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Da violência

Após ter publicado o vídeo das manifestações nas Astúrias, em Espanha, Miguel escreveu:

Não é este o caminho!
Violência apenas alimenta mais violência.
Existem outras alternativas, bem mais saudáveis e eficazes…

Obrigado Miguel, este é um comentário que fornece a ocasião para uma breve reflexão acerca da violência.
Acho que todos podemos concordar: a violência é má. Mas é sempre má? Haverá ocasiões nas quais pode ser considerado positivo utiliza-la? É possível falar de violência “boa”? Parece uma contradição, sem dúvida.

Então, se a violência for má, seria lícito esperar firmes condenações por parte dos nossos Países, em particular pelos governos democráticos, perante qualquer forma violenta. Mas assim não é.

Derrubar um ditador com a violência é considerado legítimo. Foi o caso da Líbia, onde até a Nato (uma organização oficialmente defensiva) interveio para derrubar Khadafi.
Na Síria temos os “rebeldes” que entram pela fronteira com o Iraque e utilizam até armas pesadas contra a população.
Os levantamentos no Egipto, na Tunísia, na Argélia foram todos apresentados como formas de revolta justificadas contra governos corruptos e opressores.
O (alegado, muito alegado…) homicídio de Osama Bin Laden foi festejado por milhares de pessoas em algumas capitais ocidentais.
E com isso lembramos apenas alguns acontecimentos recentes, sem incomodar os livros de História, onde exemplos neste sentido não faltam.

A sociedade, portanto, reconhece nos factos uma violência “boa”, justificada, cujo fim legitima os meios brutais. É óbvio, não falamos das Constituições ou das Leis, pois estes condenam o recurso à violência, em qualquer País. Mas o que interessa aqui não é a teoria, são os factos. E os factos são claros: a violência pode ser usada para alcançar o bem.

Curioso, não é? A teoria indica um percurso, a realidade o sentido oposto.

Já Séneca, o filosofo grego, perguntava: “É lícito matar o tirano?”.
Miguel, se bem entendi o comentário, responde “não”.
Eu, que sou uma pessoa pacifica mas não pacifista, tenho algumas dúvidas: se as democracias ocidentais (teoricamente as “mais evoluídas”) consideram positivamente as revoltas perante governos autoritários e injustos, qual deve ser a atitude dos cidadãos?

Porque a ideia segundo a qual Khadafi na Líbia era mau e Assad na Síria é mau, e por isso devem ser derrubados, é amplamente subjectiva. Khadafi não tinha ideia de ser mau e o mesmo pensavam os apoiantes dele. Então que significa ser “mau”? E quando é legítimo usar a força para combater esta “maldade”?

Do meu ponto de vista, por exemplo, a democracia representativa é “má”. É suficiente isso para começar a ser violento? Posso sair de casa e cuspir na cara da Presidente da Câmara?
Afinal estamos a falar de algo, a democracia representativa, que é apenas um disfarce utilizado por oligarquias, lobbies, partidos, neo-aristocracias para controlar e condicionar as escolhas dum povo. É esta a essência da democracia representativa, foi assim desde a sua primeira introdução.

Foi a democracia representativa a trair o pensamento liberal: foi ela que tornou possível a passagem dum Capitalismo saudável (leram bem) para um emaranhado político-económico que é hoje uma autentica aberração. Foi a democracia representativa que enterrou a ideia de “mérito” do indivíduo.

Não seria lícito usar a violência para derrubar um sistema que tornou os cidadãos em servos?

Miguel afirma existirem “outras alternativas, bem mais saudáveis e eficazes”. Concordo.
Há todavia alguns pormenores que devem ser considerados.

Imagine Miguel trabalhar numa mina, por exemplo nas Astúrias. A empresa está com dificuldades, pois o País está em crise. Numa dada altura, o governo decide pedir uma ajuda de alguns biliões de Euros, dinheiro que acaba todo nos cofres dos bancos. Ao mesmo tempo, o governo anuncia cortes no sector industrial, o que põe em risco 25.000 trabalhadores, a maioria do sector mineiro. E Miguel fica assim sem trabalho.

Será que Miguel fica um pouco aborrecido? E se a resposta for sim: não acha que nestas condições seja legítimo rebelar-se?
Eu acho que a resposta é: sim, os trabalhadores têm todo o direito de rebelar-se.
E a violência?

Temos que estabelecer o que for esta violência. Que, no meu ponto de vista, não é apenas um murro na cara. Há outros tipos de violência, se calhar ainda mais prejudiciais.

Ser despedido, não poder pagar a renda da casa ou os estudos dos filhos, é outro tipo de violência.
Ficar sem trabalho aos 50 anos, quando sabemos ser impossível encontrar um novo trabalho, e ouvir dizer que “é a crise” enquanto o governo subsidia os bancos privados (que da crise foram co-responsáveis), é uma forma de violência também.
Ver o próprio ordenado ou a própria reforma ser cortados, assim como os serviços essenciais, e observar ao mesmo tempo uma elite política que continua a desperdiçar o dinheiro de todos e favorecer os conhecidos do costume: esta também é violência.

Com uma diferença: a dor do murro passa após dois dias, uma vez desaparecido o inchaço; os problemas causados pela violência ficam e são arrastados ao longo de meses ou até anos. Pois o facto de ser menos espectacular não significa que doí menos.

Vivemos numa sociedade que transmite violência, estamos rodeados por ela. Na televisão, no cinema, nos outros media, nas atitudes arrogantes dum governo, nas missões humanitárias com metralhadoras e bombas.
Toda a nossa sociedade é fundada sobre a violência, aquela que utilizamos para depredar os povos mais pobres dos seus recursos. Adquirir um iPad feito com o trabalho dum desgraçado que trabalha 12 horas com uma bolacha e uma chávena de chã não é uma forma de violência?

Nós permitimos tudo isso e somos cúmplices nesta violência. Aceitamos a nossa violência contra os outros quando isso significa a manutenção do sistema e recusamos a mesma violência na altura de defender direitos básicos? Qual o sentido desta atitude esquizofrénica? A violência é menos violenta se ficar longe dos olhos?

Ao mesmo tempo é dito que temos de ficar calmos, afastando a violência dos nossos pensamentos.
É como dizer a uma pessoa: “Não pensar num elefante, ouve-me bem, não pensar num elefante porque o elefante é mau”. E a pessoa pensa no elefante. Isso cria confusão, incerteza e imobilidade.

Eu não quero incitar à violência, como é óbvio: a melhor maneira para resolver os problemas sempre será o dialogo e desejo que isto fique bem claro. Mas temos que reflectir acerca desta imobilidade. E pensar que a paz é uma coisa bonita, mas que existe também um limite, além do qual se torna masoquismo.

Ipse dixit.