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A escolha de Afonso Henriques

Assim, Afonso Henriques foi-se.

De manhã tinha sido Guida a reparar: “Olha, Afonso foi para cima da máquina lava-roupa e fixa a janela aberta”. Leo confirmou: de facto não era um grande voo, mas sempre voo era.

Entrei na marquise.
– Olá, sou Max.
(Nota: não sei se já adverti os Leitores do blog, mas tenho algumas facilidades para falar com os pombos)
– Sim, eu sei, ouvi Guida chamar-te.
– Ah, bom. E tu és Afonso, Afonso Henriques.
– Não, o meu nome é Jerónimo. Mas podes continuar a chamar-me Afonso se é isso que queres.
– Obrigado.
– Ora essa.


– E que fazes, Afonso?
– Nada, penso. Já saíste para fora da janela?
– Não, para fora da janela não. Costumo utilizar a porta de casa, é mais prático.
– Mais prático…mas não é a mesma coisa.
– Pois não. Pensas em ir para fora?
– Por acaso estava a pensar mesmo nisso. Reparei que tenho asas. O que achas?
– Sim, tens asas. Mas caíste aqui, na marquise: talvez signifique que não tens que voar, só isso.
– Talvez. Deveria ficar aqui, é isso que dizes? Ou no máximo passar pela porta de casa?
– Mah…pela porta não sei, quanto ao resto: o que te faz falta aqui? Tens comida, tens bebidas, tens um tecto. Tens algo para distrair-te, já vi que leste.
– Sim, está uma boa oferta no Minipreço, as lulas à sevilhana estão em promoção.
– Obrigado, vou tomar nota.
– Mesmo assim: comida, bebida, o tecto…não será pouco? E depois há os outros dois, aquela mulher histérica e o cão rancoroso.
– Peço desculpa, é que Guida não gosta de pom…de novidades, só isso. Gosta da marquise arrumadinha, mas depois habitua-se. Se calhar é conservadora neste aspecto. E Leo não é rancoroso, ladra porque quer fazer amizade, partilhar, é mais progressista.
– Percebo. Comida, bebidas, um tecto, distracções, um dono conservador, outro mais progressista…de facto não é mal. Mas a vida é só isso?
– “Só isso”? Há muitas pessoas que queriam ter “só isso”. Não é assim mau.
– Não, se calhar não é. Mas se houvesse mais?
– Como assim?
– O céu, entendo: está aí, parece grande. O que pode haver além do céu?
– Afonso, além do céu não há nada.
– Já foste aí?
– Não, só de avião.
– Não é bem a mesma coisa.
– Pois não é, eu sei.
– Então não sabes como é. E nem o que anda por aí. Imaginas, só isso.
– Afonso, ninguém vive no céu, até as aves voltam para o chão para dormir. E depois há perigos. Podes voar muito alto, apanhar frio, cair, encontrar animais zangados, chocar com um avião…
– É verdade. Então tenho duas opções: ficar aqui, com a vida arranjadinha, a minha comida certinha, talvez sem saber a razão de tudo isso mas afinal viver com um certo conforto. Ou, segunda opção, abandonar tudo isso e explorar, experimentar, ver coisas novas, arriscar, tentar perceber. Achas que é isso?
– Acho que sim.
– Tu no meu lugar que farias?
– Viveria.
– Pois…

Ipse dixit.