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A conversão do FMI

Certas notícias preocupam, apesar de ser verdadeiras.
E se defendem os nossos mesmos pontos de vista, preocupam ainda mais.

Por exemplo.
Saiu um relatório que admite algo muito simples: demasiada finança prejudica a economia. Não é uma novidade, este blog defende o mesmo desde que apareceu. Então, qual é o problema?
O problema é que o relatório é do Fundo Monetário Internacional. Não é normal. É como se a Volkswagen afirmasse que andar de carro é perigoso.

Mas está tudo aí, no relatório Too Much Finance? (“Demasiada Finança?”).

O FMI está arrependido? Após ter defendido o modelo neoliberal durante anos, agora abraça a visão de S. Francisco de Assis? Entregará todos os bens aos pobres e viverá de esmolas? A dúvida fica.

No entanto, vamos observar estas 50 páginas (o FMI não tem o dom da síntese).

O estudo fica concentrado principalmente no crédito ao sector privado, o crédito concedido pelos bancos a pessoas físicas ou empresas e mostra que os Países onde o crédito ao sector privado tem sido excessivo são também aqueles que experimentaram as crises mais profundas.

E bravo o FMI: descobriu que endividar as pessoas e as empresas para poder depois ganhar com os juros pode ser negativo. Será por isso que os bancos islâmicos não admitem interesses?

Foram analisados ​​em detalhe os dados macroeconómicos de 64 Países entre os anos 1960 e 2010. Desde 2006, todos esses Países tinham uma dívida do sector privado que ultrapassava 50 % do PIB (o Produto Interno Bruto) e em 27 deles esta dívida atingia mais de 90 %, sempre do PIB; e em 17 destes mesmos Estados ultrapassava 113%. O recorde pertencia à Islândia, onde o crédito privado chegava a representar 260% do PIB (!!!).

Olhem só, em 2008 a Islândia foi o primeiro País a ser atingido pela crise desencadeada após os subprimes americanos. O FMI poderia também acrescentado que é também por causa disso que os Islandeses prenderam os directores e nacionalizaram os bancos, mas, verdade seja dita, não é isto que interessa agora.

Acerca da observações dos três estudiosos do FMI que estão na base do estudo há pouco a dizer: é evidente que criar uma bolha especulativa do crédito com a concessão de “empréstimos fáceis” prejudica a economia real no médio e longo prazo. Especialmente na ausência de leis que conectam o crédito à produção ou ao trabalho. E poderiam ser ditas duas palavrinhas acerca dos juros outra vez.

O problema não é este. O problema, como afirmado, é que tais coisas sejam ditas pelo FMI. Significa uma marcha atrás, a negação de anos duma determinada política económico-financeira.

A única explicação que encontro é que esta “conversão” seja parte duma estratégia que tem como fim último justificar as medidas de austeridade implementada na Zona Neuro. Pode parecer uma visão demasiado Euro-centrica, mas não podemos esquecer que na Europa está em jogo uma grande fatia dos futuros mercados dos Países mais “avançados”, não apenas do Velho Continente. E na mesma altura em que Angela Merkel é obrigada a fazer concessões (ela, a incansável defensora da austeridade dos outros) aos parceiros europeus, eis que surge este relatório do FMI.

Ok, será um mero acaso…mas o documento não afirma que a finança deixou há tempo de ser o ponto de encontro entre o dinheiro em excesso produzido na economia real e aqueles que precisam de fundo para iniciar uma actividade (sempre na economia real); nem afirma que hoje a finança não passa dum enorme poço que retira os fundos daqueles que realmente precisariam do crédito para as próprias atividades produtivas.

Se o relatório afirmasse coisas tão simples e evidentes como estas, então teria uma espessura diferente.

Mas o estudo sugere entre as linhas que a atual crise é principalmente devida ao excesso de crédito e, portanto, uma contracção do crédito (como pretendido pela União Europeia) é sinónimo de economia saudável. Não vai mais longe disso: não explica, por exemplo, que a mesma contracção do crédito leva automaticamente à falência de pequenas e médias empresas e, portanto, a uma cada vez maior concentração de riqueza em poucas mãos.

Eis o que preocupa: às vezes até mesmo as verdades mais óbvias podem tornar-se armas perigosas nas mãos do poder errado.

Ipse dixit.

Fontes: FMI: Too Much Finance? (ficheiro Pdf, inglês)