O pico da água e o mercado

Comecemos com as boas notícias: as maçãs já não ficam acastanhadas.
O nome é Artic Apple e mesmo que cortada não muda de cor: fica sempre fresquinha e agradável. Maravilhas da engenharia genética: podemos pegar numa maçã que tinha sido cortada pela avó antes desta ser enterrada e que, mesmo podre, mantém o aspecto apetitoso. A maçã entendo, não a avó.
São coisas bonitas.

Depois houve um atentado na Bulgária: explodiu um autocarro cheio de israelitas, seis dos quais morreram. Ainda a fumaça pairava no ar e já o primeiro ministro de israel culpava o Irão. Nem uma investigação, nem um pedaço de prova, nada: israel não precisa, já sabe. Até poucos meses atrás teria sido normal acusar Al-Qaeda (alguém lembra? Bin Laden, o Afeganistão?), agora não: agora só pode ser o Irão, israel não se deixa enganar. Esta chama-se eficiência.

E outro atentado aconteceu na Síria: morreram algumas personalidades de topo do governo de Assad. E aqui é preciso reconhecer as capacidades proféticas da simpática Hillary Clinton que no princípio deste mês tinha previsto “ataques devastadores” na Síria. As coisas que esta mulher consegue prever, mas como faz? Mistério…

Acabamos a volta ao mundo (por assim dizer) na Líbia, onde houve eleições. Um triunfo, segundo os media, 90% de votantes. Uma desolação, segundo outros, 10%. Onde fica a verdade? Bom, em primeiro lugar a verdade fica aqui: apenas 50% dos Líbios tinham direito de voto. Porquê? Porque sim, a Líbia agora é uma democracia, por isso basta com perguntas estúpidas.
A seguir, se alguém “mastigar” um pouco de Inglês pode aproveitar e dar uma voltinha no Facebook: aí encontrará muitas páginas de Líbios que descrevem o ameno clima eleitoral vivido no País: um candidato morto, abatido no helicóptero, edifícios eleitorais assaltados, roubos, choques em Bengazi, prisões, até um eleitor morto pelas forças de segurança. Numa palavra: democracia. Não admira que a (grande) maioria tenha preferido ficar em casa…

Mas o tema do dia é outro: a água.

Os filantropos da água

Poucos dias atrás, o Huffington Post, o famoso blog americano (um dos mais populares do mundo), publicou um longo artigo sobre Peter Brabeck e a sua cruzada mundial em favor da água.

Peter Brabeck, lembramos, é o simpático presidente da Nestlé, maior indústria alimentícia do mundo e arredores, multinacional de bebidas e comida e que conta entre os seus produtos pelo menos 26 diferentes marcas de água engarrafada.

A partir de 2008, o simpático Brabeck ficou na cabeça dum grupo de filantropos (e preocupe-se o Leitor ao encontrar este termo, sempre!) que compõem o Water Resources Group (WRG), uma organização que tem o objectivo declarado de resolver as questões relacionadas com a água. “Resolver” por assim dizer.
O WRG é financiado pelo Banco Mundial (outra cambada de filantropos…) através da agência International Finance Corporation (IFC), que já injectou 1,5 biliões de Dólares nos cofres da organização. Em paralelo, a IFC também financia os projectos de água realizados por algumas empresas multinacionais, incluindo a mesma Nestlé, a Coca-Cola e Veolia.

Quando um grupo de “filantropos” e umas multinacionais decidem resolver uma questão delicada e sensível, é o caso de ficar preocupados. Ficar seriamente preocupados. E este caso não é uma excepção.
Na verdade o “problema” da água é o “problema da propriedade” da água, pois é disso que estamos a falar.

Já no passado Maio, o simpático Brabeck tinha sugerido a criação duma Bolsa da Água para resolver a polémica entre os agricultores do Canadá (Estado de Alberta) e as empresas petrolíferas: a água deve ser utilizada pelos agricultores ou para extrair petróleo? Tornamos a água paga e o problema fica resolvido.

A ideia da Bolsa da Água não vingou (por enquanto), mas Brabeck não recua. Pelo contrário, avança com novas e maravilhosas ideias, sempre muito à frente.

Diz Brabeck:

Existem basicamente dois pontos de vista sobre a água: um é aquele das ONGs, que eu chamaria de extremo, e que deseja que o acesso ao bem seja nacionalizado; em outras palavras, todos os seres humanos deveriam ter acesso ao bem, a água. Uma solução extrema, de facto.
A outra visão indica a água como uma commodity (um bem) e, como tal, deve ter um valor de mercado. É preferível, na minha opinião, atribuir um valor a uma commodity, estaremos todos mais conscientes do facto de que ela custa. Então, vamos tomar as medidas adequadas para as franjas da população que não conseguem ter acesso.

A entrevista poderia tranquilamente acabar aqui: Brabeck deveria ser preso e enviado numa ilha deserta no meio do oceano, possivelmente rodeado de tubarões, com apenas uma fonte natural de água. Paga e sem a possibilidade de ganhar um cêntimo.

Mas vamos em frente:

Nunca entendi porque se eu colocar açúcar na água sou um homem bom, se eu vender água pura sou um homem mau.

O sociopata Brabeck fala aqui da diferença entre refrigerantes e água e parte do princípio que vender refrigerantes seja visto como algo positivo. O que é curioso, sem dúvida, e demonstra o total afastamento da realidade do sujeito.
  
Não contente, diz estar satisfeito (na verdade os termos são “orgulhoso e feliz”) por cada garrafa de qualquer bebida que toma o lugar duma garrafa de água, especialmente no caso das crianças. É o sintoma definitivo, não precisamos de mais provas: o chefe da Nestlé é uma pessoa doente, muito doente e socialmente perigosa.
É urgente encontrar a tal ilha.

Mas quais são os argumentos principais deste demente? Porque deve haver alguns argumentos para apoiar as declarações. E os argumentos existem.

O primeiro é o seguinte: a escassez do elemento.
Brabeck insiste no facto de que a água é um elemento que está a esgotar-se rapidamente. Adverte que “um terço da população mundial terá que lidar com a ausência de água ao longo dos próximos 15-20 anos”. Numa outra entrevista, à margem do World Water Forum, afirma que “vai acabar muito antes a água de que o  petróleo”.

O segundo argumento é o mercado como única solução. Dado que a água vai acabar cedo (afirma ele), é urgente que a água seja gerida de forma responsável e com certas regras, isso para evitar guerras e anarquia total em tempos de escassez. E qual melhor maneira de equilibrar a oferta e a procura? O mercado, óbvio.

Brabeck enriquece o raciocínio com muitos exemplos, como o petróleo:

Como o petróleo tem um preço pré-fixado, tem valor, as pessoas são incentivadas a investir em alternativas. Mas dado que não há incentivo económico na área do consumo de água, como no sector da agricultura, não são feitos investimentos.

O facto da água não estar geralmente associada à ideia de “valor”, então, representa o maior obstáculo à sua utilização consciente:

Então, a situação da água fica cada vez pior. Se não dermos valor à água, tais investimentos não serão feitos porque não é de interesse de ninguém investir, porque não há um retorno económico. Se o valor da água for igual a zero, não produzirá qualquer investimento.

Não tendo ninguém por perto que possa travá-lo, Brabeck continua o delírio:

A aqueles que emocionalmente afirmam que a água não deve ter nenhum preço porque é um direito humano, respondo que naqueles países onde não houver investimentos suficientes em infra-estruturas, aqueles países pobres são os que pagam mais pela água. […] Uma pessoa rica em New York paga cerca de 10-15 por cento do preço de um metro cúbico de água em comparação com os mais pobres do Bangladesh ou em algumas zonas da Índia. E isso é uma injustiça. Eu não acho que é um direito humano encher a minha piscina, lavar o meu carro, regar o campo de golfe ou até mesmo regar o jardim. Eu não acho que isso seja um direito humano.

O pico da água

Resumindo: Brabeck chega à conclusão de que a gestão deixada ao mercado proporcionaria benefícios tanto económicos como uma mais justa, equitativa e consciente utilização do recurso.

Atenção, pois os loucos mais perigosos não são aqueles que circulam com o chapéu de Napoleão na cabeça, são os que parecem pessoas normais. E Brabeck faz parte da segunda categoria. Vamos ver porquê.

A água está a acabar? Para fazer uma afirmação destas são precisas provas. E provas não há.
Se aceitarmos a ideia do aquecimento global (assunto já por si polémico) temos indicadores que apontam para esta direcção. Mas é preciso não confundir o conceito de desertificação com a ideia de escassez de água: há lugares no mundo onde a desertificação avança, mas isso não significa necessariamente que o total da água no nosso planeta esteja a diminuir.

Não sei porquê, mas este “pico da água” faz lembrar muito outro pico, aquele do petróleo. E ambos têm razão de existir: uma razão económica que apresenta o fantasma da escassez como motivo para a privatização e/ou um regime de oligarquia na exploração e distribuição do recurso.
A própria definição de economia, nas palavras do economista francês Raymond Barre, quer que esta seja “a ciência da gestão de recursos escassos”. Se um recurso não for escasso, se houver para todos, não há nenhum motivo pelo qual seja gerido com mecanismos económicos: quem iria comprar o ar?

Portanto a ideia de privatizar a água (ou aplicar um preço de mercado) por causa da escassez não tem bases.

Vamos ver a outra argumentação.
A água está a ser mal utilizada/distribuída? Sim, é inegável: há necessidade de uma gestão mais equitativa do recurso. Mas a melhor das soluções é o mercado? Na retórica dos “filantropos”, o mercado seria a única maneira de garantir uma distribuição mais justa com uns preços justos.

Mas é cada vez mais claro que o mercado, longe de aplicar a força de nivelamento teorizada, aumenta as disparidades sociais e económicas, reforça em negativo as situações mais difíceis e melhora as que já gozam de condições positivas. São tantas as diferenças geradas pela economia de mercado que, se um dia a água faltasse de verdade e o seu preço subisse (é isso que acontece quando faltar um recurso) o problema não seria lavar o carro ou regar o campo de golfe: seria sobreviver e, mais uma vez, os mais ricos teriam bem mais possibilidades.

Faça um favor Brabeck: limite-se à venda de refrigerantes para tornar as crianças pequenos potes, já são estragos suficientes, e deixe ficar a água como está. E, nos tempos livres, que escolha a ilha.

Ipse dixit.

Fontes: TRT, Il Cambiamento,
Vídeos (entrevista de Peter Brabeck, em Inglês): Peter Brabeck Water Crisis, Peter Brabeck, président de Nestlé, A Conversation with Peter Brabeck-Letmathe

5 Replies to “O pico da água e o mercado”

  1. Gostei particularmente deste post.

    A minha mente de paranóica vê o controlo da água pela economia de mercado nos moldes actuais como a machadada final para controlar as pessoas.

    Perdes muito mais qualidade de vida quando não há água do que quando não há luz.

    Triste é a quantidade de gente que concorda com este senhor e acredita nele.

    O que dizer? Vamos todos acreditar que realmente depois inserida no mercado existiria justiça… por exemplo, a água seria taxada conforme a utilização? Logo encher a piscina e fazer refrigerantes custa mais do que água para beber, cozinhar e para a higiene?

    Não chega o que vão ganhar à conta da poluição da água e do correspondente tratamento?

    Pico da água ou poluição da água?
    Pico da água ou monopolização da água?

    Privatização de tudo já é mau. Em países com a dimensão de Portugal, e sem qualquer regulamentação ou valor de referência é o fim.

    No meio disto, o que é afinal poluir e o que é como é que se altera o clima e como é que se acaba com um recurso como a água?

    Um abraço
    Rita M.

  2. "Eu não acho que é um direito humano encher a minha piscina, lavar o meu carro, regar o campo de golfe ou até mesmo regar o jardim. Eu não acho que isso é um direito humano."

    COMO ASSIM NÃO É UM DIREITO?
    Se eu quiser e bem entender posso fazer isso, pois pago impostos e isso inclui o tratamento de água para poder viver do jeito que eu bem entender.

    "vai acabar muito antes a água de que o petróleo".

    COMO VAI ACABAR??? SE O PLANETA É 90% ÁGUA?? Além das bacias subterrâneas de água doce que nem foram exploradas, já temos sim a tecnologia para transformar a água salgada em água doce potável e bebível! Claro que ainda custa caro, mas aos poucos se tornará mais acessível. Essa coisa de que a água vai acabar é ridículo e hoje só não há uma distribuição correta desse bem porque a elite assim deseja.

    SOCIOPATA É POUCO!
    É um completo idiota!

    Exaramente a mesma ladainha do aquecimento global que antigamente, nos anos 60 a 70, pra quem não lembra ou não viveu na época, tratavam como RESFRIAMENTO, que depois mudou e virou o efeito estufa e depois a camada de ozônio e depois o aquecimento global e agora as mudanças climáticas.

    Essas "melancias totalitárias" querem é mais controle sobre a população.

    Termino com um trecho de um pesquisador e doutor climatologista:

    A ONU achou um jeito de implementar seu governo global, e o mundo será gerido por painéis pseudocientíficos".

    A avaliação é do Dr. Ricardo Augusto Felício, pesquisador em Climatologia Antártica e Variabilidade Climática,
    que denuncia os novos planos dos eco-imperialistas e a insistência em mentiras como o "aquecimento global, o próximo passo é criar um painel para controle da água dos oceanos.

  3. Muita da água que empresas como a Nestlé usam é obtida de borla em furos. É só lucro. Depois vem este ladrão falar dos pobres do Bangladesh…

  4. Eu nao sei se deperdiçaria tempo a levar aquele psicopata para uma ilha. Era despacha-lo na hora e pronto.

    Mas afinal a agua tem dono? Num mundo de ovelhas mansas que nao servem para quase nada, tudo e possivel.

    Quanto ao resto, esta tudo dito.

    abraço
    Krowler

  5. Juro que quando colocas-te os comentários deste génio da Nestlé pensei que inventas-te as palavras dele só para gozar com os leitores Max, é que são sem duvida palavras assustadoramente deprimentes, vindo ainda por cima de alguém multimilionário.

    Nós temos águas para todos na maioria das regiões do mundo, e penso que o problema não é tanto o consumo excessivo mas a poluição que fazemos aos rios e aquiferos (ou lá como se escreve) subterrâneos.
    Em Portugal a poluição das casas e empresas que muitas vezes encontram nos rios e estuários o local para despejar tudo e o próprio uso excessivo de adubos agricolas coloca em risco várias zonas sensiveis (acredito que no Brasil seja o mesmo).

    Outro receio que tenho é esta eucaliptomania que Portugal tem, apesar de ser meio koala sei muito bem que os eucaliptos para além de darem cabo de outras plantas á sua volta sugam as águas subterrâneas a um ritmo louco e daqui a uns anos vamos ter problemas.

    Uma sugestão sobre a Nestlé Max, tens de procurar um documentário sobre o uso de trabalho infantil em África em produções de cacau que depois vendem-no a empresas como a Nestlé, abraços

Obrigado por participar na discussão!

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