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Culpa nossa…e não só.

Nos Países ocidentais mais desenvolvidos este é o período do mea culpa.

Tudo o que foi feito e que ainda é feito representa uma culpa: olhar para o passado significa atormentar-se com remorsos, parece impossível encontrar uma civilização pior do que a nossa. E os povos que sofreram as nossas torturas confirmam: o nossa civilização foi (e ainda é) uma autêntica vergonha.

Há razões que explicam esta visão, mas não vamos falar disso nesta altura. Vamos, pelo contrário, falar dalguns destes aspectos. E um dia, quem sabe, iremos falar também do porque “temos” que recitar o mea culpa.

Um dos grandes males cuja responsabilidade parece ser exclusiva do mundo ocidental é o colonialismo. Isso não é verdade, mas como ninguém hoje perde tempo na leitura da História, a ideia passa sem problemas.

O que é o colonialismo? Basicamente pode ser descrito com três pontos:

  1. impor num País estrangeiro a própria civilização
  2. introdução dum conjunto de regras que favorecem a potência ocupante (do ponto de vista político, económico, etc.)
  3. discriminação baseada nos conceitos de raça e/ou de religião.

Dito assim, de facto, parece mesmo uma exclusiva das potências colonialistas europeias a partir do ano 1500, mais ou menos. Mas já sabem: um pouco de paciência, alguns bom livros de História, e eis que a verdade surge de forma um pouco diferente.
Isso, que fique claro, não iliba das culpas, mas ajuda a perceber que os Europeus não foram piores do que outros: simplesmente continuaram “tradições” antigas de séculos, radicadas até em lugares que hoje consideramos como “vítimas” do colonialismo do Velho Continente. Estamos perante males antigos, infelizmente ainda não eliminados.

O colonialismo do Império Egípcio, por exemplo, durou cinco século (séculos XVI – XI a.C.). Pois os Egípcios não passaram a vida a construir as Pirâmides: além disso, ficaram entretidos com a ocupação de outros Países, a imposição das próprias leis e, óbvio, o comércio de escravos.

Mesmo discurso pode ser feito no caso do Império Persa: três séculos de colonialismo (séc. VII – IV a.C.) ou do Império Romano (séc. I a.C. – IV d.C.). Um pouco mais longe encontramos os impérios Chinês, Mongol e, surpresa, os dos povos da América pré-colombiana.

Os povos da América pré-colombiana?!? Mesmo isso.
O facto destes impérios não terem conseguido expandir-se além duma certa dimensão não foi provocado pela falta de “apetite”: simplesmente havia limitações militares, económicas, geográficas ou ainda uma mistura delas. Parece, tudo somado, que um dos vícios danados do Homem seja mesmo este: reunir um exército (de soldados, religioso ou, melhor ainda, de ambos) e ocupar terras vizinhas.

O império colonial europeu, na altura do seu auge, tinha uma população que era 1,4 vezes maior do que a Europa. O Império Otomano (séc. XVIII) tinha uma população entre 2,5 e 3 vezes do que o povo da Turquia. No caso do Império Romano, a proporção era ainda maior.

Os escravos

Também um dos estigmas mais negativos da colonização europeia, o comércio dos escravos, merece algumas palavras. Já o termo anglo-saxónico para definir um escravo, slave, provem da palavra Slav, isso é, “eslavo”: e deveria sugerir alguma coisa. Mas vamos em frente.

Segundo os últimos dados disponíveis, o número de escravos que deixaram a África para alcançar as Américas pode ser quantificado em 9.5/10 milhões. E se juntarmos os escravos que morreram durante a viagem, o total fica na casa dos 11/11.5 milhões. Números assustadores, sem dúvida.

Mas o comércio dos escravos não foi uma exclusiva dos Europeus e nem foram este os primeiros ou os mais empenhados nesta actividade. A parti do século VII até o fim do XIX, o mundo muçulmano “raptou” entre 14 ou 15 milhões de pessoas da África subsariana, dos quais cerca de 8 milhões só entre os anos 1500 e 1890.

Pergunta: mas porque, se os Muçulmanos foram os grandes escravagistas da História, hoje não há tantos descendentes de escravos no mundo islâmico? Resposta: porque os escravos do mundo muçulmano eram regularmente castrados. E, além disso, tinham uma taxa de mortalidade muito elevada.

Na mesma altura havia também a figura do escravo da América pré-colombiana, nomeadamente o escravo azteca (o tlacotin); mas faltam até hoje dados para que seja possível quantificar nas correctas proporções o fenómeno.

Discurso parecido no caso da China. Sabe-se que na época da dinastia Shang (1766 a.C. – 1122 d.C.) cerca de 5% da população era composta por escravos; e há relatos de revoltas neste sentido ao longo dos séculos, mas os números são ainda incertos.
Uma breve nota acerca da China: apesar da escravidão ter sido oficialmente abolida em 1919, a prática de manter escravos continuou até 1949. Nos anos mais recentes, houve ainda alguns escândalos por causa de práticas escravagistas na China, nomeadamente em 2007 com o Shanxi Black Brick Kiln incident

Resumindo: entre europeus e muçulmanos, o número de escravos pode ser calculado na ordem do 25-26 milhões de indivíduos. E isso só considerando povos que conseguem apresentar dados: da escravidão em outras partes do mundo falta totalmente qualquer referência. A impressão é que o total de escravos ao longo da História pode alcançar valores realmente aterradores. Se mea culpa deve ser, o difícil é encontrar uma civilização que não tenha de recita-lo.

Mas ficando com os dados disponíveis, é interessante notar como as sociedade “mais escravagistas” foram aquelas que viram o nascimento e o maior desenvolvimento das duas principais religiões dos nossos dias.
Isso significará alguma coisa…

Ipse dixit.

Fontes: Wikipedia (versão inglesa), Bulletin du Département d’Histoire Économique (Universidade de Genebra, nº 20, 1989-90), Mito e Paradoxos da História Económica (Paul Bairoch, 2001)