasiado culto?

O FMI sabe disso e avança com uma grande proposta: colocar entre 30 a 50 mil funcionários da educação em regime de mobilidade especial, o que permitiria uma poupança na ordem dos 430 a 710 milhões de Euros por ano.

E os que permanecerem no activo passam a trabalhar 40 horas semanais, com uma poupança na despesa de 150 milhões de Euros por ano.

Outros 300 milhões de Euros de poupança podem ser conseguidos através do alargamento do bloco de aulas dos 45 para os 60 minutos [por acaso, a única medida com um mínimo de fundamento, nota minha].

Pôr os professores na mobilidade especial (que depois é o pré-desemprego), explica o FMI, significa poupar e também incentivar o “desempenho” dos professores “que querem ficar de fora das listas de mobilidade”.

Uma medida original e inovadora que merece todo o apoio. Formação, ensino, cultura: não são coisas que possam ser comidas, então prestam para quê?

  • Propinas e privados

Sempre em tema de educação. Esta coisa do ensino pago, afirma o FMI, não é justa: deve ser mais pago. Por isso: aumento das propinas para os estudantes universitários como forma de reduzir a despesa.

O relatório é claro:

Para alcançar poupanças significantes e duradouras e reduzir o subfinanciamento, Portugal precisa de reduzir a despesa pública com o Ensino Superior e aumentar as propinas.

Justo. Cabe ao Estado ajudar o cidadão que deseja aprender? Será que um cidadão instruído e adequadamente formado é uma riqueza da comunidade? Perante estas medidas, a resposta é óbvia: não. Por isso, quem quiser aprender que pague.

Mas não há apenas universidades, há também o ensino básico. E o FMI não descuida deste aspecto: contas feitas, o Estado consegue poupar cerca de 400 Euros por aluno numa escola privada com contrato de associação. Vamos incluir os 1,5 milhões de estudantes do ensino primário e secundário e conseguimos obter uma poupança de 580 milhões de Euros anual se o Estado apostar nos contratos com os privados.

Seria interessante poder analisar estes cálculos. Seria muito, mas mesmo muito interessante.
Mas por enquanto vamos em frente.

  • Demasiada polícia

Quanta polícia há em Portugal? Demais. Afinal este não é o Bronx.
Então, eis a solução: menos polícia.

O FMI afirma que existem polícias em excesso e que uma correcção nos números pode facilitar a vida ao Estado. Todavia não avança quantias para os cortes, o que é uma pena.

No relatório entregue ao Governo, o FMI destaca que “a densidade das forças policiais está entre as mais altas da Europa” e que “as forças de segurança representam cerca de 17% do emprego público”.

Será por isso que Portugal é um País bastante tranquilo do ponto de vista criminal?
Mas afinal o que é mais importante? Uma criminalidade reduzida e controlada ou as contas do Estado? Resposta óbvia: as contas do Estado. Então: cortes. E a reforma no sector da segurança, afirma o FMI, não deve passar tanto pelos salários excessivos mas sim pelo número de forças activas: isso é, redução dos efectivos.

  • Aumento das taxas moderadoras

O FMI afirma que os preços do Serviço Nacional de Saúde têm margem para subir.
Justo, afinal a saúde não é um direito, é mais uma questão de sorte. Uma pessoa doente é uma pessoa azarada: é justo que a sociedade fique com o azar também? Não, não é justo: o doente pode ir a morrer sozinho e levar o azar com ele para a cova. O resultado será uma sociedade com menos azar, o que é meio caminho andado tendo em vista a retoma.

É interessante verificar como aqui haja uma recuperação do antigo sentido da palavra “infortúnio”. O termo deriva da expressão do latim infortunium que indica “falta de sorte”, pois assim eram vistas as doenças até o século XVIII. O FMI parece recuperar esta visão e quem, tal como eu, gostar das tradições, aplaude a escolha.

Doutro lado, pensamos nisso: quem é que pode enfrentar sem problemas custos mais elevados para tratar da própria saúde? Os mais ricos, que são também os que mais sorte e/ou sucesso tiveram na vida. A fortuna, a sorte, passa a ser o denominador de base do Sistema de Saúde, o que tem uma certa lógica, não há dúvida.

  • Profissões privilegiadas

Explica o diário Público:

Segundo o relatório do FMI, elaborado em conjunto com a Comissão Europeia, os salários da Função Pública são “relativamente elevados” e privilegiam “trabalhadores com baixas qualificações”, uma vez que a diferenciação nos salários acontece em função da antiguidade e não do desempenho.

O documento refere que há classes profissionais (polícias, militares, professores, médicos e juízes) que têm “demasiadas regalias”, que os médicos têm salários excessivamente elevados (principalmente devido ao pagamento de horas extraordinárias) e os magistrados beneficiam de um regime especial que aumenta as pensões dos juízes em linha com os salários.

Esta é uma das mudanças propostas pelo relatório que […] o Governo está a analisar. A progressividade dos salários do Estado deve passar a ser feita em função do desempenho e não da antiguidade, como forma de “atrair profissionais mais motivados e qualificados”, como escreve o jornal.

O facto da progressividade dos salários ter que estar ligada às capacidades, aos resultados e não à antiguidade é coisa positiva. O facto de existirem profissões com excessivas regalias também é verdade. E ambas as situações devem ser corrigidas, este é um facto. Mas os problemas são também outros.

Como é que chegámos ao ponto em que determinadas profissões têm demasiadas regalias ou nas quais a carreira faz-se apenas por antiguidade e não por mérito? É evidente que há algo que não funciona no mecanismo e é aí que é preciso intervir. Limitar-se a cortar as regalias ou os salários agora não resolve os problemas: deve ser modificado o sistema, não apenas as retribuições.

Porque afirmar que os salários “são elevados” é uma piada de mau gosto: o governo e o FMI têm sorte porque o Português médio mal sabe o que se passa na vizinha Espanha, imaginem no resto da Europa. Mas a verdade é que um bom profissional em Portugal tem um vencimento miserável quando comparado com os colegas estrangeiros. Então, qual o objectivo do FMI? Nivelar os salários “para baixo” ou criar as condições para que haja desenvolvimento e uma subida dos salários, aproximando estes aos patamares europeus?
A resposta é evidente.

O desenvolvimento não é algo que apareça à porta de casa num dia de Primavera: é algo que passa pelos investimentos, os quais são feitos com o dinheiro. E se o Estado não quer gastar (coisa evidente), a única maneira de obter investimento (e crescimento) é com o dinheiro dos privados.

Conclusões

Estas as directrizes principais sugeridas pelo Fundo Monetário Internacional.
Gosto muito delas. Aumento do desemprego, redução da formação, saúde mais cara, menos segurança, pessoas mais pobres são os resultados imediatos. O que pode ser um pouco desconfortável, mas temos que observar o outro lado da moeda: o Estado poupa. E isso é suficiente para justificar qualquer medida, tudo o resto passa em segundo plano, inclusive os direitos dos cidadãos (“direitos”, sempre “direitos”…e os deveres?).

É claro que um conjunto de medidas como estas tornaria impossível qualquer retoma (o Estado poupa, os cidadãos ficam com menos dinheiro), mas também isso é secundário, pois não podemos esquecer que o objectivo primário é e sempre deve ser a poupança do Estado.

Só uma coisa não percebo: quando Portugal terá conseguido alcançar o fundo dos fundos (já alcançou o fundo do poço, estando falido, mas estas medidas permitem começar a cavar), qual a utilidade dum Estado que poupa?

Mas este sou eu que do assunto não percebo nada, peço desculpa mais uma vez.

  • Addendum

No passado mês de Outubro, o FMI avaliou a situação das economias da Zona NEuro e afirmou que as medidas de austeridade não conseguiam alcançar os resultados pretendidos. A mesma chefe do FMI, Christine Lagarde, avisava que demasiada austeridade provoca recessão e afasta a retoma.
Mas isso em Outubro. Agora é Janeiro. Pelos vistos, é toda outra coisa.

Ipse dixit.

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Ops…um pequeno erro!

Fontes: Jornal de Negócios, Público