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A Dívida Privada

Espanha em sofrimento?
Assim acontece ouvir coisas destas na rádio:

O spread… é uma avaliação da dívida de governos e bancos, como podemos observar em Espanha.

Dívida. Ter uma dívida. O que significa isso?
Pego no dicionário (no sentido figurado, pois é o dicionário online da Porto Editora):

Dívida: aquilo que se deve.

Pois, bem me parecia.
Então temos que fazer uma pergunta: com quem estão em dívida os bancos?

Bah, em parte já conhecemos a resposta: os bancos tentam juntar dinheiro de várias formas, uma das quais é investir em operações financeiras.
Sim, tudo bem. Mas não é a razão principal: os bancos afinal concedem créditos.

Então vamos ver: os bancos estão em dívida com aqueles aos quais é preciso devolver o dinheiro, justo? Justo. Então significa que os bancos estão em dívida com aqueles que antes deram o dinheiro aos bancos, correcto? Correcto. E quem são estas pessoas que dão dinheiro aos bancos?
Resposta: os depositantes!

Ah, pois.
Simplificando: a principal dívida dos bancos consiste nos depósitos dos clientes.
O cliente deposita a moedinha, tu, banco, ficas com o dinheiro e quando o cliente pedir de volta a moedinha tens que devolve-lo. A conta do cliente é uma dívida do banco.

Clique para ampliar! Mas está em italiano…

Demonstração: no documento de Bankitalia à direita, Il bilancio bancario: schemi e regole do compilazione (O orçamento bancário: esquemas e regras de preenchimento), que define as normas para o preenchimento dos dados orçamentais por parte das instituições bancárias, é estabelecido que as contas e os depósitos dos clientes apareçam nas passividades.

Faz sentido.

Que dizer, pode fazer um pouco confuso, pois nós vemos o banco que fica com o dinheiro (um activo); mas na verdade o dinheiro não pertence ao banco, continua a pertencer ao cliente, portanto do ponto de vista da instituição esta é uma dívida, é dinheiro que terá de ser devolvido ao legítimo dono.

Ok, tudo bem. Mas então o que é esta “avaliação acerca das dívidas dos bancos”? É um juízo acerca do dinheiro que o banco guarda por conta dos clientes? Nada disso. Na verdade, esta expressão não significa nada. Mas nada mesmo.

Porque os problemas dos bancos hoje (em Espanha, por exemplo) não é acerca da dívidas, mas acerca dos crédito. Não o dinheiro que tem de ser devolvido, mas o dinheiro que os bancos querem fazer-se devolver. A “avaliação”; eventualmente, pode ser acerca da qualidade dos créditos dos bancos, pois este é o autêntico problema.

Que fique claro: as dívidas dos bancos (isso é, os depósitos dos clientes) podem tornar-se um problema, e grave até. Se todos os clientes corressem a retirar o próprio dinheiro depositado, os bancos não teriam condições para devolver tudo, nem de perto nem de longe (o Leitor não acredita que o dinheiro dele fica no cofre do banco, não é?). Foi isso que aconteceu em ocasião da crise dos subprimes, nos Estados Unidos, em algumas instituições bancárias.

Mas por enquanto não é isso que acontece no caso da Espanha ou no resto da Europa.
Por enquanto.

O que acontece é uma coisa bem diversa: as famílias e as empresas que antes tinham obtidos empréstimos, agora encontram dificuldades na devolução do dinheiro, no pagamentos das prestações.
Dificuldades surgidas em ocasião da crise económica e agora exasperadas com as políticas de austeridade (“sacrifícios agora para estar melhor depois”…lembra nada isso aos Leitores de Portugal?).

Repito: hoje os bancos têm problemas com os créditos, não existe um problema dos bancos ligado às dívidas.

Quem conseguiu um crédito nos anos passados e entretanto perdeu o trabalho, agora não consegue pagar as prestações da casa. Quem obtive um empréstimo para comprar uma nova máquina para a empresa, agora não vende e não consegue devolve o dinheiro.

Então porque podemos ouvir frases como “avaliação das dívidas dos bancos”?
A resposta é simples: porque os créditos dos bancos, aqueles créditos que os bancos não conseguem obter de volta, são as dívidas das famílias e das empresas. São dívidas dos privados.

E a expressão “dívida privada” já foi suprimida. Existe a dívida pública, sempre, porque o Estado gastou demais, fizemos todos a boa vida, só carros topos de gama e garrafas de Dom Perignon ao pequeno almoço, é por isso que temos de sofrer. Mas a ideia de “dívida privada” não, desapareceu e nem pode ser citada como hipótese remota.

Ainda aceite é a expressão “dívida dos bancos”. Porquê?
Porque desta forma o ouvinte pensa em obscuras operações no limite da legalidade, com pano de fundo o perverso mundo da finança.

É verdade que parte dos problemas dos bancos deriva de investimentos, pois já lembrámos como os bancos tentem “diversificar” as próprias actividades. E nem vale a pena gastar mais palavras acerca das aberrações da finança internacional.
Mas os actuais e principais problemas dos bancos estão ligados à dívida privada: as pessoas e as empresas não conseguem devolver os empréstimos.

Claro, mais fácil a teoria alternativa, mais simples e mais útil: o problema está na dívida pública (e vai com a austeridade) e nas operações moralmente duvidosas dos bancos no mundo da finança (termo este último que irrita por definição). 

Porque se não existisse esta teoria seria preciso dizer qual a verdade. E esta não apenas dói como também levantaria fortes dúvidas acerca das anteriores práticas bancárias e da utilidade da actual austeridade.

Porque neste caso a verdade é que os bancos emprestaram demais e emprestaram mal.

Em Espanha, por exemplo, o activo das instituições bancárias aumentou 90 pontos do PIB entre 1999 e 2007. Uma enormidade, conseguida com a prática do empréstimo fácil.

Agora os bancos são frágeis e o perigo é a falência, tal como aconteceu e ainda acontece nos Estados Unidos (outros dois bancos falidos no passado mês de Maio: são 441 desde 2007). Os bancos entram em falência porque explodiu a dívida privada (não a pública!!!), e esta explodiu porque os mesmos bancos decidiram financia-la antes, com a prática do crédito fácil.

A dívida privada (isso é, os créditos dos bancos, tal como vimos) em Espanha era 197% do PIB em 2007.
Repito: c e n t o e n o v e n t a e s e t e p o r c e n t o.
E a dívida pública? 36%. T r i n t a e s e i s p o r c e n t o.

Os mercados não estão preocupados com a dívida pública, mas com a enorme e despropositada dívida privada.

Privada. Privada. Privada. Privada. Privada. Privada, Privada. Privada. Privada. Privada. Privada. Privada. Privada.
Não sei se ficou claro.

O sector privado espanhol tem dívida iguais ao dobro de todos os rendimentos do País.
Parâmetros de Maastricht? Pffff…

O problema é que quando a dívida privada ultrapassar 110% do PIB, começam os efeitos depressivos na economia, como explicava o prémio Nobel James Tobin (que hoje ninguém quer ouvir. óbvio, foi ele que introduziu em 1972 a ideia duma taxa sobra as transacções financeiras; e, pior ainda, era um discípulo de Keynes, aquele da Modern Money Theory…).

Em Espanha o crescimento médio entre 1980 e 2002 tinha sido de 2.9%. Em 2003 a dívida privada (repito: privada) ultrapassou 110% do PIB e entre 2003 e 2011 o crescimento médio foi de 1.69%.

“Sim, “pode dizer o Leitor, “mas isso foi  porque entretanto tinha surgido a crise”.
Pois. E a crise porque aconteceu? Porque entretanto, num outro País, as dívidas privadas tinham ultrapassado 110% do PIB. 
E qual País será este? (dica: é grande, tem um presidente havaiano-irlandês-keniano…)

Ipse dixit.

Fonte: Bankitalia – Il bilancio bancario: schemi e regole di compilazione (ficheiro pdf, italiano), Il Graffio, Noise From Amerika, Vox