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Tem que ser Directa

Quando frequentava a escola básica (pouco depois da Revolução Francesa), sentava-me na pequena cadeira e gostava de ver as imagens contidas nos livros de História.

Na verdade gostava de mais de olhar para Irene, a menina que ficava duas cadeiras à direita, mas como o professor não pensava o mesmo, em certas alturas era melhor ficar parado e prestar um mínimo de atenção.

Fora a chuva e um dia cinzento, dentro o néon ligado e o professor que falava dos grandes reis do passado.

Pessoas em poses importantes, com trajes fabulosos, em contraste com o povo que, era explicado, tinha que obedecer à vontade do soberano: era ele que decidia, era ele que tomava as decisões. Guerra ou paz, tudo passava pela vontade dum homem e da corte dele.

Lógico, portanto, ver a Democracia como um dos maiores resultados obtidos pela Humanidade.

É assim que começa, desde a tenra idade, uma lavagem cerebral que tem como objectivo criar o perfeito Homem Democrático.

O Homem Democrático entende a Democracia como algo de monolítico: não há “várias democracias”, há “A Democracia”, única e indivisível. Outra forma não é admissível, não é verdadeiramente democrática, portanto está errada e deve ser combatida.

O que pode ser mais enganoso e falso do que a ilusão de um regime democrático? Somente o portador insano de Democracia que devorar a verdade, os eventos, as outras pessoas e as coisas com uma mão sobre o coração e outra na espada.

A Democracia é uma super-potência que torna o Homem Democrático invulnerável às críticas, só pelo facto de ser democrático automaticamente é politicamente correcto, moralmente superior, humanamente melhor, legalmente inquestionável. É Democrático e não há espaço para dúvidas. Quem duvidar é antidemocrático e, como tal, erra.

É a arma secreta dos bons que ganham sempre porque estão, invariavelmente, do lado correcto: traçaram uma linha, ou melhor, uma curva (para poder incluir os Países não democráticos que dão sempre jeito por causa do petróleo, por exemplo, ou da droga) que separa o Bem do Mal. E ainda bem que existe esta separação, porque sem ela seria bem complicado distinguir o Bem do Mal: sem a curva seria fácil pensar nos Democráticos como representantes do Mal.

Mas a Democracia não é uma aspiração social, não é um ideal igualitário, não é uma utopia; a democracia está viva e é possível explodir em mil pedaços quando ela rebentar ou quando chegar apitando sob forma duma bala enriquecida com urânio empobrecido: a Democracia é a bomba inteligente que consegue encontrar-te até debaixo da terra, é o rancor capitalista da globalização que obriga o pequeno agricultor a deixar de trabalhar porque já não compensa; é  a missão humanitária que derruba a porta, entra na tua casa, mata os teus familiares por causa dum princípio superior e dos inevitáveis danos colaterais; a Democracia é a falsidade que não concede o tempo para explicar a tua razão; é o drone de Deus (In God We Trust), ou melhor, do Senhor que vive em Washington com pele preta e alma escura (ou pele branca e alma escura, depende da safra), é o sonho americano que todos temos obrigatoriamente que ter.

Lenine estava errado: a Democracia não é o invólucro da ditadura, a Democracia é a pior das ditaduras, a forma mais evoluída, o ponto mais alto que qualquer ditador ou elite com tiques ditatoriais pode ter.
A ditadura utiliza a força bruta para obrigar as massas, a Democracia não utiliza a força contra o próprio povo: a Democracia fala com o povo, acarinha-o, convence-o.

Constrói provas falsas, deforma a informação, deturpa a realidade para que o Homem Democrático possa dançar ao redor do massacre étnico inventado, dos maus tratos causados ​​pelos seus mesmos criminais, antes que inicie o bombardeio e que um novo regime democrático possa ser implementado. Aconteceu já muitas vezes, mas o truque funciona sempre: Timisoara, Belgrado, Tripoli, Damasco, a história repete-se duas, três ou quatro vezes como tragédia, como farsa, como brincadeira, e como velho hábito. Só depois, passados alguns anos, surge a verdade, afinal sim, era tudo falso, mas que importa? Há já outro País que deve ser democratizado, não há tempo para chorar o passado.

Qual a diferença entre as elites económico-políticas de hoje e os reis dos tempos idos?
O rito eleitoral, com o qual o Homem Democrático consegue sentir-se importante e envolvido nas grandes escolhas. No fundo, o Homem Democrático conhece a verdadeira importância das urnas, mas é uma mentira que acalma a consciência dele: “Eu? Eu votei bem, são os outros que não percebem”. A urna é a panaceia que reforça a pandemia democrática, que convence que sim, que é precisa mais e mais Democracia.

Os livros de História mentem. Não há uma Democracia, há várias Democracias possíveis. E a Democracia Representativa, a nossa Democracia, é a pior delas. Desresponsabilizada, fora de controle (mas não de todos os controles), o terreno ideal para a mentira e a manipulação.

A alternativa? A Democracia Directa.
É esta a solução ideal? Não, está fora de questão. Ainda não foi inventado o regime ideal, e provavelmente nem existe. Ou, talvez, existe mas fica bem escondido em nós.
Todavia a Democracia Directa representa um passo em frente.
E, nestes tempos escuros, já seria algo. 
 

É este, meus amigos,
um jogo de bandidos
chamado de democracia
E.L. Masters, New Spoon River Anthology
Ipse dixit.