O Mercado – Parte II

Segunda parte do artigo dedicado ao Mercado.
Uma salva de palma para o nosso convidado, Leonardo.

– Não ouvi nada.
– Não, a salva era metafórica.
– Ah…então vamos ver: até agora falámos do mercado ideal, dos princípios que deveriam estar na base de qualquer mercado.
– Muito bem Leo.
– Mas aqui surge uma pergunta.
– Qual?
– A seguinte: o mundo em que vivemos é realmente assim? Quando jornalistas,
economistas e políticos falam acerca dos “mercados”, referem-se a condições como aquelas
que descrevemos antes?
– Antes quando?
– No post anterior.
– Ah. Não sei…referem-se?
– A resposta é: não! Isso porque a realidade do mercado, especialmente do mercado financeiro, é completamente
alterada por uma série de truques, distorções, loucuras bizantinas que distorcem o desempenho e os objectivos. A questão é tão caótica e
longe do senso comum que é até difícil apresentá-la duma forma
ordenada.
– Então acabou a entrevista?

A fita métrica e os câmbios

– Não, espera: afinal tens um cão economista. Começamos a expor o primeiro de muitos bug do
sistema, algo que poucos se dão ao trabalho de denunciar: a
chamada “conveniência do preço”. Todo mundo está vendo a
invasão do “Made in China”, temos que cair no real.
– Mas como falas, com sotaque brasileiro?
– É que estou vendo a nova versão de Gabriela.
– “Estou a ver”.
– E estou mesmo. Dizia: a invasão do “Made in China”, que esmagou a concorrência com preços muito
mais baixos daqueles praticados no Ocidente. Como é que estes preços são tão
baixos?
– Porque os Chineses também são baixos.
– Não, não é por causa disso. Talvez o custo da energia é menor para os Chineses? De modo nenhum, aliás,
devido aos transportes de longa distancia, os custos energéticos e em termos ambientais são até maiores do que no caso de produtos idênticos fabricados no
local. Será que os custos humanos são menores? Longe disso, na verdade a
condição do trabalhador chinês é infame. Então, a verdade é que os custos reais são mais elevados no caso dos produtos chineses.
– Mas custam menos…
– Pois. O que muda? Muda o custo em dinheiro, o preço final do produto, isso porque a unidade de medida utilizada na China é diferente
da utilizada nos Países mais desenvolvidos, por exemplo.
– Como assim?
– É claro: a moeda é a unidade de medida, está aí o truque. E o resultado é que o mesmo produto tem dois preços diferentes porque com a quantidade de dinheiro que é precisa para pagar
por uma hora de trabalho no Ocidente, são pagas 50 horas de trabalho chinês.
Por comparação, é como se um chinês e um europeu fossem agentes imobiliários, cuja tarefa é vender o mesmo apartamento com o mesmo preço por
metro quadrado. O europeu utiliza um medidor de cem centímetros e
vende a um determinado preço um apartamento de cem metros quadrados,
o chinês usa um medidor de 50 centímetros e, portanto, com o mesmo preço
vende o mesmo apartamento mas declara que o tamanho é de 400 metros quadrados.
– Isso é muito estúpido.
– Sim, mas mesmo que a operação pareça absurda com os metros
quadrados, na realidade é quanto aceitamos sem questionar quando o assunto for Euros, Dólares ou outras moedas ainda. E sabes qual a razão?
– Não.
– É que este jogo é a base do sistema dos
câmbios, com o qual o Ocidente compra matérias-primas do Terceiro Mundo em troca duma miséria, para depois enriquecer-se à custa de inteiros povos. Então, que aprendeste até agora?
– Que é melhor desconfiar dos agentes imobiliários chineses.
– Não: aprendeste que a tendência do mercado não é linear, pois é medido com uma fita métrica “flutuante”.
– Aprendi isso?

A concorrência

– Com certeza. Depois há outro problema: a concorrência.
– Que tens contra a concorrência?
– Nada, caro Max. Todavia nem tudo está certo neste aspecto. Economistas,
políticos, jornalistas, continuam a repetir a necessidade de promover a
concorrência para ter um mercado eficiente, isto é, para propor os
melhores preços. Achas bem?
– Acho.
– Mau. Porque o que vemos hoje é que é exigida uma forte
concorrência por parte dos pequenos e médios produtores, trabalhadores e profissionais; isso enquanto as grandes empresas não são atingidas por este problema.
– Ó Leo, este é populismo…
– Achas? Nunca ouviste falar dum cartel?
– Qual cartel?
– O cartel das empresas. Olha o caso de Portugal: nem estás livre de escolher a bomba com a gasolina mais barata, as companhias fizeram um cartel e os preços são os mesmos em todos os lados. Até houve uma investigação por parte da Autoridade da Concorrência e o resultado foi que ninguém encontrou nada que pudesse estar relacionado com um cartel: o preço da gasolina é igual em todos os lados assim, por um mero acaso.
– Ahe? Eu pensava fosse um cartel.
– Estou a ser irónico.
– Ah, desculpa Leo.
– E a gasolina é apenas um exemplo entre muitos. As multinacionais não gostam de chocar uma com outra, preferem partilhar o mercado, criar as condições para as quais o preço não seja um factor de escolha.
– Então a concorrência já não existe?
– Existe, mas como tinha dito os alvos são outros. A concorrência interessa agora os trabalhadores, forçados a oferecer os seus serviços ao menor preço, e esta é chamada “flexibilidade”. Em sínteses, a concorrência é algo deixado para as classes médias e baixas, os níveis superiores não querem saber disso. Olha, sabes o que disse um dos Rothschild mais de um século atrás? Disse que “a concorrência é uma heresia”, e falava do negócio
dele, o sector bancário.
– Interessante.
– Sim, mas o pior ainda não chegou. E o nome dele é “mercado financeiro”.
– Ohhhh…

O mercado

– Pois. Os dados oficiais da Bolsa Italiana dos
últimos 30 anos mostram que o resultado é negativo. Dito de outra forma, somamos todo o dinheiro que as empresas têm tomado com a colocação
de suas acções e todo o dinheiro que têm perdido com pagamentos dos dividendos, as fusões e
operações diversas: o resultado é que a Bolsa parece não ter financiado as empresas, pelo contrário, serviu para retirar-lhes dinheiro.
– Tá bom, mas é a Bolsa Italiana, aqueles só sabem fazer massa, pizza e cantar “O Sole Mio”…
– Achas que os dados das outras Bolsas são tão diferentes? Procura, procura, vais ficar espantado.
– Sério? Achas que a Bolsa é inútil?
– Não, não é inútil: é prejudicial, seriamente prejudicial. Na verdade, a maneira de “trabalhar” dos grandes investidores (bancos de
investimento, fundos especulativos) é algo incrível: fica muito
longe do conceito de investimento em favor de empresas sólidas e
promissoras, estes operadores financeiros conectam um computador portátil, executam dezenas de milhares de transações por segundo com base
em algoritmos puramente matemáticos, tudo isso para ter lucro.
– Mas como fazem isso?
– É muito técnico, é assunto complicado, até para um cão. Mas não esquecer o caso Aleynikov.
– Ah, Aleynikov, grande jogador, nem sabia que tivesse tido um caso. Mas com quem?
– Mas que estás a dizer?
– Aleynikov, o ex jogador da Dinamo Minsk, da Juventus…
– Mas qual jogador? Max, falo do Aleynikov da Goldman Sachs!
– Aleynikov jogou na Goldman Sachs também?
– Nada disso: Sergey Aleynikov, funcionário do Goldman Sachs, antes de deixar a empresa roubou
um desses softwares do High Frequency Trading, revelando a seguir que estes tipos de programas até podem afectar o mercado. Na
prática, é um sistema de insider trading, uma fraude que estabelece
um imposto oculto sobre as operações dos pequenos investidores, por exemplo.
– Isso é mau.
– Claro que é mau. É preciso usar o senso comum: se pegarmos num item e vamos comprá-lo e
revendê-lo milhares de vezes por dia, este artigo não se torna mais
útil e nem aumenta de valor. Da mesma forma uma empresa, cujas acções sobem
e descem de dia para dia, não altera o valor na mesma proporção.
Se na Bolsa de Valores observemos uma acção da Microsoft perder de 5% na Segunda-feira, significa isso que num dia a empresa
perdeu 5% da sua capacidade produtiva? Ou que vende menos 5% de computadores? E numa empresa agrícola, como é? As vacas fazem 5% menos de leite?
– Se calhar as vacas ficam assustadas com a perda da bolsa, afinal são animais sensíveis.
– Nada disso, a
verdade nua e crua é que os preços das acções nada têm praticamente a
ver com a realidade. Olha só que aconteceu no dia 6 de Maio de 2010: a Bolsa de New York perdeu 10% em dez minutos, e sabes qual a razão?
– Foi Aleynikov!

High Frequency Trading e Dark Pools

– Não: porque, por coincidência, estes tais programas High Frequency Trading deram ao mesmo tempo as mesmas
ordens de venda. O valor da Bolsa caiu não por causa dum evento “real”, mas simplesmente por causa dum programa informático. A verdade é que a Bolsa hoje é um matadouro, feito para atrair e explorar os pequenos e médios investidores, enquanto os “grandes” ganham em outros lugares e/ou com outros instrumentos.
– Como assim?
Dark Pools.
– Eh?
– São mercados
paralelos electrónicos, envolvidos no segredo, onde as vendas não afectam o valor
dos títulos, como acontece na Bolsa oficial. As Dark Pools são autenticas Bolsas não oficiais.coberto de mercado oficial.
– Mas isso não é ilegal?
– Claro que é. Estas bolsas “escondidas” são o estalo
final no rosto da transparência e da justiça do mercado, oferecem uma grande oportunidade aos
especuladores para manipular o mercado, abusar do mesmo além de ser a
garantia de evasão fiscal total.
– Espera. Leo, espera. Deve haver leis que proíbem estas coisas, não é? Como é que as Dark Pools conseguem eludir as proibições dos Estados, do Bancos Centrais, dos órgãos de controle? Isso não faz muito sentido.
– Faz sentido, faz. A resposta é que não há nenhuma proibição, as Dark Pools foram criadas como resultado de uma directiva europeia de 2007,
directiva que eliminou o monopólio das Bolsas de Valores. Eliminado o monopólio das Bolsas de Valores oficiais, foi possível eliminar até aquelas poucas leis e normativas que tentavam pôr um pouco de ordem e controle. Tudo em nome da “concorrência”, do “mercado”, afinal da “liberdade”. Assim nasceram Instinet, Liquidnet, NYFIX Millennium, ITG, Pulse Trading BlockCross, RiverCross, SmartPool, TORA Crosspoint, Chi-X, Turquoise…
– Todas Dark Pools?
– Exacto. E sabes quem trabalha nestas Dark Pools?
– Imagino: obscuros indivíduos gananciosos…
– Também. Mas não só. Há nomes conhecidos também, muito conhecidos: Barclays Capital, BNP Paribas, Bank of New York Mellon, Citi, Credit Agricole Cheuvreux, Credit Suisse, Fidelity Capital Markets, GETCO, Goldman Sachs, Deutsche Bank, Merrill Lynch, Morgan Stanley, UBS Investment Bank, Bloomberg…
– Bloomberg???
– Com certeza, ninguém quer ficar de fora. Mas claro, as Dark Pools não são para todos.
– Mas eu costumo ler Bloomberg…
– E que posso fazer eu que sou cão? E olha que ainda nem tratámos dos derivados. Mas disso vamos falar amanhã, agora quero ver o novo episódio de Dog Whisperer ou “O Encantador de Cães” como vocês dizem. Passa o telecomando.
– Toma…
– Vixe Maria! Está começando…

Ipse dixit.

4 Replies to “O Mercado – Parte II”

  1. Olá Max: mas deve ser de rolar de rir te ouvir falar: "viiichmaari…",tu,um autêntico produto da civilização romana, surfando na terra dos lusíadas. Pois te digo que aqui só sertanejo e caipira sabe dizer isso certinho. Caboclo não sabe, criolo também não, e muito menos gaúcho.
    Agora uma palavrinha pro Leo: hoje me aparecestes com uns nomes que nunca na minha vida ouvi falar, essas tais de "piscinas escuras".Me explica isso com muita paciência, porque senão vou entender coisa nenhuma!Abraços

  2. Derivados ao sábado, parece-me bem, fica o domingo para ponderar a leitura.

    Abraço
    Rita M.

  3. Quando pensamos que já ouvimos falar em muita coisa do mundo das finanças eis aparecem as Dark Pools!

    Eu pensava que os High frequency Trading Programs eram a ultima grande criação do mundo financeiro, apesar de já ter alguns anos, mas parece que não.

    Krowler

  4. Max,

    Faço minhas as palavras do Krowler…Dark Pools é a machadada final sobre as Bolsas de Valores Oficiais, que só servem para explorar o pequeno investidor.

    Um abraço

    Zarco

Obrigado por participar na discussão!

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