Da saída do Euro e de outras banalidades – Parte II

Este e o dois milésimo post de Informação Incorrecta. Justo que seja dedicado a como sair do Euro.

Dado que a matéria é complicada, eis a opinião não de uma mas de doze especialistas: são eles Gabriel Colletis, Alain Cotta, Jean-Pierre Gérard, Jean-Luc Gréau, Roland Hureaux, Gérard Lafay, Philippe Murer, Laurent Pinsolle, Claude Rochet, Jacques Sapir, Philippe Villin, Jean-Claude Werrebrouck.
Falta só Leonardo, o décimo terceiro, mas nesta altura está a dormir.

Estas doze pessoas (na maior parte dos casos, economistas de primeiro plano como no caso de Jaques Sapir, director da Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais de Paris e chefe do Centro de Estudos da Industrialização) assinaram um documento cuja opinião central é que cedo ou tarde o Euro seja destinado a desaparecer numa explosão incontrolada. Portanto, melhor começar desde já a pensar na remoção controlada, para que a transição em direcção das moedas nacionais seja feita de forma ordenada e sem grandes traumas.
Faz sentido.

Problema: não existe uma normativa que explique como sair do Euro. Simplesmente nunca foi considerada esta hipótese, o Euro foi encarado desde o início como o único caminho possível na Europa, além do qual há só trevas, guerras, dragões e peste. No Euro é possível entrar mas não sair.
Como a areia movediça, mesma coisa.

O documento, publicado no Le Monde em Dezembro do ano passado, não é de fácil leitura, mas vamos simplificar o mais possível.

A causa real da crise do Euro é o aumento inexorável da dívida externa em metade dos Países da área. A necessidade de utilizar capitais estrangeiros mostra que a questão essencial é que os seus próprios recursos não foram utilizados o suficiente para desenvolver as capacidades produtivas dos Países em causa e torná-los competitivos.[…]

A maioria dos afectados são os Países menos competitivos, como a Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. Um segundo grupo inclui a Itália, onde a dívida externa líquida é de 27%, e França, onde 30% da dívida com o estrangeiro é principalmente devida a um acumulo de defluxos de investimento directo para o exterior; no caso da Finlândia e da Áustria, a dívida líquida continua a ser baixa, representando menos de 8% do PIB. Não só os outros Países Zona Euro não são afectados, mas até há créditos estrangeiros líquidos no caso dos Países Baixos, do Luxemburgo e, em particular, da Alemanha.

Nestas condições, a obstinação dos governantes para colapsar no impasse do Euro só pode levar a um agravamento geral da situação económica da Europa. Apesar dos nossos concorrentes dos EUA e da China terem interesse na sobrevivência da moeda única europeia, esta é destinada, mais cedo ou mais tarde, a uma explosão descontrolada. Portanto, para evitar este desastre, os signatários deste texto sugerem que inicie um diálogo entre os Países europeus a fim de alcançar a necessária remoção do Euro. Isto pode ser feito de acordo com as seguintes modalidades.

1. Em cada um dos Países serão recriadas as moedas nacionais [já gosto disso, ndt]. Isso acontecerá com a troca dum actual Euro com uma unidade da moeda nova. No caso das notas, será preciso um curto período de transição, durante o qual nas notas antigas do Euro (que passarão a ser emitidas pelos bancos centrais nacionais) será impresso um selo antes que seja impressa uma quantidade suficiente de novas notas tendo em vista a troca final. No caso das moedas, a troca pode ser feita muito mais rapidamente, uma vez que estas já têm uma face nacional (de facto, as moedas actuais do Euro têm um lado igual em todos o Continente e um personalizado a segunda do Estado emissor).

Até aqui tudo bem: os bancos centrais nacionais voltam a ser os únicos emissores das moedas nacionais, que substituem o Euro. Obviamente, dada a grande quantia de notas em circulação e o facto das notas do Euro serem iguais em todos os Países, será preciso um período de transição no qual podemos falar dum Euro “nacional”, isso é, emitido temporariamente em cada País de forma personalizada (com um selo).
Nesta altura o câmbio entre Euro e moedas nacionais será 1=1, isso é, um Euro em troca duma nova moeda nacional (por exemplo: um Euro em toca dum Escudo, no caso de Portugal).

Uma nota acerca dum possível erro técnico: o texto original fala de 30% da dívida estrangeira da França “principalmente devida a um acumulo de saídas de capitais de investimento directos para o exterior”. Dito assim quase parece um crédito…

2. Na data da saída do Euro, as taxas de câmbio entre as novas moedas nacionais serão determinadas por acordos mútuos, para restaurar as normais relações comerciais. Aqui é a única forma válida de resolver o problema principal, que é a dívida externa líquida. Será levado em conta o aumento dos preços em cada País, após a criação do Euro, e a situação do comércio exterior. As valorizações e as desvalorizações necessárias serão definidas tendo como base uma unidade de conta europeia, cujo valor será calculado como uma média ponderada das taxas de câmbio das moedas nacionais, como aconteceu com o velho ECU.

Ok, aqui é preciso esclarecer alguns pontos.
A proposta dos especialistas é fazer uma espécie de rewind, olhar para antes da introdução do Euro, para estabelecer quais devem ser as reais taxas de câmbio entre as novas moedas nacionais. O Euro, de facto, uniformizou o panorama monetário dos vários Países com uma consequência desastrosa: a moeda já não é o espelho da própria economia, é apenas a expressão dos “desejos” de Bruxelas, por assim dizer.

O Euro, que é moeda forte, não “cabe” em Portugal, País com uma economia fraca; mas, paradoxalmente, nem cabe na Alemanha, onde o antigo Marco poderia gozar duma valorização ainda maior.
Isso sem falar da possibilidade de valorizar a própria moeda nacional para favorecer a economia e de outras questões ainda.

Obviamente não é possível apenas olhar para trás: os Países de hoje já não são os Países de 20 ou 30 anos atrás. A dívida externa, por exemplo, em alguns Países cresceu de forma vertiginosa, e este é um outro dado que não pode ser ignorado. Será assim identifica um valor de referência (a tal “unidade de conta”) dado da média dos câmbios e utilizado para estabelecer os câmbios finais.

Pode parecer coisa complicada, mas na verdade já tinha sido feito na altura da introdução do ECU (o antecessor do Euro), que era mesmo isso: uma unidade de conto, criada para facilitar os relacionamentos entre as várias moedas.

3. No interior de cada País permanecerão inalterados, na data da saída do Euro, os preços dos bens e dos serviços, bem como os valores das contas bancárias. O desaparecimento do Euro fará com que a dívida pública de cada Estado será convertida em moeda nacional, independentemente dos credores, excluindo aqueles que detêm créditos comerciais. Em contraste, as dívidas externas das empresas privadas, tal como os seus créditos comerciais com o exterior, serão convertidos para a unidade de conta europeia.
Embora esta solução promova Países fortes e discrimine os Países mais fracos, é a única solução realista para garantir a sustentabilidade dos contratos anteriores.

Acho ser tudo bastante claro. Esta pode não ser a solução ideal, mas é a “menos pior”.

4. Todos os governos irão declarar o fecho dos bancos ao longo dum período limitado. Os bancos fecharão temporariamente para determinar que os bancos estiverem em condição de trabalhar ​​e quais aquelas que deverão pedir ajuda ao banco central nacional. Durante este período as Bolsas também estarão suspensas. A solução estará baseada no princípio universal de que a garantia é fornecida pelos bancos centrais, que renunciam à independência e voltam aos estatutos dos anos 70. O Estado deve proteger os depositantes e, se necessário, tomar o controle do sistema bancário.

Boa noite. Este é o ponto mais complicado.
As instituições bancárias europeias vivem uma situação muito perturbada: a realidade é que nalguns casos estamos perante de mortos viventes, que sobrevivem apenas graças às aberrações do actual sistema. Em caso de regresso as moedas nacionais, o sistema mostraria as falhas e alguns bancos não poderiam continuar a operar sem o suporte do banco central (hoje é o Banco Central Europeu que desenvolve este papel).

Que fazer? Fechar os bancos durante um curto período no qual cada instituição faz as próprias contas para afinal dizer “Sim, posso trabalhar” ou “Estou falido como antes, só que antes conseguia esconder as falhas, agora já não, socorro”.

E aqui entra em jogo o banco central de cada País que tem de garantir os depósitos dos privados: mesmo que uma instituição bancária não tenha “perna para andar”, os erros dos bancos (e falamos só de erros, melhor assim…) não podem ser pagos pelos depositantes.

Mas aqui o documento dos especialistas vai além e põe uma implícita pergunta: devem ser todos os cidadãos dos Estados a pagar as contas resultantes dos erros dos bancos? Na verdade não há outra solução, mas o grupo sugere que haja uma espécie de troca: eu, Estado, ajudo os bancos (privados) mas obtenho de volta o banco central (que, com o desaparecimento do Banco Central Europeu tem agora um poder acrescentado). E mais: em caso de necessidade tomo o controle do sistema bancário nacional.

É justo e racional. Mas onde encontrar um banco disposto a passar sob o controle do Estado?

5. As taxas de câmbio nominais das moedas nacionais permanecerão fixas durante este período, com base nos acordos mutuamente determinados. Em seguida, haverá uma flutuação concertada no mercado, dentro dum intervalo de flutuação de 10%. Por conseguinte, poderia ser estudado um novo sistema monetário europeu, com o fim de estabilizar as taxas de câmbio reais.

Como afirmado na primeira parte, o fim do Euro e da actual União Europeia não significa que não possa surgir uma nova entidade, mesmo que seja baseada num conjunto de tratados pontuais. E mesmo que não surgisse, a Continente poderia igualmente criar um novo sistema monetário para a estabilização dos câmbios.
Atenção: “novo sistema monetário europeu” não significa “nova moeda única”. Significa um novo sistema que inclui todas as várias moedas nacionais. Seria também uma forma de protecção.

[..] No futuro, acreditamos que não será possível simplesmente ignorar os problemas que ficaram ocultados pela crise do Euro, em particular a criação privada de dinheiro e a resultante deriva dos sistemas bancários globais, uma consequência da abolição da Lei Glass-Steagall.

A Lei Glass-Steagall, aprovada nos Estados Unidos em 1933 a Grande Depressão e abolida em 1999, separava os bancos de depósitos dos bancos de investimento.

“Que os bancos façam os bancos”, era o lema.
Hoje já não é assim. O fim do Euro poderia significar voltar a ter “bancos que façam os bancos” e não jogadores de poker..

Ipse dixit.

Relacionados: Da saída do Euro e de outras banalidades – Parte I

Fontes: Contre Info, Wikipedia (versão italiana), Wikipedia (versão francesa),Wikipedia (versão inglesa), Goofynomics

5 Replies to “Da saída do Euro e de outras banalidades – Parte II”

  1. O dinheiro a cargo dos vários bancos centrais e o estado a proteger os depositantes?

    Com dinheiro nacional em vez de dinheiro do banco central era mais fácil.

    Para quem só agora chegou a blogs como este, as duas coisas não são a mesma…

  2. Poderia explicar-me como é que pode ser no caso português passarmos de 1 euro para 1 escudo? Convém não esquecer que 1 euro valia 200,482 escudos, que haja uma desvalorização por exemplo de metade 1 euro= 100 escudos, agora 1 euro= 1 escudo, a não ser que este novo escudo valesse mais que o anterior e que tivesse maior poder cambial!

  3. E o caso de Portugal?

    Obviamente o câmbio 1 Escudo = 1 Euro é irreal. Mas o mesmo acontece com os outros Países: 1 Lira não pode ser 1 Euro, 1 Peseta não pode ser 1 Euro, etc.

    Então, como é?

    Em primeiro lugar: esta é uma medida temporária, que deseja apenas ganhar o tempo necessário à introdução das notas nacionais.

    Em segundo lugar: poucas linhas acima está explicado que as notas do Euro emitidas pelos vários Países não serão todas iguais, pois cada País terá o próprio selo. Isso significa que 1 Euro emitido em Lisboa não teria o mesmo valor dum Euro de Berlim.

    Não fiquem focalizados nesta medida que é temporária e pretende apenas resolver um problema de dinheiro do ponto de vista físico (e não do valor).

    No curto prazo (muito curto, em verdade) estes "Euros nacionais" seriam substituídos pelas notas (e moedas) locais.

    Quanto aos depositantes: é mesmo neste sentido que deveriam operar os Estados, utilizando a moeda local para salvaguardar as contas bancárias dos privados.

    Com uma recuperada autonomia ("soberania" é o termo correcto) monetária isso não seria tão complicado como de facto é agora.

    Abraçooooo!

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