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O 23º aniversário de Tienanmen

Praça Tienanmen é a grande praça perto do centro de Pequim, a capital da China: é a maior praça pública do mundo (o eixo maior atinge os 800 metros) e por muitos é considerada a coração simbólico da China.

Aqui foi proclamada a República Popular em 1949, aqui houve o movimento de protesto de 1976 e aqui, em 1989, houve o massacre dos manifestantes: centenas, provavelmente milhares.

O governo chinês não gosta de falar acerca do assunto, lembrado como “o acidente de 4 de Junho”, e censura as informações via internet. A memória, todavia, permanece viva na mente daq1ueles que viveram os acontecimentos ou que perderam familiares naquele dia.

Zhang Xianling perdeu o filho na Praça Tienanmen e, com Ding Zilin, fundou o grupo “Mães de Tienanmen”. Uma ocasião para lembrar os eventos e para espreitar o “sistema China” de hoje.

Este ano marca o 23º aniversário de Praça Tienanmen, até agora não foi aberto um inquérito. Acha que vai haver mudanças no futuro?

Haverá mudanças, mas não posso dizer quão longe será este futuro: um, dois, cinco anos, ou talvez mais. Mas não será demasiado tempo. Essas mudanças não são decididas com base nas ideias dos nossos governantes. Quem governa agora espera fazer o mesmo para sempre. Mas é impossível.

Quanto tempo vai demorar?
Na China existe um ditado: “huiyi jiyi, não ir ao médico para esconder a doença”, isso é, não ocultar as próprias fraquezas por medo das críticas. Esta é a atitude dos nossos líderes acerca do 4 de Junho. Mas se você não ir ao médico arrisca a morte, os nossos políticos deveriam compreender e resolver o problema.
Agora eu tenho mais de setenta anos, se eu viver mais vinte anos posso ver esse futuro. Espero exceder os 90.

E sobre a reabilitação do movimento Tienanmen, mencionada pelo presidente Wen Jiabao?

Não ouvi Wen Jiabao falar destas coisas em ocasiões públicas ou nos média. Essa é informação que circula na Internet, entre as pessoas. Talvez ele tenha dito isso, mas não sei se for verdade.

Se realmente disse isso, significa que é bastante lúcido Mas isso não depende da força de uma única pessoa, não é suficiente admitir a necessidade de reabilitação para alcançá-la. É preciso o consentimento de todo o Partido.
Existe esse consentimento? Na minha opinião, sim. Mas não se atrevem, têm medo como um assassino que não quer ser preso. Querem realmente encontrar uma solução? Basta sentar-se para discutir e resolver. Mas têm medo.

Como explica esse medo?

Os objectivos do movimento estudantil eram a democracia e contra a corrupção. Hoje, a democracia chinesa é apenas uma fachada. Muito dos nossos líderes são suspeitosos acerca da democracia, porque prejudica os interesses económicos deles.
Mesmo os níveis mais elevados são corruptos. Pegam o dinheiro das pessoas e ficam com ele. Isso não deve acontecer num país democrático.

Um exemplo é a organização dos Jogos Olímpicos com o dinheiro do Estado. Não é correcto, mas na China funciona assim. Tomam o dinheiro das outras pessoas para fazer e sem pedir. Ninguém se atreve a dizer alguma coisa.
Tudo isto implica uma mudança do sistema despótico. Ninguém quer isso. Resolver os medos de Tienanmen significa resolver o problema da corrupção e da democracia.

O que pensam as pessoas?

Em Pequim, a grande maioria das pessoas estão insatisfeitas, talvez menos fora de Pequim. Mas é porque fora as notícias ficam inacessível, as pessoas não se importam muito de conhecer os factos sobre a nação.

Em Pequim, um motorista de táxi me disse: “Em Pequim, a cada dez pessoas, onze insultam o partido”. Eu não acho serem tantos, talvez são apenas nove e não onze…!

Nós falamos aos nossos filhos, para superar o medo. Em vez disso, a maioria das pessoas não se atrevem. Preocupam-se com o trabalho, a família. A China é uma ditadura, se você se atreve a insultar o partido pode perder o trabalho.
Há, sim, liberdade de expressão. Fala-se tranquilamente com os amigos, com o motorista de táxi, em muitas outras ocasiões. Mas se queremos falar em público, então essa liberdade não existe. Na televisão ou nos jornais não se fala.
Em comparação com o passado, temos mais liberdade, mas ainda não é possível falar abertamente e publicamente. Nos jornais certas coisas não podem ser escritas.

Qual o papel das nações estrangeiras em tudo isso?

Se a China quer realizar uma mudança radical em termos de direitos humanos, deve contar com os Chineses. A opinião pública e a imprensa estrangeira têm certamente um papel e podem influenciar o governo, mas o papel dos chineses é a chave.

O que podem as potências estrangeiras?

Em primeiro lugar podem afirmar que na China não existem direitos humanos, fazer conhecer a realidade na China, não só olhar para a fachada da prosperidade ou o que é visto aqui enquanto turistas. Na realidade, a questão dos direitos humanos é desastrosa. Fazer conhecer a realidade.

Em segundo lugar, devem garantir que os cidadãos possam colocar mais pressão sobre o governo. Os países estrangeiros devem encorajar a China, começando também a criticar o governo, coisa que acho a Alemanha fez bem com a Merkel.

Mas não acha que as potências estrangeiras possam ser hipócritas?

Ia mesmo dizer isso. Agora especialmente a América e a Europa precisam da ajuda e do dinheiro da China, e por causa do dinheiro estão dispostos a baixar os padrões de moralidade, estão dispostos abandonar a defesa dos direitos humanos. Agora, o mundo segue apenas o dinheiro. É uma coisa que eu não gosto.

E porquê é tão simples ganhar dinheiro na China? Porque a China é uma ditadura. Como faz o governo para ganhar esse dinheiro? As pessoas não têm o direito de perguntar isso. Assim, os vossos governos não se atrevem a dizer o que não é bom, porque esperam obter trabalho, concessões, dinheiro, etc. Na verdade, o dinheiro do governo é o nosso dinheiro, do qual nada sabemos. é um problema que tem a ver com o sistema ditatorial.
O dinheiro atormentar os vossos governos.

Como você vê a próxima mudança de liderança na China?

Não tenho muita esperança no próximo Congresso. No passado, a China era um país autoritário, gerações de imperadores, um após o outro. Agora perguntamos como será a nova geração de imperadores.
Gostem ou não, devemos prosseguir na direcção da democracia, não apenas uma pessoa ou grupo de pessoas, o problema principal é aumentar a consciência dos cidadãos, de todos eles.

Qual será o papel dos novos líderes chineses?

Acho que a mentalidade deles vai ser mais aberta, mas não espero uma abertura no modo de agir. Estão numa situação em que cada vigia o outro.
Eles têm interesses económicos, muitas vezes comuns. Se houver uma ideia, não é realizada por medo de atingir os interesses dos outros, que são também os interesses da sua própria família. Assim, mesmo que alguns desejem reformar, não ousam, é impossível.
Não são tão conservadores quanto antes, houve uma melhoria em relação à geração anterior. Mas mudar a situação actual não é fácil, especialmente se não houver vontade.

Houve também outra mudança. Personagens como Deng Xiaoping, Mao Tsé-Tung ou pessoas da geração sucessiva como Jiang Zemin, eram temidos pelo povo e vistos como imperadores. Agora há um maior equilíbrio que permite opiniões diferentes. Entende-se que não pode haver uma única pessoa (ou apenas algumas pessoas) a tomar decisões. Este é um factor novo e positivo.

Quais são as mudanças da China nos próximos dez anos?

Em dez anos é possível que existam alterações, mas não serão tão grandes. Hoje podemos ver o progresso comparado com uma década atrás, mas a essência não mudou. A polícia ainda está atrás de nós, apesar da atitude ser mais relaxada.
Há alguns anos por aqui estava cheio de polícia. O facto de você estar aqui hoje indica que houve mudanças. Mas o progresso é lento e superficial, as mudanças não são substanciais.

O que vai organizar o grupo de mães de Tienanmen?

A nossa não é uma organização, mas um grupo. Na China as organizações não são permitidas. O nosso é um simples grupo de pessoas que se reúnem sem um líder ou directrizes. Nem sequer têm um número fixo de componentes, é possível entrar e sair do grupo. Há aqueles que morreram e outros que podem juntar-se ao grupo.
Cada ano, no dia de aniversário, nós reunimos e publicamos as nossas ideias na chamada “Carta Aberta”. O conteúdo dessas cartas são, essencialmente, sempre os nossos três pedidos. Este ano ainda não foi publicada, mas será possível vê-la quando chegar a hora.

Os três pedidos são a abertura de um inquérito e a reabilitação, admitindo a verdade sobre os acontecimentos. Em seguida, publicar os nomes das vítimas do 4 de Junho e prever uma compensação de acordo com a lei. O terceiro é investigar os responsáveis ​​pelo crime

Então teremos uma comemoração. No dia 4 de Junho, todos vamos até Wan’an gong, o cemitério onde estão enterrados os nossos parentes. Fizemos o mesmo nos anos anteriores. No passado, aconteceu que a iniciativa tinha sido dispersada pela polícia, mas esperemos que este ano não irá acontecer o mesmo. Em todos os casos, nós vamos.

Se tivesse que apontar um responsável?

Nós indicamos três pessoas como responsáveis: Deng Xiaoping, o chefe criminoso chefe. Na época, ele era o presidente e sem a sua permissão, ninguém teria aberto o fogo. O segundo é Shangkun, então presidente da república, também responsável: como é possível abrir fogo sobre as pessoas? O outro é Li Peng, na altura primeiro-ministro. Foi ele quem deu a ordem, é pessoalmente responsável.

Como vê o futuro do grupo?

Estamos todos com idade avançada. No grupo existem mães, pais ou pessoas mais velhas que vão morrer. Mas novas pessoas se juntarão. O grupo existirá até que o problema for resolvido. O importante não é o número de pessoas, mas os nossos pedidos.

Há também jovens, todos eles são parentes das vítimas ou pessoas que foram feridas na altura.
O ponto principal é a assinatura do manifesto público. Aqueles que assinaram o manifesto, que publicamos a cada ano, fazem parte do grupo. Por exemplo, se houver uma mulher que perdeu o filho mas não assinar o manifesto, então não faz parte do grupo de mães, é considerada como familiar das vítimas.

Somos cerca de 120-130 pessoas, um número que muda a cada ano. Mas ainda não tivemos casos de abandono do grupo.

Ainda sofre maus-tratos pela polícia?

Viu aquele pequeno quarto na entrada? Eles ficam lá para observar. Se eu sair, seguem-me. Se eu ir às compras, seguem-me. Qualquer coisa, eles seguem-me. Se eu pegar um táxi eles pegam num carro e seguem-me.
Anos atrás, teriam interrogado acerca desta entrevista. Agora, antes de ligam e pedem a permissão para entrar e conversar sobre algumas coisas. É uma das melhorias dos últimos anos. Antes eles podiam chegar a qualquer momento.

Alguma vez já pensou em deixar a China?

Nunca, somente permanecendo aqui podemos vencer a nossa luta.

O que você lembra da noite de 03 de Junho?

Contei essa história tantas vezes que a dor já se foi. Na noite de 3 de Junho o meu filho estava em casa. Muitas vezes tinha ido para a Praça Tienanmen para ouvir as discussões sobre a universidade. Na época, era um estudante, queria entender.
Ele concordava com as opiniões dos estudantes universitários. Em 17 de Maio, participou na manifestação dos estudantes. Adorava ir à Praça Tienanmen para tirar fotos.

Naquela noite estava em casa, saiu depois das dez horas. Na altura não morávamos aqui, mas em outro apartamento bem mais pequeno.
Naquela noite, dizia que saia às ruas para “fotografar a verdade da história”. Alguns diziam que tinha sido aberto o fogo, mas outros negavam. Ele perguntou-me se eu pensava possível que disparassem sobre as pessoas. Eu respondi: “Na altura a Banda dos Quatro não abriu o fogo, não vão fazer isso agora”. Ainda hoje estou arrependida.

Então ele foi para as ruas para tirar fotos em frente ao Grande Salão do Povo, na esquina Nanjie Nankou. Foi atingido por uma bala, não estava morto, mas apenas feridos. Houve várias testemunhas.

Os médicos, então um grupo de apoio formado por estudantes de medicina, queriam intervir para salva-lo. A ambulância aproximou-se, mas não foi permitido leva-lo. Algo brutal, fascista, até quando dois países estarem em guerra é permitido salvar os feridos. Mas não queiram salvá-los.

Então, todos aqueles que estavam concentrados lá em Chang’an Jie morreram. Na madrugada do dia seguinte, esconderam os corpos perto de Tienanmen. Meu filho estava escondido com os outros na frente duma escola. As aulas estavam prestes a começar. Não estavam enterrados em profundidade, havia um odor muito forte. A escola informou o escritório de segurança para tirar os mortos.

Meu filho estava a usar o uniforme da idade, eram estudantes universitários, por isso usava uniforme. Pensando que fizesse parte de qualquer força armada, foi levado para o hospital. Então, foi assim que encontrei o corpo dele. Outras famílias nunca encontraram os familiares.

Quantas mortes houve?

Até hoje temos encontrado mais de 200 mortos. Mas acho que foram cerca de dois mil.
Na manhã de 4 de Junho, perto das oito horas, ouvi a rádio. Um jornalista, provavelmente do Voice of America, pediu o número de mortos a um membro da Cruz Vermelha. Eu ouvi com os meus ouvidos. O repórter perguntou: “Você sabe quantas pessoas morreram?” e o homem da Cruz Vermelha respondeu: “Segundo as estatísticas cerca de dois mil.”

Muitas pessoas não têm reclamado mortos na família porque ninguém pediu nada.

Fonte: China Files