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Capitalismo? Já foi.

Dúvida: será que vivemos numa sociedade capitalista?
Na minha opinião a resposta é “não”. Vamos ver qual a razão? E vamos.

Em primeiro lugar temos que individuar quais as características fundamentais do Capitalismo.
Estas são:

  1. Estruturas produtivas de base (terra e capital) na posse dos privados; o capital, neste sentido, é constituído pelos meios de produção, as infraestruturas, as máquinas e os outros instrumentos que concorrem na produção de bens e de serviços.
  2. A actividade económica é coordenada de forma descentrada, mediante a interacção dos vendedores e dos compradores nos mercados.
  3. Os donos dos meios de produção, tal como os que fornecem a mão de obra, são livres de seguir o próprio interesse pessoal, tentando obter o máximo ganho com a utilização dos recursos e do trabalho de produção. Os consumidores são livres de gastar os rendimentos segundo as próprias exigências ou gostos.
  4. O controle estatal é reduzido ao mínimo: com a concorrência, a actividade económica será auto-regulamentada. O Estado terá que proteger a sociedade perante ataques do exterior, proteger a propriedade privada e garantir os contratos.

O que sobra hoje desta visão? Bem pouco.

O ponto nº 1, por exemplo, parece ser o espelho da actual situação, com as estruturas produtivas de base que realmente estão na posse dos privados. Mas temos que fazer uma pergunta: quais estruturas produtivas?
Pegamos no caso da União Europeia ou dos Estados Unidos: onde estão as estruturas produtivas? Cada vez mais estas são deslocadas para os Países asiáticos, sendo que as mercadorias importadas representam uma enorme fatia do mercado, com reflexos negativos na produção local.

Isso até pode ser visto como uma consequência de ingerência estatal no âmbito do mercado, sobretudo nas décadas anteriores, que “limitou” o capitalismo nestas duas grandes áreas (e favoreceu os actuais Países exportadores).
Mas a realidade é um pouco diferente e para percebe-lo é suficiente analisar o ponto nº 2: é a actividade económica coordenada de forma descentrada? Apenas a interacção dos vendedores e dos compradores nos mercados estabelece o funcionamento da realidade alegadamente “capitalista”? Não.

Os Estados tiveram e ainda têm um papel preponderante neste aspecto. O que é o exacto contrário das características capitalistas (ponto nº 4). Limitamos a análise aos recentes acontecimentos: Quantitative Easing? O Estado que fornece dinheiro aos bancos (instituições privadas)? O que tem isso de capitalista? Na sociedade capitalista, o Estado pode ser interpretado como um arbitro que opera segundo regras bem definidas e que em nenhum caso intervém para condicionar o andamento do mercado. O capital é inteiramente privado, eventuais injecções de capital podem ser exclusivamente privadas: ou uma empresa tem pernas para andar ou fecha, pois sucumbe perante a vitalidade da concorrência.

Na nossa sociedade acontece o oposto: empresas privadas que fizeram escolhas erradas são ajudadas pelo Estado.
Pior: não todas as empresas, mas só algumas.
Pior ainda: a “ajuda” significa que as dívidas destas empresas privilegiadas gravam nos bolsos dos cidadãos. Os quais, como vimos, enquanto consumidores deveriam ser livres de gastar os rendimentos segundo os próprios gostos; mas já não podem, pois o Estado decidiu que uma parte dos rendimentos deles deve balançar as perdas dalgumas empresas privadas.

Mas porque os Estados decidiram ajudar algumas empresas privadas? Pela simples razão que o “livre mercado” de livre tem bem pouco.
O que vimos nas últimas décadas foi a concentração dos meios de produção e de distribuição nas mãos de um número limitado de entidades. Houve uma clara falha na obra de arbitragem por parte do Estado, houve autêntica cumplicidade que teve como objectivo alterar as regras da concorrência para que poucos indivíduos e empresas pudessem acumular um poder preponderante, ao ponto de condicionar os mercados e até as mesmas bases da produção.

Nestas condições não pode haver (e não há) concorrência, o mecanismo que deveria premiar os melhores: há uma concorrência desleal, que favorece quem tiver as mais saldas ligações com um Estado que já arbitro não é.

É a morte do Capitalismo, funeral e enterro incluídos: nada da nossa actual sociedade pode ser reconduzido ao Capitalismo.

Haveria muitos outros aspectos que mereceriam ser debatidos (um entre todos: trabalhadores livres de escolher a empresa que oferece as melhores condições de trabalho? Mas onde? Já é um milagre encontrar um trabalho), mas avancemos pelo contrário com umas perguntas: houve alguma vez uma sociedade que aproximou-se dos ideias capitalistas? Quando começou a morrer o Capitalismo?

O ponto alto (nota: “ponto alto” não significa “Foi um verdadeiro Paraíso, acredito no Capitalismo com o rosto humano, quero viver nele,”; significa “auge”) foram provavelmente os Estados Unidos da primeira metade do ‘800: um Estado praticamente ausente, cidadãos que tinham a liberdade de escolher a própria terra (que na verdade já pertencia a outros, mas enfim…) e empregar o próprio capital (que era extremamente reduzido) para o trabalho, na constante tentativa de melhorar as condições de vida; e, na costa Leste, empresas que trabalhavam para fornecer os meios que apoiassem esta expansão.

Individuar a morte do Capitalismo, pelo contrário, é mais complicado: uma data importante é sem dúvida o 1807, altura em que o Código napoleónico introduziu o conceito de société anonyme, na qual as acções pertencem a indivíduos que mantêm o anonimado. Isso permitiu o surgimento duma figura que já existia (o accionista) mas que agora passava a operar no total anonimado; mais difícil, portanto, controlar a concentração do poder (é preciso um Estado absolutamente imparcial) que, lembramos, é contrária ao Capitalismo clássico.

Mas é apenas um exemplo, na verdade a morte do Capitalismo começou bastante cedo e por causa de vários factores. O que temos hoje é…pois, o que temos?
Hoje temos:

  • progressiva privatização e “racionalização” da economia, mas não em favor de todos os empreendedores, só de alguns, e sem pôr em discussão os monopólios privados (a ideia de “monopólio” é intrinsecamente contrária ao Capitalismo);
  • reforços dos Estados policiais, diminuição da participação dos cidadãos na vida política dos Países;
  • socialização das perdas privadas (mas não de todas as perdas);
  • enfraquecimento dos trabalhadores e do poder de compra dos cidadãos;
  • intervenções directas ou indirectas para a deslocação dos meios de produção em favor de Países com mão de obra barata.

“Corporações” é a primeira palavra que surge perante este cenário. É isso que temos.
Enquanto os Países era mantidos calmos com os fantasmas do Comunismo dum lado e do Capitalismo o outro, a realidade trabalhava para criar um mundo onde o poder ficava cada vez mais concentrado nas mãos de poucos. É esta a nossa época.

Capitalismo e Comunismo morreram muito cedo, quase nem chegaram a sair do berço.
O que é normal com as utopias.

Ipse dixit.