DPTS

Às vezes encontro um artigo triste e começo a rir.
“Coitadinho”, pensarão os Leitores, “mas já dava sinais de cansaço…”.

Nada disso. É que são presentadas como “novidades” coisas antigas como o mundo. Vou fazer um exemplo, baseado numa notícia que chega dos Estados Unidos.

DPTS

400 mil veteranos de guerra americanos sofrem de problemas psicológicos. O nome científico usado em psiquiatria é stress pós-traumático (DPTS), que é o conjunto de fortes sofrimentos psíquicos como resultado dum evento traumático ou violento, definido ainda como “neurose de guerra” sendo frequentemente encontrado em militares envolvidos em situações particularmente dramática e/ou violentas.

Os principais sintomas observados nos pacientes são a insónia, a ansiedade, a tensão e a agressão, muitas vezes os pesadelos, mas também frequentes os flashbacks de eventos traumáticos vividos em primeira pessoa e o numbing, um estado de confusão mental e tonturas.

A maioria das vítimas do DPTS é afectada no curto prazo, mas, de acordo com estudos recentes, um terço dos casos torna-se crónico, embora ainda seja difícil fazer uma estimativa precisa do número de veteranos afectados. Segundo a Veterans Administration, uma percentual que varia de 11 a 20 por cento dos 2,3 milhões de soldados empregues no Iraque e no Afeganistão sofreria de DPTS.
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Depois há os altos custos de tratamento desta doença que, segundo estimativas do Budget Office do Congresso dos EUA, seria de cerca 8.300 Dólares por paciente já durante o primeiro ano; e é precisamente por isso que entre 2011 e o começo de 2012 o exército dos EUA lançou uma revisão de todos os casos de DPTS na sequência de queixas por parte de soldados que temiam ter sofrido alterações do diagnóstico. Esses temores foram confirmados em muitos casos porque alguns diagnóstico de DPTS (cerca de 300) tinham mudado apesar de estarem correctos. O diagnostico constitui o primeiro passo para determinar o montante doa benefícios aos quais o militar tem direito.

Depois há também outro tipo de consequências: vários incidentes, como na base de Lewis McChord onde, além dos suicídios, era possível encontrar a base do sargento Robert Bales, o militar que no passado Março matou 16 civis afegãos, e de quatro outros soldados que em 2010 tinham matado outros civis.

Além da DPTS

Até aqui a notícia. E eu rio. Porquê? Porque não é uma “notícia”, é uma idiotice. Nomeadamente um conjunto de idiotice.

Explico: pegamos num grupo de rapazes acostumados aos hamburguers do McDonald’s com anexo copo de Coca-Cola, enviamos estes rapazes no meio duma batalha, com balas que voam, bombas que explodem, camaradas que morrem ou perdem pernas e braços; depois, surpresa das surpresa, descobrimos que estes rapazes ficam afectados psicologicamente.
Porquê será? Mistério.

Então temos que procurar uma doença: e para boa sorte temos a DPTS, uma patologia que (olhem só) parece ter existido também no passado mas que foi analisada com cuidado só a partir da Guerra do Vietname.

Depois os sintomas. “Sintomas”? Mas quais sintomas pode ter uma pessoa que foi atirada para o meio do inferno, num dos pontos mais baixos atingidos pela raça humana? “Ansiedade, pesadelos, flashbacks“. Quem diria. E entre os militares, claro que alguém parte pela tangente e começa a matar tudo e todos, inclusive os civis do Afeganistão (sempre sortudos estes).

Moral: quem vai para a guerra arrisca voltar (se voltar) ligeiramente afectado. Se o Leitor pensava alistar-se para um pouco de relax, melhor rever os planos.

Cereja no topo do bolo: o soldado afectado merece alguns benefícios económicos (como se o dinheiro pudesse devolver a antiga visão da vida), mas o Ministério tenta poupar uns trocos então os diagnósticos são alterados porque, claro está, individuar a DPTS não é coisa fácil. Será que o homem ficou pasmado com aquilo que viu o será um pouco de gripe?

A nova guerra

O que preocupa mais em tudo isso, e aqui já não há espaço nem para os sorrisos, é a forma como a guerra é encarada.

Em primeiro lugar: todos sabemos que a guerra é má, nem seria preciso falar do assunto. No máximo daria para dizer “a guerra é má”, ponto final. Mas não é assim que acaba a coisa.

Há uma intervenção científica que rotula as lógicas consequências da batalha; há os termos “stress”, “trauma”, “diagnóstico”. A palavra “horror”, a única que pode descrever a guerra, é substituída por um conjunto de sintomas, por um acrónimo. A guerra é seccionada, cada parte é analisada e rotulada: assim torna-se mais científica, mais “familiar”, pois a “nossa” ciência trabalha para resolver estes aspectos também.

O soldado não é um ser humano atirado para o inferno com a função de matar: é um “operador de Paz” que espalha democracia e que no regresso pode ser afectado por uma patologia. Esta patologia é conhecida e tem tratamento, pelo menos na maioria dos casos. Tudo pode ser resolvido com um cheque e uns comprimidos. A guerra está totalmente controlada, já assusta menos.

Desta forma é mais simples difundir a ideia da guerra má, sem dúvida, mas afinal nem tanto má e imprevisível. E, sobretudo, um mal “necessário” que todavia tem amplas margens de controle.

Assim torna-se mais fácil encontrar rapazes prontos para a batalha. É só seguir estes jovens de classe baixa, na maior parte das vezes de origem africana o latina,e espera-lo à saída do centro comercial. É só enviar dois soldados, de bom aspecto, com uns folhetos que resume as vantagens mais a descrição de todas as coisas boas que acontecem a quem for soldado: o fascínio da farda, visitar novos lugares, o dinheiro, tornar.se homem.

É desta forma que são encontrados voluntários, em caso de dúvida é só fazer umas pesquisas na internet, não faltam vídeos.

E para aqueles que continuam a ter dúvidas eis os filmes que glorificam os heróis dos campos de batalhas contra inimigos imaginários mas com traços bem conhecidos. E, sobretudo, eis os videojogos que propõem guerras onde ninguém morre para sempre, é só carregar no retry após o game over. São os videojogos dos quais os pais nem gostam, mas que permitem porque pelo menos o filho fica entretido e não perturba: na ilusão de que uma criança possa operar uma distinção definitiva entre realidade e virtual e na certeza de que certas coisas ficam limitadas à PlayStation ou à consola Nintendo, sem deixar rastos.

Seria um erro pensar que as crianças não sejam capazes de distinguir entre virtual e real, não é isso que está em causa. O que está em causa é a mensagem que rasteja, penetra na mente e aí fica, à espera de ser reactivada: com um novo videogame ou com a ideia duma guerra portadora de paz.

É isso que preocupa, até uma pessoa que, como eu, nem pacifista é.

Ipse dixit.

9 Replies to “DPTS”

  1. "é pá, mas nós só temos exércitos porque há guerras", dizem uns

    não, só há guerras porque existem exércitos

    e pormenor interessante: o jogo BATTLEFIELD 3 desenrola-se em cenários urbanos atuais, com soldados que têm um capacete com um desenho de um triângulo com um olho dentro subtilmente colocado no lugar da testa

  2. Não só em games está esse desenho do triangulo com o tal olho, isso já virou moda. Está muito presente no design gráfico, na maioria das artes deste meio, virou quase um ícone. Está muito presente também em revistas de moda, tatuagens, filmes e muito mais. Ta quase no nível cliché.

    Esta simbologia está cada dia mais espalhada e banalizada, aposto que muita gente usa e nem sabe o real significado disto.

  3. Abordas-te um excelente tema Max
    Em Portugal este stress pós-traumático devido á guerra existe muito com os militares que estiveram em África durante a guerra (de 61 a 74), e muitos deles sofrem destes problemas que salientas-te.
    Á cerca de 2 anos tive oportunidade de assistir a uma apresentação sobre este tema na escola secundária onde andava com a presença de 3 veteranos que estiverem em Angola e Timor-Leste salvo erro.
    Excelentes seres humanos que nos contaram histórias não só tristes como histórias de amizades incriveis.
    No final perguntei-me a mim mesmo se por vezes a conversa entre antigos combatentes e ou pequenos debates como o que ocorreu naquele pequeno anfiteatro não serão melhores que todos os medicamentos que existem para combater estes problemas.

    Deixa-me só no final sugerir 2 séries que abordam muito bem em certos aspectos estes problemas do stress pós-traumático para quem estiver interessado. "Band of Brothers" (2001) e "The Pacific" (2010), um conta a história dos paraquedistas e outras dos fuzileiros norte-americanos respectivamente na segunda guerra mundial
    Abraços

  4. Olá Max: taí um tipo pelo qual não nutro o menor respeito, o chamado soldado norte-americano, que na maioria dos casos, é um mercenário que está de olho no green card, um tipo atoa que vende sua força de trabalho para o mais vergonhoso dos serviços na guerra terceirizada, um estúpido patriotinha que se esconde no último refúgio dos canalhas ou um perfeito idiota made in america, que se disfarça de homem dentro de um uniforme, vergando o corpo para frente com uma metralhadora que lhe satisfaz o libido,num ritual que antecipa a morte de outros, porque provavelmente seja pouco competente nos rituais que compartilham vitalidade,afeto e prazer.
    Não estranho que se suicidem,adoeçam, sejam acometidos das tais DPTS, quando voltam para casa aos pedaços, rebentados por gente desgraçada, que ao contrário do que lhes disseram,têm coragem para, sem uniforme, defender-se dos "todo poderosos" com pesadas carcaças de metal. Não estranho, porque quando voltavam do Vietname, como eu vi, faz muitos anos, quando lá morei um tempo, em geral suas esposas os abandonaram, porque ao contrário do que a "família" imaginava, o lucro financeiro é pequeno ou ausente, e a maioria das sociedades matrimoniais naquela sociedade insana se constrói e se desfaz em função das conveniências/desvantagens econômicas.Então, o governo para evitar talvez suicídios em massa, mantém um programa "social" de relacionamentos para veteranos, onde "assistentes sociais" recebem uma vantagem salarial caso se tornem companheiras estáveis desses farrapos humanos. Desculpem, mas esse é um assunto no qual a minha indignação aparece de forma avassaladora! Abraços

  5. Apenas os soldados americanos são criticados? Por acaso são só os americanos que fazem coisas ruins?

    Estão muito farto de ver sempre a mesma coisa, só falam da America, America, America, como se fossem os únicos culpados de tudo. Isso já encheu o saco, por favor.

  6. Olá Anónimo: da minha parte, referi-me ao soldado americano porque é dele que fala o post, e porque procuro comentar especialmente quando o assunto está vinculado a alguma experiência vivida por mim.
    De qualquer forma, concordo que soldado é soldado em qualquer lugar, tempo ou circunstância. Abraços

  7. genivaldo magalhaes dos santos disse:
    15/03/14

    Eu acho que a gente não tem poder de limitar as pessoas antes de seus feitos, ALbama e outros presidentes americanos já demonstraram isso, sei que tem muitas raposas se vestindo de ovelhas, mas acho que a gente tem que desarmar um pouco
    nossa visão de comparar e achar que pessoas com boas idéias são geralmente malignas. Prefiro esperar e ver o que existe de verdade nessa presente tecnologia, ser humano nenhum tem direito de proibir avanço tecnológico para humanidade. Por que as vezes as pessoas não tem cultura para entender o que significa ciência. Não esqueçam que no cristianismo a igreja perseguiam as pessoas
    que tinham idéias inovadoras, que a terra era o centro do universo tinha que ser o tabu da igreja quem
    dissese ao contrário era considerado bruxo, vamos ter conhecimento das coisas, naõ esqueçam que os
    donos do capitalismo no mundo não querem mudança eles estão acostumado a ganhar dinheiro com petróleo e outros produtos com escravidão de muitas nações, vamos botar a mão no coração e pensar.Obrigado

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