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As emergências da Igreja

Queridos Leitores: é Páscoa e é emergência.
É o mesmo Papa que afirma isso, Rat Singer.

Acontece que um grupo de padres austríacos, liderados por Helmut Schueller, padre da pequena aldeia de Probstdorf e vigário geral do arcebispo de Viena, Christoph Schoenborn, decidiu rebelar-se às ordens do Vaticano e introduzir algumas mudanças, sentidas como necessárias: sacerdócio para as mulheres, comunhão para os divorciados re-casados, abolição do celibato, abertura aos laicos.

Uma verdadeira reforma da Igreja apoiada, segundo uma sondagem da Gfk-Umfrage, por 72 % dos padres austríacos. Hoje o movimento de Schueller conta com mais de 400 padres.

Obviamente Rat Singer fica histérico cada vez que alguém falar de reformas:

Esta situação é dramática.

E logo as motivações do Vaticano, expressadas na homilia da Missa Crismal:

Um grupo de sacerdotes fez um apelo à desobediência, tendo também publicado exemplos concretos de como expressar essa desobediência, que deveria substituir até as decisões finais do Magistério, por exemplo, na questão sobre a ordenação de mulheres, em que o abençoado Papa João Paulo II declarou irrevogavelmente que a Igreja a este respeito não teve a autorização do Senhor.

Esta é uma justificação muito, mas mesmo muito interessante.
Cada Igreja tem o direito de estabelecer as próprias regras internas e acerca deste ponto não pode haver discussões: mas uma coisa é estabelecer livremente as próprias regras, outra coisa é esconder-se atrás dum álibi infantil e tantas vezes ignorado pela mesma Igreja. Bem melhor e mais digno seria reconhecer abertamente o próprio direito para instituir regras internas.

Porque à luz das palavras de Rat Singer, a Igreja opera exclusivamente no âmbito da vontade do Senhor.  Que, então, deve ter dado claras disposições acerca dos interesses políticos e económicos nos quais o Vaticano se atirou ao longo da História: que tal o IOR (Instituto Obras Religiosas) com a comprida lista de escândalos nos quais ficou envolvido? Banco Ambrosiano, Roberto Calvi, Michele Sindona, o Cardeal Marcinkus, as sociedades offshore (Manic. S.A. no Luxemburgo, Astolfine S.A. no Panama, Nordeurop Establishment no Liechtenstein, U.T.C. United Trading Corporation no Panama outra vez, Erin S.A  ainda no Panama, Bellatrix S.A mais Panama, Belrosa S.A sempre Panama e Starfield S.A olha só: Panama).

O Senhor deve ter dado também claras instruções acerca da eliminação de testemunhos incómodos, como no caso do já citado Banco Ambrosiano: Graziella Corrocher, secretária de Roberto Calvi, “voada” do quarto andar da sede do Banco Ambrosiano em 1982; Roberto Calvi, presidente do mesmo banco, enforcado em Londres sempre em 1982; Michele Sindona, homem perto do Ior, morto com veneno no café em 1986. Todas pessoas que poderiam ter posto a Igreja numa situação incómoda (e este é um eufemismo) e que, milagre!, decidiram desaparecer.

E que tal as três contas correntes da Santa Sede no banco Suíço BSI (saldo: dois ou três biliões de Euros, com repetidas transferências para o Vaticano num total de 15 biliões de Euros)?

As transferências do IOR de 20 milhões de Euros para a JP Morgan através do Credito Valtellinese (investigação ainda em curso)?

O caso Manuela Orlandi diz nada? Todas disposições do Senhor?

Desejamos falar de pedofilia? Foi o Senhor que ordenou o encobrimento nos casos dos padres envolvidos ao longo de décadas? Um assunto, este, que o mesmo Rat Singer conhece demasiado bem, não por ser pedófilo mas por ter desenvolvido um papel decisivo nas investigações de Santa Romana Igreja acerca do fenómeno.

As Cruzadas, a queima das bruxas, a Inquisição: todas autorizações divinas? Não me parece. Pelo menos, é muito difícil encontrar justificações para isso na Bíblia.

E quanto à questão das mulheres na Igreja e a obrigação do celibato?

Com grande desgosto da maioria dos Leitores, concordo com a Igreja. Ou melhor: concordo com o princípio segundo o qual cada religião tem o poder de instituir regras internas. Se a Igreja insistir em atitudes que eu julgo serem retrógradas, este é um problema da Igreja.
Claro, depois custa-me perceber as lamentações pela falta de novos padres, mas também este é um problema interno da Igreja.

Neste sentido, a postura da Igreja perante a mulher é bastante explícita.
Escreve São Paulo (Timóteo 2,11):

A mulher aprenda em silêncio, com toda submissão. Não permitam que nenhuma mulher ensine, nem use a autoridade sobre o homem, mas fique em silêncio. Porque Adão foi formado primeiro e depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher foi e tornou-se culpada de transgressão. Ela pode ser salva dando à luz filhos, perseverando na fé, na caridade e na santidade, com modéstia.

Na óptica da Igreja a mulher é inferior e são inúteis as tentativas mais recentes para devolver à mulher um papel mais digno, com interpretações “politicamente correctas”: um dos Padres de Igreja fala mesmo de “submissão”. E a culpa foi toda da cobra.
Podemos não gostar, mas pergunto: que direito temos nós, pessoas fora da Igreja, para julgar as opções internas duma religião? Gostamos da ideia de que alguém entre na nossa casa e comece a julgar a disposição dos móveis? Não? Então aceitem o facto da Santa Romana Igreja ter as próprias leis. Porque a tolerância não pode apenas manifestar-se quando dá jeito.

E o celibato dos padres?
Aqui a questão é mais complicada, porque é o mesmo São Paulo que escreve (Timóteo 3,2-5):

É preciso que o bispo seja irrepreensível, casado apenas uma vez, prudente […]. Que saiba dirigir bem a própria família e que tenha filhos submissos com dignidade, porque se uma pessoa não sabe dirigir a própria família, como poderá ter cuidado da Igreja de Deus? 

Então: São Paulo calha bem ao falar das mulheres e não presta quando fala dos padres casados? Não parece existir uma válida razão teológica para justificar o celibato dos padres. Mas também neste caso: se a Igreja decide que os padres não podem casar-se, qual o problema meu ou do Leitor?

Mas é curioso encontrar estas linhas, escritas pelo mesmo Rat Singer no longínquo 9 de Fevereiro de1970:

Cheios de temor de Deus, ponhamos a questão da situação de emergência da Igreja. As nossas reflexões dizem respeito à necessidade urgente de uma reflexão e uma abordagem diferenciada para a lei do celibato na Igreja. Acreditamos que isso seja necessário ao mais alto nível eclesiástico.[…]
Teologicamente é injusto não reconsiderar a questão à luz das novas situações históricas e sociais, especialmente os jovens sacerdotes perguntam, perante a aguda crise das vocações, como esses problemas da vida da Igreja e dos seus pastores poderão ser resolvidos nos próximos anos.

E sim: falava mesmo do celibato dos padres. O futuro Pontífice pedia que fosse considerada a hipótese de permitir aos padres uma normal vida sexual e a construção duma família.
Mudam os tempos, não é?

Ipse dixit.

Fonte: Vatican Insider, La Repubblica