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Os Estados Unidos e a África

O quê? Outro artigo acerca da África? É para chorar acerca dos pobres da Nigéria, dos desgraçados do Darfur ou quê? E fala-se de Estados Unidos também? Olha só que originalidade…

Calma Leitor, calma: a realidade é um pouco mais complexa.
O facto é que na África, tal como no Médio Oriente, há uma guerra em curso. Muitas vezes é uma guerra silenciosa mas nem por isso menos importante. Enquanto os media vendem a Síria nas primeiras páginas, pouco ou até mesmo nada é dito acerca da operações que são desenvolvidas no vizinho continente.

Curioso: há mais mortos na África do que na Síria; há mais forças em campo; há as duas maiores potências mundiais (EUA e China) directamente empenhadas; há biliões de Dólares gastos; há recursos naturais em jogo; mas é só o silêncio, pois todas as atenções são canalizadas para a Síria. Isso significa algo.

Embora assuma a forma duma coordenação de segurança com o pretexto de “combater o terrorismo”, na realidade a penetração americana na África vai muito além disso: é uma estratégia imperial que visa controlar os recursos naturais e as áreas geo-estratégicamente importantes.

No passado 14 de Outubro, o simpático Barack Obama (o Prémio Nobel da Paz, caso o Leitor tivesse esquecido) afirmava:

Autorizei a implantação de um pequeno número de forças americanas na África Central, para prestar assistência às forças regionais que visam eliminar Joseph Kony do campo de batalha […] Acredito que a implantação dessas forças armadas para reforçar a segurança nacional dos EUA Americana garante os nossos interesses estratégicos e apoia a nossa política externa.

Era este o envio de 100 soldados norte-americanos em Uganda, uma decisão que faz parte do plano anunciado em 2009 e que tem como objetivo “desarmar” a milícia do Exército do Senhor (LRA, Lord’s Resistence Army), pelo menos oficialmente.

Para justificar este polémico envio e reiterar a firme intenção de não arrastar o País em novas missões (os EUA já estão atolados no “cemitério dos impérios”, o Afeganistão, e também no Iraque a situação é pouco risonha), Obama afirmava fazer isso apenas para:

apoiar as forças regionais que combatem Joseph Kony e outros importantes líderes rebeldes do LRA envolvidos em assassinatos, estupros e apreensões de milhares de pessoas em África.

Comovente, sem dúvida. E mais:

As forças americanas, apesar de ser unidades de combate, estarão limitadas ao fornecimento de informação, aconselhamento e assistência às forças dos Países em causa, sem tomar parte na luta contra o LRA, a menos que seja absolutamente necessário ou por razões auto-defesa.

Bastante claro. Mas não é tudo: o governo de Washington também planeia enviar forças de combate nos próximos meses para o sul do Sudão, na Republica Central Africana e na República Democrática do Congo, com o “consentimento prévio dos Países de acolhimento em questão” (como se esses Países fossem capazes de tomar decisões soberanas e democráticas, recusando a “oferta” norte-americana).

Enquanto isso, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a Resolução 2016, marcou o fim da operação Unified Protector, definida pelo Secretário Geral da NATO Anders Fogh Rasmussen como o “histórico mandato das Nações Unidas para proteger o povo líbio” e uma “das mais bem sucedidas na história da Aliança Atlântica”. Teria sido lícito esperar um período de calma, por isso a imprensa americana definiu a atitude de Obama como “muito estranha” ou até mesmo “desconcertante”.

Na verdade não há nada de “estranho”:  há uma corrida entre os Americanos e os Chineses, com os primeiros decidido a esmagar a concorrência de Pequim no Continente Negro. E se analisarmos os métodos da política externa americana desde 1945, então não encontramos nada de “desconcertante”.
O caso do Vietname, por exemplo: quando a prioridade foi conter a influência chinesa e “proteger” a Indonésia, que o presidente Nixon tinha definido como “a mais rica reserva de recursos naturais na região”, o Vietname pagou com três milhões de mortes, a destruição e a poluição do seu território para garantir que os EUA materializassem os próprios objectivos estratégicos.

A invasão americana de outros Países não foi excepção a esta regra, a única diferença é que agora são utilizados novos termos como “auto-defesa” ou “intervenção humanitária”, mas a táctica é a mesma utilizada desde o final da Segunda Guerra Mundial: é este o fio vermelho que liga os rios de sangue da América Latina, a guerra infinita no Afeganistão, a destruição do Iraque e a venda da Líbia às multinacionais do petróleo.

Obama diz que “a missão humanitária das nossas forças” é apoiar o governo do Uganda para derrotar as forças do LRA que “massacram, estupram e sequestram dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças na República Central Africana”. Sem dúvida, mas estas atrocidades cometidas pelo LRA não são menos ferozes daqueles cometidas pelos Estados Unidos. A única diferença é que estas últimas não encontram tamanho eco nos media ocidentais: alguém lembra do banho de sangue após o assassinato de Patrice Lumumba, orquestrado pela CIA? O do golpe que levou ao poder o tirano Mobutu Sese Seko?

A hipocrisia do presidente dos EUA, no entanto, toca novos picos quando insiste em querer convencer que “a implantação das Forças Armadas dos Estados Unidos fortalece a segurança nacional e a política externa americana, e será um grande contributo para lutar contra o LRA”. O simpático Obama esquece de acrescentar que o LRA existe e opera desde 1987 com uma mobilização de 2 milhões de combatentes, entre os quais 60.000-100.000 soldados-crianças; 25 anos de vergonha sem que os Estados Unidos mexessem um dedo. Os Estados Unidos intervêm agora, quando as forças de Kony não superam as 400 unidades; e, segundo o presidente americano, é agora que Kony representa uma ameaça que não deixa sossegados os Estados Unidos. Curioso.

O facto é que a África, até a invasão da Líbia, tinha sido um “sucesso” para a China: onde os Americanos semeiam destruição e implementam bases militares, os Chineses constroem barragens, pontes e infra-estruturas. Atenção: em ambos os casos estamos perante um neo-colonialismo que tem os mesmos objectivos: pensar nos Chineses como “melhores” do que os Americanos seria profundamente ingénuo: só que as técnicas são diferentes e isso não pode ser negado.

É com estas técnicas que o China tornou a Líbia uma das suas maiores fontes de fornecimento de petróleo na China. Numa altura em que a NATO decidiu iniciar as operações militares na Líbia sob a bandeira da “intervenção humanitária”, a China foi forçada a evacuar mais de 30.000 trabalhadores, engenheiros e especialistas; cujos lugares serão agora tomados por aqueles que controlam a riqueza e os recursos e que irão dividir o bolo do “saque programado” definido como  “reconstrução”. As operações da Nato ou dos Estados Unidos devem ser lidas nesta óptica: o estrangulamento das tentativas de penetração africana por parte do “dragão” chinês.

O Departamento de Defesa dos Estados Unidos continua a procurar um País que possa acolher a sede do AfriCom (United States Africa Command), até agora sediado na cidade alemã de Stuttgart.
Embora os EUA aleguem que o AfriCom seja uma criação que se enquadra no âmbito dos esforços dos EUA para “trazer a paz e a segurança para os povos da África e promover os nossos objetivos comuns relacionados com o desenvolvimento, a saúde, a educação, a democracia e o crescimento económico” (nas palavras do Bush filho), os alvos reais que se escondem atrás da linguagem diplomática norte-americana, do “papel messiânico” da propagação da democracia e do pretexto das razões de segurança (terrorismo, pirataria, etc.), são na realidade a proteção dos muitos interesses geo-estratégicos do império:

  • a importações de petróleo (Líbia, por exemplo)
  • o controle das fontes de energia (Nigéria)
  • o controle das passagens marítimas de importância estratégica (Somália e Sudão)
  • a oposição a qualquer poder internacional que possa aspirar a competir com Washington (China).

Não admira, portanto, que a Africom goze dum orçamento que passou de 50 milhões de Dólares em 2007 para 57,5 em 2008 para atingir 310 milhões em 2009.

Um neo-colonialismo que sob a camada de protecção esconde o surgimento de novas guerras.

Ipse dixit.

Fontes: Medarab News, Michael T. Klare: Resource Wars: The New Landscape of Global Conflict (ISBN: 9780805055764)